Resultados do marcador: Conto

Encontramos 48 resultados
O silêncio dos calabouços

[caption id="attachment_15599" align="alignright" width="620"]Foto: Artchive Foto: Artchive[/caption]

Leonardo Teixeira Isolada nos recônditos dos matagais, entre os vales do Pitumbal, onde estourava es­treito do aquífero um açude na­tural, um casarão secular imperava majestoso. A casa era avarandada por grossas pilastras, suas paredes de pedras foram assim concebidas para não sucumbir aos canhões de uma futura e possível guerra. O avô Oliveira acreditava que a loucura do mundo lá fora viesse atracar em solo brasileiro depois da grande guerra. Então reuniu as famílias lo­cais com agregados e colocou em prá­tica seu plano furtivo de sobrevivência. Uma casa repleta de mistérios. Robusta como um forte, cheia de porões, sótãos, vãos labirínticos, mas­morras, calabouços e passagens secretas.

A guerra não veio, mas o velho O­li­veira se deteriorou com os pigarros de sua velhice, não sem antes fazer com que seu filho jurasse que não o enterraria, talvez por nojo dos vermes da terra. O velho queria deixar sua caveira mantida num daqueles silenciosos calabouços escondidos. Os lugares mais sinistros da casa não serviam para nada nesses tempos de paz moderna, salvo a alegria de algumas crianças corajosas e forasteiras, que depois pararam de aparecer.

O filho Oliveira encasquetou que toda linhagem de seu sobrenome não voltaria ao pó da terra, quando não mais estivesse disponível a essa vida excessiva no mundo. Quando rogou esse seu voto ao velho, ele se foi em paz com seus pensamentos, ficando naquele instantâneo momento com a mente vazia. O corpo debilitado deixou de sentir as dores que os últimos respingos de vida ainda lutavam para se manter, até afrouxar de vez e se esvair a sensação da realidade, decretando a falência de suas funções físicas.

O Oliveira filho desceu com os restos carnais do seu pai pelo porão central, abriu a porta de um armário, girou a parede e entrou pela passagem secreta num corredor estreito. Chegou numa saleta sombria onde havia depósito de grossos tijolos, areia, cimento e materiais de construção. Abriu um alçapão escondido sob um tapete que ficava no meio do cômodo. Teve dificuldades para descer com o peso de seu pai, escada abaixo, num espiral sinistro e escuro, tendo a vista clareada por um fino feixe da lanterna, naquelas profundezas abissais daquele buraco medonho.

Deixou-o num cubículo que nunca tinha visto, com cerca de dois metros cúbicos. Na entrada, a grade mostrou ser aquilo tudo o cafofo de uma penosa cela, de ar rarefeito, paredes grossas de pedra, enlodadas e úmidas, escuras e frias, e ali no solo algumas correntes, grilhões e cadeados. Deixou seu pai ali, ao lado de outros esqueletos esquálidos e contorcidos pelo tempo, alvos como a neve, a clarear aquela escuridão tenebrosa, mas sabendo que os vermes e organismos da podridão o encontrariam, aonde estivesse escondido, para que se juntasse aos parceiros de ossos, depois de ser consumida toda a carne do corpo imprestável.

Um repentino tilintar de correntes ecoou um urro fantasmagórico. Podia-se ouvir o barulho, os gritos abafados naquele silencioso calabouço. Como a lanterna falhava pelas pilhas fracas, o Oliveira filho deixou aquele lugar rapidamente, com seus agonizantes gemidos dos ventos. Fechou o alçapão, tampou-o com o tapete, passou pela passagem e regressou ao porão. Saiu de lá com a sensação do dever cumprido. Acabou se fechando em seus pensamentos contritos, tendo pesadelos noturnos terríveis. Esse filho Oliveira era uma retranca desmedida sem sentimentos. O homem era fechado e sisudo, e poucas vezes revelava seus dentes em sorrisos sociais. Era exatamente o oposto do seu outro irmão, o Oliveira filho caçula, a quem os pais e irmãos o chamavam simplesmente de Oliveirinha. Essa rapa do tacho vivia pregando peças nas pessoas, rindo alto de tudo e de todos, incluindo aí seu sério irmão Oliveira, que passou a nutrir profundas mágoas pelo irmão mais novo. Ele não levava nada na brincadeira e criava um péssimo rancor, sempre lembrando desses episódios fatídicos e os alimentando como se fossem seus filhos. Esse filho Oliveira era mesmo um pretensioso museu, que vive sempre do passado, criando um monstro dentro do coração envenenado. Com pés de caipora, vivendo sua vida presente toda enlaçada por esses ocorridos magoados. Tudo se sedimentava no seu coração como tijolos de uma parede bloqueada. Cada parte uma jocosidade pejorativa do irmãozinho. E ali construiu seu mundo repleto de obstáculos como os muros e paredes daquele casarão da família Oliveira.

Eis que o filho Oliveira mudou repentinamente seu comportamento. Sentindo-se injuriado constantemente pelas lembranças daquelas traquinadas, jurou vingar-se de seu irmão caçula. Porém, resolveu mudar seu modo de agir, passando a mostrar os dentes em sorrisos fáceis e mais constantes. Aplicou a arte dos tapinhas nas costas e aprendeu a copiar algumas das brincadeiras do irmão. Resolveu então cevá-lo para que se sentisse confortável e amistoso na presença do dileto consanguíneo. Mal sabia o rapaz que o sorriso do irmão Oliveira nascia sempre da ideia constante de acabar com a sua vida. Mas além de liquidar com sua existência, deveria ainda impedir que seus restos mortais retornassem ao pó da terra, conforme promessa ao velho pai Oliveira. Tudo isso de forma sombria, oculta, sem testemunhas e provas para usufruir de sua liberdade impune.

[caption id="attachment_15600" align="alignright" width="300"]Foto: Artchive Foto: Artchive[/caption]

Eis que numa dessas alvoradas mansas badaladas por suaves sinfonias de pássaros, em pleno dia de feriado junino, o filho Oliveira se aproveitou da solidão do casarão e levou seu irmão Oliveirinha para ajudar a decifrar um dito mistério de estranhas tumbas escondidas naquelas passagens secretas. O filho Oliveira perguntou se o rapazote tinha peito para se aprofundar naquele breu, e o jovem disse que dominava tudo por ali quando era criança. O irmão então prosseguiu com seu sórdido plano e cumpriu a primeira etapa na ausência de testemunhas. Levou consigo uma pá e alguns pedaços de pau, pedindo ao garoto que levasse um garrafão de água e que fosse na frente com a lanterna para iluminar o caminho. Passaram pelo porão central, abriram o armário, girou a parede secreta e entraram naquele corredor estreito. Oliveirinha disse que a passagem acabava ali e não havia mais nada, se recordando também que há alguns anos ali era um lugar limpo, com alguns mantimentos e provisões. Definitivamente não tinha restos de construções nem aqueles materiais para reforma.

“Vejo que o mano está enganado!”, disse o mais velho (afastando o enorme tapete do meio da sala). A­briu o alçapão e continuou: “é aqui que devemos descer. Vá na frente!” O Oliveirinha acatou a or­dem e desceu aquelas escadas escuras e espiraladas, dizendo que nunca entrou aquele local. “Será nossa fonte de alegria e descoberta!”, concluiu o sisudo. No meio dos degraus o odor fétido de seus pais impregnaram as narinas. O filho Oliveira disse que era a vontade do seu velho que se cumpria. O novato tinha que suportar aquela prova de resistência. Lá embaixo havia uma ante sala enclausurada e úmida. Depois dela, algo como se fosse uma masmorra subterrânea. Então passaram pelas grades e o jovem percebeu alguns vultos claros como ossos.

A pá fez “póf”. Um barulhão abafado como se tivesse rebatido um melão jogado pelo ar. O rapaz caiu desacordado com um açude sanguíneo na cabeça. Um filete de estreito riacho escarlate desceu pela fronte até se empoçar nos olhos, e dali se despedir em gotas pelas narinas até se espatifar em manchas estouradas no chão. O filho Oliveira cuidou logo de prender o irmão naqueles grilhões pesados, atracando-o em cadeados e correntes. Em breve retornaria a consciência, mas ainda ficaria desnorteado pela pancada. Seu algoz buscou os materiais de construção, carregando pedras, tijolos, areia, cimento e a água trazida pelo jovem, deixando aquele lugar para mergulhar num ofurô instalado num luxuoso banheiro lá em cima, no canto de um dos quartos da casa. Rompeu os sais de banho e se lavou dos respingos de sangue.

O filho Oliveira voltou ao cubículo com as forças renovadas para construir mais muros reais e sentimentais. Lá embaixo, no cubículo, o irmão já tinha recuperado seus sinais sensoriais, mas estava com muito medo daqueles ossos e do corpo de seu pai em decomposição. Quando viu o filho Oliveira chegando disse: “Graças a Deus! Tire a gente daqui!”, mas o irmão não respondia. Antes disso, fitava-o de cima embaixo e admirava sua condição de preso. “Pare de brincar... Já conseguiu o que queria. Pronto... Sujei minhas calças de medo. Agora vamos embora!” E o filho Oliveira analisava tudo aquilo como se contemplasse uma obra prima de móvel escultura, como se fosse um belíssimo quadro e ainda fechou os olhos para sentir melhor a música de suas súplicas.

Quando o irmão Oliveira juntou areia, cimento e água, misturando a massa cinzenta da pá, tudo isso revelado pelo finíssimo feixe de luz que apontava pa­ra o baixo teto daquele am­bi­en­te, percebeu a maldade do irmão e começou a gritar in­da­ga­ções. O irmão, sempre calado, com pedaços de madeira mol­da­va o solo com aquela perfeição. Do primeiro andar de ti­jolos passou para dois e três. Fez uma pausa e se sentou para o­b­servar o irmão conjurar, orar, xin­gar, suplicar, gritar, silenciar em alternados temperamentos. O Oli­veira mais velho não perdia um movimento daquelas oscilações.

Ergueu quatro e cinco andares de tijolos e pedras, alcançando mais da metade da porta. Perguntou ao irmão qual seria a sua última refeição. Após os praguejos do Oliveirinha, seu irmão gritou e urrou muito alto, até que Oliveirinha se silenciasse. Tornou a perguntar qual seria seu último lanche, pois refeição estaria agora fora de cogitação. Alertou o garoto que novo protesto iria permanecer faminto até a morte. O jovem escolheu um sanduíche com ovos, bacon, carne bovina, alface, milho e batatas. Para beber, um suco de laranja. O irmão ironizou a escolha americana, mas foi providenciar o alimento. Depois de alguns minutos voltou com uma bandeja e sobre ela o sanduíche, o copo de suco, um guardanapo e uma vela acesa. Trouxe também um tamborete e se sentou em frente a parede parcial. Conferiu se estava firme e voltou para o tamborete. Pôs a bandeja sobre o colo e passou a ingerir o quitute desejado pelo irmão lentamente, olhando nos olhos do Oliveirinha. Ele ficou irado, cuspiu, esbravejou e virou um leão. O irmão Oliveira fitava aquilo tudo sem piscar, e devorava o sanduba regado à laranjada como se estivesse em frente a uma tela de cinema. Quando acabou de comer, limpou os lábios com o guardanapo e as mãos. Levou a bandeja de volta com o tamborete, deixando a vela acesa em cima de sua última fileira de tijolos.

Subiu aos aposentos superiores e resolveu tomar novo banho. Mas lá naquela água quente ficou curioso para ver a desenvoltura do irmãozinho. Apressou com as roupas e desceu novamente. Teve certo asco com o cheiro do lugar, pois estava com o estômago cheio, mas chegou rapidamente e o irmão iniciou com os vitupérios, a­frontas e outras depravações. “Nem assim você toma jeito, O­liveirinha. Cresça! Pare de pregar peças... Ops, você já vai parar brevemente... Quero que ao menos nesses últimos instantes você amadureça!” Então o irmão chorou, se debateu (se machucou!) e esgoelou penosamente. Seu algoz irmão Oliveira gritou e urrou novamente, até que Olivei­ri­nha silenciasse. “Tenha um pingo de dignidade, morra ao menos como homem!” O irmãozinho chorou baixinho e viu seu irmão mais velho aumentar a fileira de tijolos.

A segunda parte do trato estaria resolvida. O mistério do desaparecimento de Oliveirinha chocou os familiares e a comunidade. Com o passar do tempo, sobrou somente o filho Oliveira, ainda mais sombrio e calado. Dizia que isso se devia pelo desaparecimento dos seus familiares. Anos depois acabou se juntando a uma interesseira com quem teve um filho. Esse neto Oliveira vivia tendo pesadelos e dizia ouvir coisas durante as noites naquele casarão. Ecos de súplicas, gemidos de dor, gritos, passos e correntes. Seu pai então resolveu certo dia entrar naquelas passagens secretas sombrias e encontrou a clausura intacta. Resolveu, com o auxílio de uma marreta e de uma picareta, remover uma das fileiras daqueles tijolos assentados por ele. Algo o sugou para dentro da cela e depois a parede se restabeleceu por si. Foi assim que o neto Oliveira ficou órfão com seu pai desaparecido.

Com a venda de parte da herança se criou sozinho e frequentou escola na cidade mais próxima. Lá na escola havia um coleguinha de nome Augusto Pereira, que vivia desacatando o neto Oliveira, humilhando-o na frente de todos, tomando seu lanche e o achincalhando com regularidade. Seis meses depois, apavorado com pesadelos sombrios de prisões eternas, Oliveira neto encontrou a passagem secreta, mas (ainda!) não descobriu o alçapão que levava aos ossos. Mesmo assim, algo o encheu de coragem e resolveu erguer a cabeça. Era preciso punir sem deixar vestígios, ficando impune diante das autoridades e da sociedade, pois aquele Augusto Pereira arrancara sua honra. Mas, entre a frieza e os pratos da vingança, as ideias regurgitam calores de um ódio tórrido.

No dia seguinte, numa manhã muito agradável, olhou o coleguinha e sorriu. Mal sabia o estudante que aquele sorriso vinha da decisão tomada por Oliveira neto: os Pereiras nunca mais voltariam ao pó da terra!

Leonardo Teixeira é escritor.

Navegante

José Fernandes

[caption id="attachment_14567" align="alignright" width="620"]Foto: M. File Foto: M. File[/caption]

Quando tiveram de sacrificar o Navegante, Sontônio Bello ficou desconsolado. Era um boi de estimação, o par de Navio. Bastava declinar-lhes os nomes para eles se emparelharem, onde estivessem. Nenhum veterinário conseguira um diagnóstico exato sobre aquela doença. Navegante emagrecia a olhos vistos. A disenteria não amainava. Nenhum remédio conhecido pela ciência médica, alopática ou homeopática, surtia efeito. Nem mesmo chás de mané-magro, carqueja ou boldo, infalíveis em outras ocasiões. Sequer os poderes do sagrado: as benzeduras de Maria Coelha e suas rezas bravas, sempre acompanhadas de cura infalível, eram o mesmo que água com açúcar. O animal piorava a cada dia, apesar da vontade de viver que se via em seus olhos e na disposição de manter-se em pé. Para não perdê-lo totalmente, Sontônio seguiu o conselho de Salustiano, seu tio: abatê-lo o quanto antes.

À abertura da buchada, a resposta para o seu mal: cinquenta pregos dezoito por trinta e cem, dezoito por quarenta. Sontônio ficou indignado; mas deixou tudo nas mãos de Deus. O autor era conhecido de todos: Jodisão. Não havia dúvidas: a demanda pelo desvio do córrego de suas terras a tudo explicava; mas não justificava a maldade daquele vizinho de anos. Até compadres eram; embora sempre fosse obrigado a viver com um pé atrás e outro na frente.

Passou-se o tempo, mas a lembrança de Navegante não se apagava da memória de Sontônio Bello. Aquele passeio à cidade fora providencial. Conhecera uma fábrica de estátuas que trabalhava com fibra de vidro. Mandara fazer uma, em tamanho natural. Sua chegada trouxe vida nova ao senhor da Fazenda Conceição de Arco Verde. Parecia-lhe recuperar a junta de bois com que trabalhara mais de quinze anos. Até os mugidos de Navio e Navegante a solicitar a ração da tarde, chegara a ouvir, aquele dia. Todavia, não queria o Navegante ali no estábulo. Mandara colocá-lo próximo à porteira da divisa com Jodisão. Seria uma espécie de punição por tamanha crueldade. Não há nada pior que um crime rememorado a toda hora. É como pisada de arreio, sempre esfolando a ferida.

No outro dia, ao aproximar-se da cancela, Jodisão quase teve uma vertigem. Soubera que o animal fora abatido, há anos. Como pode ele estar ali, com aqueles olhos vivos, a olhar-me, espantado, como se houvesse descoberto o mal que lhe fizera ao alimentá-lo com aquelas palhas recheadas de pregos? Será que ressuscitaram o Navegante? Ele está em posição de ataque! Será que veio cobrar-me a vida abreviada pelo mal que a indigestão lhe causou? Assombração, à noite, sempre soube que pode existir; mas de dia, com o sol quente, é a primeira vez! Jodisão estava imóvel, em seu cavalo, como a estátua. Os olhos fixos de Jodisão no animal e o calor do sol davam-lhe a impressão de que o boi se movia em direção à cerca. Ainda bem que estou a cavalo! Como que o compadre Antoim foi comprar outro boi igualzinho, sô?! Oh gente! Tava até me esquecendo de que tenho de ir trabalhar. Ah! É uma estátua! Que desaforo, botar essa coisa bem aqui, na minha passagem! Nunca é tarde para se acertar contas nessa vida! O inferno é aqui mesmo, dizia o meu avô! O inferno são os outros, ouvi dizer certa vez a Feliciano, homem de saberes e livros.

Àquela noite, Jodisão não conseguiu o sono de quem passa o dia sobre uma tora puxando serra. A todo momento acordava-se aos sobressaltos, sempre correndo do Navegante que abandonara aquele passo pachorrento do engenho ou do arado, para precipitar-se sobre a cerca e vazá-la como se os fios de arame não passassem de linha de costura. Os chifres, já rombudos pelo tempo, agora lhe pareciam pontiagudos; prontos para lhe rasgar as carnes das nádegas ou dos costados.

Jodisão não queria acreditar no que lhe estava acontecendo. Sabia que não passava de sonho; mas a cada vez que se punha a modorrar, a figura do animal lhe aparecia, sempre mais ameaçadora. Seria o espírito de Navegante que estava por dentro daquela estátua? Levantou-se disposto a destruí-la; porém, Belmira, a mulher, acordou-se:

— O que foi, homem? Já despertou, pulando, umas três vezes!...

— Aquele maldito boi não para de me perseguir. Basta eu fechar os olhos para vê-lo, enorme, vindo sobre mim! Você também não está vendo?

— Eu, hem!.. Ta ficando maluco, Velho?! Espere que vou lhe trazer uma água com açúcar! Você ficou impressionado com a estátua. Aquilo não passa de um plástico qualquer!...

— Mas que é idêntica ao Navegante, é!...

— Quem mandou fazer maldade!?...

— Vá pros infernos, mulher! Vai querer me azucrinar.... também

— Aqui está a água! Vê se se acalma, homem! O galo já cantou; deve ser umas quatro horas!...

Jodisão, àquela noite, ainda se acordou, cansado, mais duas vezes. O coração pulava-lhe na garganta, como se quisesse sair pela boca.

Dia seguinte, pensou dar volta pelos Rosa, para chegar ao serviço. Fez os cálculos. O percurso triplicaria. Era melhor enfrentar o mistério. Sempre fora homem de coragem. Nun­ca perdoou desaforo. Não será uma estátua que irá me abalar, diabo! Irei por onde tenho de ir. Se o demo aparecer, meto bala nele! Não será uma estatua que irá me perturbar os nervos!

Jodisão chegou à porteira, trêmulo. Não estava se conhecendo. Nem mesmo no dia que Toim Porela lhe apontara aquele revólver, chegara a tremer. Que diabo tem esse boi? Um tropel de animal o seguia, sem que se visse nada às suas costas. Os cascos do cavalo não poderiam produzir tamanha cavalgada. Será que estou ficando louco?

Naquele dia Jodisão trabalhou atabalhoado. Não fosse a maestria de Geraldo Polina, e teriam inutilizado toda uma tora de jacarandá. Em seus ouvidos, o reque-reque da serra era contraponteado pelo tropel de Navegante que, como no sonho, estava sempre ao seu encalço. Não via a hora de o dia terminar. Iria tomar uma boa birita para poder dormir sossegado. Foi pior, sonho e alucinação se conjugavam em seu inconsciente. Madrugada velha, despertou-se, aos gritos, empapado de suor.

— O que houve, Jodisão? perguntou-lhe Belmira, amedrontada.

— Não me amole, mulher! Não vê que, desde que botaram esse boi aí na divisa, não tive mais descanso!

— Ara, homem, não vê que não passa de um monte de... Nem sei do que... É uma coisa imóvel, como uma fotografia! Por que você não ficou alucinado quando tiveram de sacrificar o xodó de Compadre Antônio?...

— Não sei! Parece que a estátua trouxe o espírito do animal de volta:

— Que espírito?! Animal nem alma tem!?...

— Quer saber de uma coisa? Vamos dormir que, amanhã, me espera uma tora enorme de sacupema para fazer casqueiro! Além disso, ainda tenho de trabalhar para esse homem! Ele não quer perder um palmo daquela árvore que seu trisavô plantara naquele alto e que a última tempestade derrubou.

O sono não veio mais àquela noite. Jodisão levantou-se moído. Tenho de tomar uma atitude. Se esse boi começou a perseguir-me depois que instalaram aquela coisa ali na porteira, só me resta dar-lhe um fim. Mas, se não havia como provar que eu fora responsável pela morte do Navegante, agora, se destruí-la, além de um crime novo, ainda ficará patente o antigo. Não tenho saída. Além do mais, ela está bem à frente da casa de Salatiel, que poderá me delatar. O negócio é esperar. Nada como um dia atrás do outro. Às vezes, tudo não passa de impressão minha. Um boi morto não poderá me fazer mal algum. Não sei por que estou dando importância a sonhos! Vou encarar esta desgraça, como sempre fiz. Vou passar por lá, hoje, decidido, como se nada de novo houvesse nas proximidades.

Cultural_1885.qxd

Jodisão abriu a porteira fingindo ignorar a estátua que lhe parecera ainda maior. Que impressão mais idiota! Onde já se viu matéria morta crescer? Assim que transpôs o rego d´água, sentiu um bafo quente pelas costas. Baba de boi, mesmo! Malcheirosa, como se viesse de entranhas podres. Mais essa agora! Como explicar esse mal-cheiro em minha roupa? Se contar a verdade, vão dizer que estou maluco. No trabalho, Geraldo não reclamou do almíscar. Não queria que ele me visse naquele estado. Ainda bem que ele fica em cima do jirau da serraria! Mesmo assim, resolveu inquiri-lo sobre a causa daquela fedentina, vê se ele dizia alguma coisa, nem que fosse para dizer que devia ter tomado banho depois de um dia inteiro de suor:

— Compadre, não há de ver que um passarinho me deu uma cusparada, quando passava pela capoeira! Acho que o excremento se misturou com o vapor da água e impregnou minha camisa. Está sentido um cheiro sufocante, Compadre?

— Estou não, Compadre! Acho que é impressão sua! Sua roupa está limpa, como foi pega do armário. Não vejo nada nela, não! Deve ser impressão sua!

Que diabo! Só eu me sinto sufocado com esta coisa. Será que o Compadre está cego? Como que me sinto sujo e malcheiroso?

À volta para casa, pareceu a Jodisão que a estátua tinha se aluído; estava mais perto da estrada. Como pôde se mover, se está afixada em uma sapata de concreto? Esse bicho está a fim de me liquidar. Por que ele não me chifrou numa daquelas vezes que o alimentei com palha e prego? Eu o chamava, e ele vinha, com aquele passo pachorrento. Abria a boca e engolia a palha, mal esta se molhava com sua baba de garapa, tomada ao cocho, no curral. Os pregos desciam sem que os mastigasse. Depois, se ninguém sente este fedor, alguma coisa está errada! Por que só eu me sufoco com este almíscar insuportável?!

Jodisão não desejava nova agressão, semelhante à que lhe ocorrera pela manhã. À aproximação da passagem, fixou os olhos nos olhos estatelados da estátua, como a dizer que não temia as energias que ela parecia emanar. Ao fechar a cancela, pôde vê-la frente à frente, embora sentisse que ela o acompanhara todo o dia. Antes de se virar para o destino, um berro gemido e uma golfada de sangue em seu rosto. Um sangue quente, visguento, que lhe escorria pelas vestes, avermelhando-as. Jodisão levou a mão ao revólver; mas recolheu-a, como se uma força superior a sustivesse. Pela primeira vez na vida, teve medo. Percebeu que não enfrentava homens; mas o espírito de um boi vingativo. Após limpar os olhos, pôs-se a caminho, sem nada dizer.

Ao chegar à casa, quis livrar-se daquela coisa pegajosa que lhe escorria pelo corpo, antes que alguém o visse naquele estado. Tinha de pedir roupa limpa à mulher. Sabia que Belmira não se arriscaria a contar nada a ninguém. Chamou-a, mas ela não manifestou espanto algum ante sua viscosa carapaça vermelha. Será que só eu estou vendo essa coisa imunda que se adensa à passagem do tempo? Acho melhor testar os olhos de Belmira:

— Belmira, você não esta vendo nada no meu rosto e na minha roupa?

— Não! Por quê?

— Por nada, não!

Esse bicho tem parte com o demo ou... será castigo de Deus?! O Geraldo também não sentia o mau-cheiro; não via nada em minha camisa. Achou até que ele é que fora cuspido por algum pássaro. O que posso fazer para me libertar dessa coisa!? Amanhã será domingo, vou aproveitar para ir à casa de Toimbijim. Se o povo tem razão, ele deve entender das coisas do Sujo e poderá me dar uma receita para eu deixar de me influenciar por essas coisas do além! Onde já se viu um boi morto, há tanto tempo, acabar com a minha tranquilidade!

Jodisão banhara-se; contudo, continuava com a sensação de que o sabão de sapucaia não retirara nada daquela gelatina grudenta que lhe impregnava, agora, até as entranhas. À noite, a bem dizer, não dormira! Sentia-se revolvendo dentro de uma câmara de visgo, a cada vez que se virava na cama. Ao primeiro canto do galo, levantou-se. Amanheceria na casa de Toimbijim.

O pactuado já ordenhava as vacas, quando Jodisão chegou. Toimbijim manifestou certa repugnância ao vê-lo.

— Eu já o esperava, Compadre! As cosias não andam boas pro seu lado. O pior é que nada posso fazer. Você sabe que Antoim Bello é homem que nunca fez mal a ninguém, mesmo quando se vê prejudicado. Não tenho poder algum contra ele. O Grande Bem o protege!

— Até quando esse boi vai me perseguir? Não aguento mais, Compadre! Este visgo malcheiroso que me envolve, causa-me um mal estar dos diabos!

— Espere um pouco, que vou consultar os meus protetores!

Passada uma meia hora, Toim­bijim retornava, cabisbaixo. Sentou-se no tamborete usado para a ordenha, mas nada dizia. Jodisão olhava-o, inquisitivo. Será o que me aguarda? Se ele disser que devo pedir perdão ao Sontônio Bello, está enganado! Prefiro enfrentar toda desgraça, que me humilhar.

— Olha, Compadre, essa coisa só vai acabar, quando lhe ocorrer uma grande desgraça. Não sei o que é. Será um grande mal!

Desconsolado, Jodisão se despediu do Compadre e se pôs a caminho. Ainda bem que não preciso transitar por aquela estrada hoje. Passar o domingo com essa sensação de estar coberto por uma massa imunda é horrível. Ainda bem que só Compadre Toim a vê. Já me encontrei com o Zé Bellinho e o Ângelo Bello, e eles nada esboçaram que denunciasse repugnância. Zé Bellinho até achou que estou com ótima aparência. Ele é muito brincalhão, mas não acredito que tivesse ironizado. Se fosse a mulher dele, Conceição, sim; ela tem um terceiro olho. Capta as coisas no ar e na matéria.

Jodisão chegou à casa e encontrou-a entupida de filhos, netos... Entrou e foi direto para o quarto. Não estava para conversas, ainda mais que sentia um cheiro sufocante de sangue podre. Expor aquele visgo ao sol não fora uma boa medida. Sentia-se envolvido por uma camada gelatinosa, deteriorada. O filho mais velho, que viera ter com ele, nada dissera. Real­mente, estou dominado pelo espírito da vingança, sem poder me defender. Logo eu que sempre comandei as ações, eu que dominei grandes e pequenos. Todos sempre me disseram “Sim senhor” e, agora, nada posso contra essa força invisível que me anula.

Aquela noite, passara-a com o tropel de Navegante nos ouvidos. Cada vez que se acordava, a cabeça estava para estourar. Não de dor, mas pelo ruído dos cascos no cascalho. Não era apenas o Na­vegante. Eram muitas juntas de bois que se aliaram a ele, inclusive o Navio, morto meses após o infortúnio do velho companheiro de canga. Somava-se a esse mal estar a fedentina de sangue em decomposição, que lhe descia pelas narinas, como se as fosse estourar. Isso é sofrimento demais para um ser humano. O pior é que Com­padre Toim me disse que desgraça maior se abaterá sobre mim.

Não sei se vou aguentar. Qualquer coisa, estouro os miolos. É o único jeito de aliviar esta vida miserável. Até a chegada da es­tá­tua, vivia tão tranquilo! Não sei por que acontecem estas coisas comigo. Nunca fiz mal a ninguém. Apenas cobrei aos outros aquilo que me tiraram. Bastava saber que alguém houvesse falado qualquer coisa, para tirar satisfação. Mas isso não é motivo para que esse boi venha me aporrinhar!

Àquele dia, ao passar pela estátua, cobriu o rosto com o chapéu, esperando que o animal não se desse pela sua presença. Sua artimanha, no entanto, não surtiu o efeito desejado. Bastou pôr o pé no terreno de Sontônio Bello, para ouvir um espirro, seguido de uma gosma que veio se sobrepor à outra; só que ainda mais nauseante. Com o corpo todo encoberto de visco, seus braços ficaram suspensos no ar, parecendo um pássaro pronto a alçar voo. Como irei trabalhar com essa coisa me comprimindo o corpo? Resolveu enfrentar o animal, pelo menos em pensamento. Por que não me mata de uma vez, já que está se vingando do que o fiz, há anos? Como resposta ouviu um berro sonoroso, parecido com uma gargalhada.

Para se ver longe daquela coisa e de seus poderes, a que não conseguia explicar, esporeou o matungo e virou a curva, que se seguia ao rego d’água. Aos poucos, pôde retornar os braços à posição costumeira; mas o fedor vindo às ventas revolvia-lhe o estômago. Espero que Compadre Geraldo não se aperceba dessa coisa nauseante. Senão, como explicar-lhe as causas? Minha situação está ficando, cada dia, mais incômoda! Não sei realmente o que fazer, se nem Compadre Toimbijim soube me aconselhar. O pior ainda está por vir. Que castigo poderá se sobrepor à desgraça dessa fedentina? Teve de interromper o reque-reque da serra umas três vezes. O vômito vinha farto; mas não havia nada para expelir. Nem café tomara, ao sair. O estômago, embrulhado com o fartum de sangue podre, agora se comprimia, nauseado.

À hora do almoço, Jodisão sequer abriu a marmita. Sentia as narinas ardentes, como se fossem estourar. À simples vista da comida no prato de Geraldo foi suficiente para golfadas de bílis, secundadas pela observação do companheiro:

— O Compadre não quer ir à cidade, consultar o dr. Semir? Desde que chegou está muito amarelo! Parece que está com icterícia!

— Fique tranquilo. Não creio que seja grave! Quando chegar a casa, tomo um chá de mané-magro! Ele sempre me cura estas indisposições!

— Carqueja, não é melhor? Quanto mais amargo, mais o fígado agradece, Compadre!

— Você tem razão! Quando voltar, vou aproveitar e apanhar um molho, ali perto da cachoeira do Gonzaga!

Jodisão pouco rendeu àquele dia. À volta, porém, o animal deixou-o passar despercebidamente, como se nunca o tivesse visto; mas a camada incômoda de visgo continuava. O cheiro recendia no cérebro, como se fosse estourá-lo. O banho, mesmo esfregando-se com a escova de limpar alpercatas e coxinilhos, não eliminou o carniça que o envolvia. Teve uma noite tranquila. Belmira até estranhou não haver se acordado, com os costumeiros pinotes do marido. Pela manhã, até esboçou um sorriso; arriscou um assobio. Sempre ouvira dizer que quem canta seus males espanta. Tinha de espantar aquele fartum que lhe não saía das narinas. Talvez, esquecer-se da estátua, do mal que fizera ao Navegante, fosse a solução.

Ao dirigir-se ao trabalho, novamente fez de conta que nada mudara nas cercanias do rego que leva água à casa de Sontônio Bello. Passou, altivo, sem olhar para a estátua. Apenas o cheiro nauseante permanecia em suas ventas. Passou a primeira ponte, a segunda, tranquilo. A estátua realmente tinha se arrefecido. Será que o boi se contentara com o zunido de cascos no ouvido e com aquela redoma de nojo impondo-lhe um diuturno mal-estar? Não é bom festejar. Afinal, continuo dominado pela desgraça dessa estátua. Também não posso me esquecer de que algo pior haverá de me acontecer. A menos que Toimbijim tenha errado seus vaticínios. Foi um dia profícuo, aquele!

Ao entardecer, adotou a mesma postura. Boi de carro geralmente é cordato. Ainda mais o Navegante, que tinha receio até de coicear as mutucas que o azucrinavam, ao sol quente. À passagem, teve a sensação agradável de que a camada de visgo se desfizera, e o mal-cheiro se dissipara. Aquele barulho intermitente de cavalgada pelos seixos abandonara-lhe os ouvidos. Era a felicidade antiga. Poderia dormir sossegado, àquela noite. O boi se esqueceu de mim. Tomara que Toimbijim tenha falado aquelas coisas só pra me perturbar. Apesar de Compadre, nunca confiei nele. Aquilo é cobra criada: está sempre disposto a um bote, mesmo que a vítima seja de sua cozinha.

Colocou a cabeça no travesseiro, feliz. A modorra veio rápido. Depois de um dia cheio, puxando serra, nada como uma cama macia para refazer os ânimos. Não demorou para que Navegante viesse cortejá-lo. Via-se andando pela proximidade da cerca, seguido pelo animal babando espuma de garapa, tirada à taxa, desejoso daquelas palhas graúdas. Milho das vargens do Sapateiro. Àquele dia, o animal parecia esfomeado. Engolia palha e espiga com uma sofreguidão nunca vista. Terminado aquele balaio, teve de correr ao paiol e descascar mais outro. Não teve descanso. Ouvia os berros do animal, como se ele estivesse ali, no terreiro. Belmira, àquela noite, não dormiu. Jodisão revolvia-se na cama, dava de braços, como se estivesse falando com alguém. Em certo momento, um salto. Caiu de pé, ao lado da cama:

— O que foi, homem! perguntou-lhe Belmira, assustada.

— Nada, não! respondeu, deitando-se.

Em instantes, ressonava e dava pinotes, como se o sono não tivesse sido interrompido. Navegante não lhe dava um segundo de trégua. A palha descia-lhe pela garganta, sem mesmo receber aquele trato que antecede à deglutição. Ma­dru­gada velha, Belmira ouviu gemidos. Não se preocupou. Aquilo já tinha se tornado uma rotina. O dia amanhecera, e Jodisão continuava dormindo. Isso nunca acontecera naqueles trinta anos de casados. Quando abriu a janela, como fazia todos os dias, quase teve um desmaio. Mesmo assim, conseguiu soltar a voz, com uma potência incomum para uma mulher submissa, acostumada a destemperos e desaforos, mal raiava o dia:

— Jodisão, que cara é essa? Nunca vi você assim, com estes olhos de medo! O que aconteceu?

— Você está cega?! Não está enxergando o Navegante?

Jose Fernandes é escritor, crítico literário e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Imitação de Borges

[caption id="attachment_10323" align="alignnone" width="620"]Jorge Luis Borges Jorge Luis Borges[/caption]

J.C. Guimarães

Sou o autor desta coletânea ordinária, e quem pretendesse encontrar vestígios de ficção na história que segue daria com os burros n`água. A realidade tem suas intromissões fan­tásticas, e uma dessas janelas me surpreendeu para provar que não existe fronteira entre o fato mais prosaico e o mais absurdo. An­tes de reproduzi-lo é necessário al­gumas ob­servações, de que a crítica poderá se valer para referendar-me ou me condenar ao esquecimento.

Considerei este fato tão inverossímil que, ao transcrevê-lo, não me dei conta de que imitava Jorge Luis Borges. Consola saber que inúmeras linhas de Borges são linhas de Kafka e que alguns de seus versos pertencem indiscutivelmente a Whitman, sem que ele tenha sido o primeiro e o último de uma série. O português Álvaro de Campos foi de uma fidelidade admirável: “Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!”

Imitação, em alguma medida, é inevitável: cada um de nós é me­nos si mesmo que outros, ao longo da vida. E estou convencido de que é melhor se parecer com Borges do que com ninguém. É verdade que reescrevi esse conto mais de uma vez, mas não consegui me livrar de suas impregnações. O preço pode ser este: meu próprio obscurecimento como escritor, à procura dum estilo (o de não tê-lo, por exemplo, amorfo ao contrário do imitado). É o diabo, mas fica a história, boa ou má. Contento-me em saber que fiz o melhor que pude.

Digo logo: acredito que eu sou eu mesmo, J.C. Guimarães. Entre outras coisas, não pretendo morrer completamente como pretendeu Borges — Jorge Luis Borges. Apesar das ressalvas, é provável que o leitor familiarizado perceba nessa história o estilo pessoal do mes­tre, o uso de certos chistes e principalmente a dicção. Reco­nhe­ço a dívida e permito que ela me apa­gue, se convir ao resultado que al­mejo. Confesso o esforço inútil de evitar certos rudimentos do i­dioleto deste apreciador de milongas, que terá sido eu (ele não foi to­dos os homens do mundo?) e quem não fui. Não fui, apesar das a­parências (quando eu era jovem, perseguiu-me também o terror imaterial de Hume). Acho até que tais reminiscências darão a estas poucas palavras certa graça que possivelmente não teriam por si mes­mas, por isso deixo que fiquem.

Pouco me importa, pois não al­cancei um estilo pessoal e cheguei a duvidar que tivesse talento para fazer qualquer coisa de original.

Borges foi o primeiro grande escritor que eu li. Houve um tempo em que o argentino foi na minha opinião o maior escritor de todos os tempos. Eu ainda não conhecia as vertiginosas galerias de William Shakespeare. De qualquer modo, deixei-me influenciar por sua poesia porque minha ideia de mundo guardava prováveis semelhanças com aquela dos seus livros mágicos. Hoje duvido é que um homem possa ter um estilo e espelhar a multiformidade do mundo. Mudei muito, desde então; passei a ver as coisas de uma maneira mais realista e menos fantástica, explicação, no fundo, destituída de sentido. Um lógico pode perfeitamente pulverizá-la. Quem é que não se influenciou um dia por alguém? Com a metamorfose eu deixei de ser quem fui. Li outros fabulistas e até senti certo enfado pela metafísica, por essa falta de calor humano e especialmente de mulheres, que é a prosa de Borges. Para se parecer mais comigo mesmo, reitero que amo as divas.

A verdade, única e verdadeira, é que somos tantos ao longo da vida, e também nossa maneira de ser e de fazer as coisas. A identidade que a burocracia inventou para mim é a do cidadão cotidiano e maçante das contas e obrigações civis. Invejo sinceramente quem se enquadra nesse esquema mesquinho e não perde o juízo. Fosse comerciante e talvez fosse mais feliz.

A natureza não gosta de pessoas complicadas, aquelas que tentam desvendar os seus mistérios, como Bor­ges e outros homens de gênio. Ela os a­maldiçoa com maus pensamentos, com conflitos íntimos, com angústias in­sanáveis que nenhum entretenimento mundano pode atenuar por muito tempo. Tira toda sua fé, para que mor­ram secas. É o preço que se paga, por se querer comer os frutos da árvore da sabedoria, do bem e do mal. Faz todo o sentido que a descrença seja generalizada entre os re­bel­des: a curiosidade invasiva nos do­mí­nios de Pandora nunca fica impune.

Não é difícil compreender a felicidade mais palpável das pessoas comuns. A natureza não tem por que hostilizar os que não a incomodam com perguntas indesejadas.

Talvez, ao invés de um conto, eu devesse fazer uma crônica do material que disponho, de sorte que o episódio ligeiramente descrito a seguir de fato aconteceu: é tão autêntico quando a vertigem de Borges, às margens do rio Charles, em fevereiro de 1969. Não inventarei outro, nem um dia nem uma data, a fim de fraudar os dados que esqueci. O que narrarei poderia ser escrito para o jornal da manhã seguinte, ao invés de aspirar a forma literária.

O objetivo desta peça simples, cuja principal virtude é o panteísmo, é falar de espelhos: a imagem preferida de Borges. Concluí, após uma tarde de revelações, que os espelhos têm verdadeira correspondência no universo de Aristóteles. Para tanto, bastou uma ocasião trivial e a feliz intuição deste plagiário. Felizmente, as metáforas têm o dom da diversidade (realmente esta frase não me pertence). Minha conclusão não encerra todas as possibilidades e ângulos do problema, mas certamente encontrei um de seus termos (outra fraude). É talvez o produto de uma alucinação e poderia integrar o rol das teorias conspiratórias.

Percebam que realmente não pretendo ser igual a Borges. Como, se in­clu­sive sou militante de um partido político? Não sei ainda se por sorte ou infelicidade, a história é que vai dizer.

O desprezo do mestre pela matéria nunca me escandalizou, sobretudo depois que, por aqui, fomos cúmplices da infâmia, como todos os outros que estiveram no poder. Infalivel­men­te o poder tresmalha, infalivelmente de­sagrada. Pouco saberíamos pelas páginas do renomado portenho qual a sua opinião sobre os generais que pisaram sua pátria argêntea. Talvez soubéssemos sobre Péron, a quem a literatura política consagrou um ismo. No mais, preferiu ignorar nossos desencantados Sólons. Foi a forma sutil que encontrou de, outra vez, repetir os gregos e metê-los no ostracismo. Neste caso, permanente:

“Contam que Ulisses, farto de prodígios, Chorou de amor ao avistar sua Ítaca Humilde e verde. A arte é essa Ítaca De um eterno verdor, não de prodígios”.

Assim é Borges. Seja como for, co­mo Dante, que não envergonhou-se de servir à sua cidade, a política me in­teressa como caminho sem volta. É por isso que cultivo a leitura daquele Car­los Daneri que, com uma só pergunta, afrontou os extremismos que assolam esse mundo: “Quantas igrejas tem o céu?” Minha resposta é nenhuma.

Mas, então, aconteceu o fato, e inevitável foi associá-lo ao gênero fantástico. De repente, certas provocações metafísicas de Borges me pareceram cobertas de sentido. Um plano repete outro, e isto é São Paulo e outras metáforas a que Borges recorreu. Tudo só depende de você estar no lugar certo e na hora certa para perceber as correspondências. Em meu caso, foi quando recebi a visita de dois missionários em casa.

O endereço foi a rua 7, e achei que eram corajosos. À maneira de Pedro e os outros discípulos, vivem de bater nas portas, infinitas, e operar o convencimento, reclusos por anos a fio em sua própria versão de Nicósia, Patmos e Éfeso. Essa loteria vulgar (u­ma locução típica do mestre) os pôs diante de mim e os atendi, e talvez te­nham me visto como um pagão. Pedi que entrassem e se sentassem, embora soubesse que o convite alargasse a sua insistência. Sabia que não seria convencido por nada desse mundo, mas dei-lhes guarida por tolerância. Sorriram, eu os retribuí com sinceridade e tudo ficou bem entre nós.

Não fosse pela delonga, nossa conversa teria sido apenas curiosa. Um dos dois rapazes, o louro de cabelos lisos, falou-me enquanto seu companheiro limitou-se a ouvir com atenção (este talvez iniciasse o colega no complexo idioma de Manuel Bandeira). Tra­zia no peito o nome fictício de El­der Benquerer, um missionário ver­me­lho de uma tal Castle Deale, Utah. O outro, mais baixo, mais franzino e pardo era natural do Maranhão, e a­tendia pelo mesmo nome, Elder. Este úl­timo Elder contou que morou em Pires do Rio, e eu informei que foi lá que nasci. É verdade que essa cidade do interior goiano não foi para mim, aos trinta e tantos anos, mais do que um berço puramente imaginário, tão im­pro­vável quanto... o Indostão, é claro.

Foi ao escutar o forasteiro que Borges se intrometeu entre nós, com sua mania de replicar a realidade. Julguei disparatosa a história que Benquerer se pôs a me contar, absolutamente certo de sua veracidade. Quanto ao livro que me vendeu — eu o comprei como um objeto curioso, mas, verdade seja dita, nunca tive paciência de lê-lo (já nem sei mais onde o guardei) — seria trabalho de uma civilização do oriente médio. Povos dessa região atravessaram não sei que oceano e vieram parar em nosso continente. Curioso é que tenham alcançado o território norte-americano, onde também despencou a ogiva do Super-Homem. Não quis, entretanto, parecer deselegante com minhas ironias e deixei que concluíssem sua exposição.

Tive a impressão de que falávamos sobre fábulas e não sobre fatos, sobre Atlântida e não sobre o Oriente. Os arqueólogos e historiadores legaram informações pre­cisas sobre as populações originárias desta região: medos, partos, cassitas, hititas, cananeus, jebuseus. Que eu me lembre, nada sobre os nefitas. Faço um desconto, porém, e suplicaria desculpas aos meus visitantes: é que minha opinião teve o dom de juntar um cético a um leigo.

Aliás, que eu seja apenas um ignorante é a mais pura verdade. Nunca ostentei ferrenhamente um credo. Qualquer instituição me é suspeita, pelo simples fato de agregar pessoas: a conjugação dos homens trás consigo a força e o poder, mas também o teatro, inevitavelmente. Até a juventude eu quis acreditar nas associações, mas as próprias pessoas levaram-me a des­confiar delas e de seus objetivos.

O tal livro que os missionários trouxeram é uma imitação da Bíblia, com profetas, mandamentos e povo eleito. A despeito do meu ceticismo insignificante, um estado inteiro da América acredita na realidade dessa história e no profeta Joseph Smith, recebedor de algumas placas e sucedâneo de Moisés. Seus seguidores repetiram mitos antigos e atravessaram milhares de quilômetros até se internarem, também, num deserto, que (eu me ative) é feito de areia: a matéria-prima dos espelhos. O tom é fantástico, mas mais fantástico ainda é que eu não estou inventando nada.

Isto não poderia mesmo se chamar ficção, que é o que são as peças borgianas. Isto aqui, caro leitor, é a mais assombrosa realidade, motivo suficiente para que a confusão entre mestre e admirador seja apenas aparente.

Benquerer lembrou-me uma gasta fabulação: a de que os Estados Unidos souberam com mestria confundir o seu destino com o de Israel. Recapitulo para o leitor: os perseguidos de Tutmés I foram os mesmos que perseguiu a intolerante coroa dos Stuarts; o deserto dos 40 anos foi o mar do Myflower (e certamente a penosa travessia de Brigham Young e seus adeptos pelo Meio-Oeste); a Terra Prometida a Nova Inglaterra, aonde, decerto, também abundaram o mel e o leite; o povo eleito de Deus, os norte-americanos, entre os quais Kissinger e Leo Strauss, que escreveram uma parte da história, uma página torpe e decadente. Talvez o fim esteja mesmo próximo.

Quem sabe se Canaã não é ex­tensa como o mundo e nela preservaram-se muitos filisteus, aos quais é necessário declarar a sua guerra? Não sem perplexidade ou assombro, pressenti pela primeira vez, sob o auspício de meus simpáticos visitantes do Norte, como os espelhos de Borges são fatos da realidade, bem próximos de nós. Assim como esta imitação, deliberada e naturalmente imperfeita.

J.C. Guimarães é ensaísta, contista e historiador.

via Revista Bula

Um dia de atraso

Paulo Lima Definitivamente, para o Feitosa aquela não foi uma das melhores manhãs. O chefe havia brigado com a a­mante, o faturamento não saiu do lugar e ele chegara no­va­men­te atrasado ― a terceira vez na mesma semana. Um recorde in­ve­jável para uma quarta-feira. Seu único consolo: naquele dia tra­balharia apenas no período matutino. Conseguira uma dispensa programada para ir ao mé­dico à tarde ― um hábito carioca na capital paulista. “Que ninguém desconfie da treta”, pensou. Alguém abre a porta de sua sala e avisa que a direção marcou uma reunião para as 13h00. “Ninguém poderia faltar”, insistiu o mensageiro. A ênfase era proposital, pois era sabido que o Feitosa programava nem retornar após o almoço. Justo naquela tarde a qual, depois de muitos “amanhã, quem sabe”, se rendera aos apelos da esposa para assistir a um filme no cinema, coisa que ele simplesmente odiava. Tinha que ser à tarde, pois de noite as crianças não deixavam e nos fins de semana os avós acampavam em sua casa. Na sua simplicidade, não conseguia entender por que, tendo em casa um videocassete, tinha de enfrentar o trânsito louco da velha Sampa para ver “O Silêncio dos Inocentes”, sucesso absoluto nos anos 1990. E agora, aquele maldita reunião. [caption id="attachment_9638" align="alignleft" width="300"]Cultural_1885.qxd Foto: M. File[/caption] Sabia que o chefe perdoaria a amante, mas nunca um fun­cionário ― especialmente ele ― que faltasse a um compromisso importante. Ligou para a esposa, avisou que iria direto do trabalho, levou uma bronca da patroa indignada com o fato de se aprontar toda para se encontrar com homem sujo e, ainda por cima, ficou sabendo que o sogro e sua digníssima também iriam. Não temia pelo sogro, um psiquiatra aposentado cuja única neurose era uma inexplicável obsessão por pontualidade. Temia, sim, pela jararaca, que insistia em dizer à filha que seu marido era um pervertido, atiçando um ciúme que por si só já ameaçava as sombras. Mas não estava em condições de exigir o que quer que fosse e confirmou para as 16h30. “Três horas me darão uma boa margem de manobra”, concluiu. Não, não era o seu dia. A reunião terminou as 16h00 e o cinema ficava a pelo menos 40 minutos do escritório, em condições normais de trânsito. Como havia garoado, a Marginal Tietê já era o centro das atenções. Saiu apressado, xingando intimamente o patrão pelas indiretas que insistentemente lhe dirigiu durante todo o tempo, esbarrou na secretária que manchou de batom vermelho o ombro de sua camisa branca e alcançou o carro já pensando numa boa explicação para a mais ciumenta das primeiras-damas. Olhou para o relógio, respirou fundo e arrancou, decidido. Não chegaria atrasado mais uma vez. No caminho, perdeu a conta dos sinais vermelhos que atravessou. E, com certeza, um dia pediria mil perdões ao dono do Del Rey (ou teria sido um Monza?) que amassou a lateral do seu Uno Mille, por culpa de sua justificada pressa. Estacionou na porta do cinema às 16h40. O sogrão apenas olhou para o relógio. A mulher e a sogra não tiravam o olhar de sobre o ver­melho comprometedor que lhe decorava a camisa. Cumpri­mentou a todos sem graça, comprou os bilhetes e passou por último pela roleta, explicando ao velho que acabara de assaltar um banco, coisa que normalmente demora mais do que o previsto. Nin­guém sorriu com a piada. As mulheres continuavam sérias, co­mo que prometendo exigir uma ex­plicação no momento oportuno. Sem dúvida, todo homem tem seu dia de cão e aquele fora dedicado ao Feitosa. Na mesma tarde, ao mesmo tempo em que corria para chegar na hora marcada, um casal corria por ruas próximas após assaltar um banco, tendo causado a morte de uma velhinha que estava no local e sofria do coração. Dirigiam um Uno Mille prateado, que também se chocou com vários carros, tendo sua placa anotada às pressas por um guarda de trânsito, com as possíveis inscrições: PQ-1381. A do Feitosa era PQ-1831. Fim do filme, efusivamente elogiado pelo sogro, as senhoras não pareciam tão animadas. Ao sair do cinema, o inusitado: os quatro foram abordados por três policiais que apontavam suas armas para o matador de serviço. Além disso, uma equipe da Rede Globo apontava suas câmaras para o grupo, um batalhão de fotógrafos e repórteres de rua se digladiava por um espaço melhor, curiosos se acotovelavam e uma multidão contida por um cordão de isolamento improvisado pedia por linchamento. Um homem alto e magro, relativamente bem trajado, lhe mostra uma insígnia parecida com aquelas dos filmes americanos. ― O senhor é o proprietário deste veículo? ― falou, apontando para o Mille prateado, estacionado em local proibido. ― S-sim... Sou sim. O velho e bom Feitosa, gaguejando, já procurava se lembrar de algum amigo do Detran para se livrar da multa. ― O senhor foi visto dirigindo perigosamente este veículo com uma mulher loira ao seu lado, após assaltarem uma agência do Banco Itaú, deixando uma senhora morta no local. Sua placa foi anotada por aquele guarda ali e a lateral amassada confirma que o senhor bateu num Monza azul. Se o senhor tem algo a declarar, sugiro que nos acompanhe até a delegacia, antes que não consigamos deter a multidão. Não se sabe ao certo quanto tempo aquele homem que começou mal o seu dia ficou ali paralisado, sem conseguir pronunciar uma única palavra. Era o silêncio de um inocente, que sabia que qualquer coisa que dissesse poderia piorar o impiorável. Afinal, à sua volta, além de centenas de populares enfurecidos, estavam um oficial de justiça, a imprensa trans­mitindo o acontecimento ao vivo e do outro lado da telinha o seu patrão apreciando tudo, policiais prontos para atirar, seu carro novo já não tão novo assim ao lado de uma placa de “proibido estacionar”, um guarda de trânsito com ar convicto, sua esposa em choro convulsivo, a sogra em estado de graça e, de quebra, um psiquiatra doido para tirar o atraso. Paulo Lima é escritor e publicitário.

Belfagor

A única história curta, conhecida, de Nicolau Maquiavel. Um diabo é enviado à terra para verificar porque todos os homens que chegam ao inferno apresentam como causa única de estarem ali o fato de serem casados

[caption id="attachment_9025" align="alignright" width="400"]Santa Croce Opera Firenze Santa Croce Opera Firenze[/caption]

Nicolau Maquiavel

Nas antigas memórias das crônicas de Flo­rença lê-se uma história relacionada a um homem santíssimo que, em meio à devassidão da época, era mui respeitado por todos seus contemporâneos. Certo dia, absorto em suas piedosas meditações, conseguiu ver que as almas dos infelizes mortais que morriam pecadores e que iam para o inferno lamentavam — se não todos, pelo menos a maior parte — que a razão de tal desdita devia-se ao fato de terem-se casado. Minos e Radamanto, juntos com outros juízes do inferno, ficaram deveras admirados e, não podendo dar crédito às calúnias que tais almas lançavam ao sexo feminino, deram ciência disso a Plutão, tanto mais que tais lamentações só faziam crescer. Plutão então deliberou examinar o caso de perto com todos os príncipes do inferno para, só depois, tomar partido do que fosse julgado o mais conveniente para descobrir a falácia e saber a verdade por inteiro.

Convocou-os, pois, ao conselho, e falou nos seguintes termos: — Embora eu, meus diletos amigos, por disposição celeste e vontade do destino, e ainda que me encontre acima do juízo de Deus e dos homens, no entanto, como maior prova de sabedoria e prudência, resolvi consultar-vos hoje sobre a conduta que devo seguir num caso que poderia redundar em infâmia para nosso império. Todas as almas dos homens que entram em nosso reino pretendem ter sido causa disso a própria mulher, o que não nos parece possível. Condenando tal afirmação, talvez os levianos nos acusem de maldade; caso não o fizermos, talvez os injustos nos considerem demasiado indulgentes e pouco afeitos à justiça. Querendo evitar uma e outra acusação, e não encontrando um meio para tal, decidimos convocar-vos a fim de que nos ajudeis com vossos conselhos e façais com que este reino continue a viver sem infâmia, como sempre tem vivido.

Nenhum daqueles príncipes das trevas deixou de considerar o caso importantíssimo e de grande monta. Estavam todos de acordo em que era necessário descobrir a verdade, mas discordavam quanto à maneira de assim proceder. Alguns julgavam que se devia mandar um deles ao mundo, outros que vários, para ali pessoalmente conhecerem, soba forma humana, qual era a verdade. A outros parecia desnecessário tal transtorno: bastaria obrigar algumas almas, por meios de diversos tormentos, a confessá-la. No entanto, como a maioria optasse pela primeira opinião, foi essa a adotada. Mas ninguém se ofereceu voluntariamente para a empreitada; assim, re­correram eles a um sorteio. A sorte recaiu sobre Belfagor, arqui­diabo, que anteriormente — antes de cair do Céu — tinha sido arcanjo.

Foi com relutância que ele aceitou o encargo, mas o poder de Plutão o constrangera a executar o que o conselho deliberara e teve assim que consentir nas condições solenemente aceitas por todos. Fora deliberado que aquele em quem recaísse a sorte receberia imediatamente cem mil ducados, e com eles viria nascer no mundo. A casar-se sob a forma de um homem e a viver com a mulher dez anos; depois, fingindo morrer, voltaria e exporia a seus superiores a própria vivencia, quais eram os encargos e os incômodos do casamento. Deliberou-se também que, durante o tempo em apreço, ele ficaria submetido a todos os achaques e males a que os homens estão sujeitos, inclusive a pobreza, a prisão, as doenças e todas as desgraças que aos mortais ocorrem, salvo se por meio de engano e astúcia conseguisse livrar-se delas.

Aceitas pois as condições e os ducados, foi-se Belfagor ao mundo e, devidamente provido de cavalos e acompanhantes, entrou ele em Florença com o maior aparato. Escolhera esta cidade para domicílio, entre todas as demais, por lhe parecer a mais plausível para quem quisesse viver empregando seu dinheiro em negócios. Fez-se chamar Rodrigo de Castela e alugou uma casa no bairro de Todos os Santos (Ognissanti). Para que não pudessem lhe descobrir os antecedentes, disse ter partido da Espanha ainda criança; dali fora à Síria e a Alepo, onde ganhara tudo o que possuía; de lá viajara para a Itália e a fim de se casar num lugar mais humano e mais conforme à vida civilizada e à sua própria índole.

Era Rodrigo um moço formoso, que aparentava trinta anos. Em poucos dias demonstrara ele quantas riquezas tinha e dera provas de sua liberalidade e humanidade; logo vários cidadãos nobres, providos de muitas filhas e pouco dinheiro, lhe ofereceram seus préstimos. Entre todas, Rodrigo escolheu uma belíssima donzela chamada Honesta. Filha de Américo Donati, que tinha mais três filhas, quase em idade de se casar, e três filhos já adultos. De família muito nobre e tido em bom conceito em Florença, era no entanto muito pobre, levando-se em conta sua numerosa prole e sua condição.

Rodrigo celebrou suas núpcias com esplendor e grandeza, não descuidando de nada que seja necessário em tais circunstâncias, pois entre as obrigações que lhe foram impostas ao sair do inferno, estava a de sujeitar-se a todos os caprichos humanos; assim, logo passou a deleitar-se com as honrarias e pompas do mundo e a gostar de ser louvado entre os ho­mens, coisas que o levaram a grandes gastos. Por outro lado, não tardou muito a apaixonar-se perdidamente por sua D. Honesta e quase não conseguia viver quando a encontrava triste ou aborrecida.

Com sua nobreza e formosura, a senhora Honesta levara consigo para a casa de Rodrigo um orgulho tão desmesurado que mesmo Lúcifer não o tivera igual. Rodrigo, que podia comparar um e outro, considerava o de sua mulher infinitamente superior, e consta que ainda chegou a ser maior quando percebera o amor que seu marido sentia por ela. Imaginando ser por todas as maneiras a dona absoluta, dava suas ordens sem consideração ou piedade, e se ele relutasse a fazer as suas vontades, desatava em recriminações e injúrias, o que era para o pobre Rodrigo motivo de viva pena e aflição. Sem dúvida, por consideração a seu sogro, a seus cunhados e demais parentes, por respeito aos deveres do casamento e pelo amor que dedicava à esposa, sofria seus males com a maior paciência. Quero passar em silêncio sobre os grandes gastos a que era obrigado para contentá-la, vestindo segundo os novos costumes e as modas mais recentes, que nossa cidade varia por hábito natural; nem lembrarei que, para ela o deixar em paz, teve ele de ajudar o sogro a casar as outras filhas, o que lhe fez despender também considerável importância. Depois, querendo manter-se em boa paz com a mulher, consentiu em mandar um dos irmãos dela ao Oriente com casimira e outro para o Ocidente levando sedas, ao passo que para o terceiro irmão abriu em Florença uma oficina de ourives, em que despendeu a maior parte do dinheiro que possuía. Além disso, nas festas de Carnaval e de S. João, celebradas pela cidade inteira segundo tradição antiga, quando grande número de cidadãos nobres e ricos se honravam uns aos outros com magníficos banquetes, D. Honesta, para não ficar atrás de outras damas, queria que seu Rodrigo superasse a todos os demais com suas festas.

Tudo isso, suportava-o Rodrigo pelos motivos supracitados; apesar de gravíssimas, nem graves as teria achado se houvessem introduzido a paz em sua casa, permitindo-lhe aguardar em sossego o momento de sua própria ruína. Mas foi o contrário o que aconteceu, pois a índole insolente da esposa, além das despesas insuportáveis, carreara-lhe inúmeros aborrecimentos. Nenhum criado a aguentava, não digo por muito tempo, mas nem sequer por alguns dias. Para Rodrigo era o mais duro dos incômodos não possuir um criado que tivesse amor a sua casa. Os próprios diabos que trouxera consigo como domésticos preferiram voltar aos fogos do inferno a viver no mundo sob as ordens daquela mulher.

Assim prosseguia a vida tumultuada e inquieta de Rodrigo. Tendo já consumido nos gastos desenfreados o que recebera em espécie, começou a viver à espera das entradas financeiras que aguardava do Ocidente e do Oriente. Como ainda tivesse bom crédito, pediu dinheiro emprestado para não ficar aquém de sua condição; e já certo número de letras sacadas por ele circulavam na praça, o que logo foi percebido pelos que trabalhavam neste ramo de negócios. Já era bem precária a situação de Rodrigo quando, de súbito, chegaram notícias do Oriente e do Ocidente: aqui, um dos irmãos de D. Honesta perdera no jogo todo o dinheiro de Rodrigo; ali, o outro, ao voltar de um navio carregado de suas mercadorias, que não estavam no seguro, naufragou com toda a carga.

Mal estas novas circulavam pela cidade, os credores de Rodrigo reuniram-se. Consideravam-no um homem liquidado, mas ainda não podiam tomar providências por não haver expirado o prazo das cobranças; resolveram, pois, que mandariam quem o observasse habilmente, para que num abrir e fechar de olhos não resolvesse fugir. Por sua parte, Rodrigo, sem ver outro remédio e sabendo das obrigações de seu pacto infernal, decidiu fugir a todo o transe. Certa manhã montou a cavalo e saiu da cidade pela porta do Prato, perto da qual residia. Espalhada a notícia de sua fuga, os credores recorreram alarmados às autoridades e puseram-se no encalço dele, acompanhados não apenas de meirinhos como também de muitos populares.

Mal se distanciara da cidade cerca de uma milha, souberam eles de sua fuga, de sorte que, vendo-se perdido, resolveu Rodrigo, para melhor se esconder, abandonar a estrada principal e tentar a sorte em outras direções; porém o terreno árduo e abrupto dificultava tremendamente a sua marcha. Percebendo que era impossível seguir a cavalo, decidiu-se salvar-se a pé mesmo, deixando o animal no meio do caminho, e depois de ter muito tempo andado por entre vinhas e canaviais que cobriam os campos, aproximou-se de Pretola, detendo-se na casa de Giovanni Matteo de Bricca, um dos colonos de Giovanni dei Bene. Felizmente àquela hora chegava também ao local o próprio Giovanni Matteo para alimentar o gado. A ele se recomendou o fugitivo, prometendo-lhe que, se o salvasse dos inimigos que o perseguiam para fazer com que morresse na prisão, o tornaria rico, coisa que lhe daria prova antes mesmo de sair de sua casa; se não o fizesse, concordaria que o próprio camponês o entregasse a seus adversários.

Embora simples camponês, era Giovanni Matteo homem de coragem. Pensou que nada tinha a perder se tentasse salvá-lo, e prometeu-lhe auxílio. Em frente à casa havia um monte de estrume: foi lá que o escondeu, cobrindo-o de caniços e ramos colhidos para fazer fogo.

Mal acabara Rodrigo de esconder-se, seus perseguidores chegaram. Por mais ameaças que fizessem a Giovanni Matteo, não conseguiram fazê-lo confessar o que tinha visto. Assim, partiram, e depois de procurá-lo todo aquele dia e mais o seguinte, retomaram exaustos para Florença.

Afastada a agitação, Giovanni Matteo tirou Rodrigo do esconderijo e pediu-lhe que cumprisse a promessa, ao que Rodrigo lhe disse: — Irmão meu, tenho uma grande obrigação para contigo e desejo cumpri-la de qualquer maneira; e para que acredites em que eu possa fazer, vou dizer-te quem sou.

Nisso revelou a sua identidade contando em que condições saíra do inferno e como se casara. Em seguida, explicou-lhe como pretendia fazê-lo rico. O seu plano, resumindo, era o seguinte: quando Giovanni Matteo soubesse que alguma mulher estava tomada pelos espíritos, devia saber que era ele, Rodrigo, que se apoderara dela: nem sairia do corpo da vítima sem que Giovanni Matteo viesse a tirá-lo: assim, poderia o camponês pedir aos parentes da endemoninhada o preço que bem entendesse. Giovanni Matteo aceitou a proposta e Rodrigo partiu.

Decorridos alguns dias, propagou-se por toda Florença a notícia de que a filha de mestre Ambrósio Amadei, casada com Bonaiuto Tebalducci, estava tomada pelos maus espíritos. Não descuidaram os parentes de nenhum dos remédios a que se recorria em casos semelhantes; assim, puseram-lhe na cabeça o crânio de S. Zenóbio e o manto de S. João Gualberto. Rodrigo, no entanto, zombava de tudo aquilo. E para dar a entender a todos que o mal da moça era um espírito e não qualquer imaginação fantástica, falava em latim, discutia coisas de filosofia, descobria os pecados de muita gente, desmascarando-os, entre outros, a um frade que guardara em sua cela durante mais de quatro anos uma mulher vestida à maneira de um fradinho, coisas que a todos enchiam de espanto. Estava Mestre Ambrósio irritadíssimo e, havendo experimentado em vão todos os remédios, perdera já a esperança de curar a filha, quando Giovanni Matteo veio ter com ele, prometendo-lhe a saúde da filhinha se lhe dessem quinhentos florins para comprar uma propriedade em Pretola. Mestre Ambrósio aceitou a proposta. Então Giovanni Matteo, depois de mandar dizer certo número de missas e executar certas cerimônias para embelezar a coisa, aproximou-se da moça e segredou-lhe ao pé do ouvido: — Rodrigo, aqui estou eu esperando que me cumpras a promessa.

Ao que Rodrigo respondeu: — Com o maior prazer. Mas isto não chega ainda a te tornar rico. Eis por que, apenas saído daqui, entrarei na filha do rei Carlos de Nápoles, e de lá não sairei sem que me chames. Exigirás então uma recompensa segundo a tua vontade, e depois disso não deverás mais me importunar.

[caption id="attachment_9026" align="alignright" width="620"]M. File M. File[/caption]

Nisso saiu do corpo da moça doente, para a alegria e admiração de toda Florença. Não tardou e espalhava-se por toda Itália a mesma desgraça ocorrida, desta vez com a filha do rei Carlos. Como os remédios dos frades de nada adiantassem, o rei, que ouvira falar em Giovanni Matteo, mandou que ele fosse conduzido até ele. Chegando a Nápoles, o camponês, depois de algumas cerimônias de fachada, curou-a. Mas antes de sair do corpo da princesa, Rodrigo disse-lhe: — Bem vês que hei cumprido a minha promessa de enriquecer-te. Agora que re­compensei o serviço que me fizeste, nada mais te devo; assim, aconselho-te a que não mais apareças à minha frente, pois se te fiz benefícios até aqui, daqui por diante poderia causar-te dissabores.

Giovanni Matteo retornou a Florença muito rico, pois o rei lhe havia dado mais de 50 mil ducados, e não pensava senão em desfrutar de sua riqueza, com muito gosto e sossego, sem cogitar que Rodrigo pudesse, em qualquer época, lhe causar algum dissabor. Bem cedo, no entanto, se desiludiu, ante a notícia de que uma filha de Luís VII, rei da França, estava possuída pelo demônio. Notícia essa que tumultuou de todo a alma de Giovanni Matteo, que não conseguia parar de pensar na autoridade daquele monarca e nas palavras que lhe dissera Rodrigo. De fato, o rei, não encontrando remédio para o mal de sua filha, e tendo ouvido falar da capacidade de Giovanni Matteo, mandou chamá-lo, primeiro através dos correios, simplesmente; mas em vista de que o homem alegava certa indisposição, viu-se o rei forçado a recorrer ao governo de Florença, o qual obrigou Giovanni Matteo a obedecer.

Desesperado, foi Giovanni para Paris, onde foi logo explicando ao rei que efetivamente curara já certas pessoas endemoninhadas, mas que isso de modo algum significava que soubesse ou pudesse curá-las todas, pois algumas havia de natureza tão pérfida que não temiam ameaças nem encantamentos, nem religiões, seja qual for; que, no entanto, estava disposto a fazer o que pudesse, mas pedia desculpa e perdão se não viesse a ser bem-sucedido. Enfastiado, o rei declarou que, se não lhe curasse a filha, mandaria enforcá-lo. Viu-se Giovanni Matteo em péssimos lençóis, mas fez de sua fraqueza sua força: mandou vir a possuída e, aproximando-se-lhe do ouvido, recomendou-se humildemente a Rodrigo, lembrando-lhe o benefício prestado e como seria ingrato se o desamparasse naquele imbróglio. Rodrigo então assim reagiu: — Traidor infame! Como te atreves a aparecer perante mim? Acreditas que podes te vangloriar de ter enriquecido à minha custa? Pois hei de mostrar-te a ti e a todos que sei muito bem dar e tomar qualquer coisa, como melhor me prover; e antes que partas daqui, farei enforcar-te, custe o que custar.

Dando-se por perdido, Gio­van­ni Matteo, não vendo outro remédio, resolveu arriscar a sorte por outro meio. Mandou que levassem dali a possuída e disse ao rei: Senhor, como falei a Vossa Majestade, há espíritos tão malignos que com eles ninguém pode; pois este é um dos tais. Mas quero fazer uma última tentativa: se for bem-sucedido, Vossa Majestade e eu teremos alcançado o nosso objetivo; caso contrário, estarei nas mãos de Vossa Majestade, que saberá ter comigo a compaixão que faz jus a minha inocência. Ordene Vossa Ma­jestade que se erga na Praça de Notre Dame um grande palco onde caibam todos os barões e todo o clero desta cidade; mande orná-lo de panos de seda e de ouro, e mande erguer no meio dele um altar. Preciso que no domingo próximo Vossa Ma­jestade se reúna no estrado do palco com todos os seus príncipes e barões, numa pompa real, vestidos de trajes ricos e esplêndidos. Depois da missa celebrada, Vossa Majestade fará vir a possuída. Preciso, além disso, que num ângulo da praça haja pelo menos vinte pessoas reunidas com trompas, cornetas, tambores, cornamusas, címbalos, timbales e outros instrumentos de toda sorte.

Quando eu erguer o chapéu todos deverão tanger seus instrumentos e encaminhar-se na direção do estrado. Estas coisas, juntas com alguns remédios secretos, poderão fazer, julgo eu, com que o espírito maligno desapareça.

Tudo isso o rei ordenou. Chegou a manhã de domingo. O palco improvisado estava cheio de personalidades, e a praça, cheia do povo. Celebrada a missa, a endemoninhada foi conduzida ao estrado por dois bispos e muitos senhores. Ao ver tamanha multidão e tanto aparato, Rodrigo ficou meio tonto e disse consigo mesmo: “Que será que inventou esse traidor miserável? Será que está pensando me espantar com toda essa pompa? Ignora que estou acostumado a assistir as pompas do Céu e fúrias do Inferno? Haverei de castigá-lo de qualquer maneira”.

Quando, logo depois que Giovanni Matteo se aproximou novamente e lhe pediu que saísse, Rodrigo assim lhe falou: — Bela ideia a tua, para dizer a verdade! Que pensas alcançar com todo esse aparato? Acreditas escapar assim ao meu poder e à ira do rei? Ladrão miserável, farei com que te enforquem haja o que houver!

Como não parasse de dizer tais palavras, acrescentando-lhes outras menos injuriosas, Giovanni Matteo houve por bem não perder mais tempo. Ergueu o chapéu, todas as pessoas encarregadas de fazer barulho tocaram seus instrumentos e com rumor que atingia o Céu foram-se aproximando do estrado. O barulho aguçou os ouvidos de Rodrigo que, sem entender do que se tratasse, pediu assombrado que Giovani Matteo lho explicasse, e Giovanni respondeu-lhe de forma bem perturbada: — Ai, meu Rodrigo, é a tua mulher que vem te buscar! Foi, em verdade, maravilhoso ver até que ponto Rodrigo horrorizou-se ao ouvir o nome de sua mulher. Tamanho lhe foi o espanto que, sem indagar a si mesmo se seria possível que ela ali estivesse, fugiu sem dizer uma palavra e assim deixou a princesa livre; preferiu voltar ao Inferno para dar conta de suas ações a submeter-se outra vez ao jugo matrimonial, suportando tantos desgostos, aborrecimentos e perigos. E eis aqui como Belfagor, de volta ao inferno, pode dar testemunho dos males que uma mulher leva consigo a um lar, e como Giovanni Matteo, que foi mais astuto do que o diabo em pessoa, pôde retornar a sua casa cheio de alegria.

Conto publicado no livro “Os Cem Melhores Contos de Humor da Literatura Universal”, organização de Flávio Moreira da Costa, Editora Ediouro. Tradução de Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holanda.

O automóvel

Vem a vida em sua energia secreta e natural, intraduzível e irrevelada, cozinhando devagar suas transformações de cada dia, em silêncio. Conspirando para fazer o nosso tempo passar mais devagar

Martiniano

J.C. Guimarães Especial para o Jornal Opção cul2Martiniano Almeida Rossi, 61 anos: não inventarei um personagem. É este aí mesmo. Militante político, publicitário e engenheiro (gostaria nessa ordem, provavelmente), foi um dos fundadores do nosso partido. Foi também um líder de caráter, idealista e coerente. Faleceu num sábado, 29 de agosto. Um dia antes me ligara: era o último de sua vida — como poderia saber? —, mas estava interessado numa coisa de somenos importância, diante da enormidade do passo seguinte. Queria saber se eu topava pleitear uma vaga na direção municipal. Com a voz estrangulada pela rouquidão, quase não entendi o que falava. Propora indicar o meu nome para a chapa vencedora; se dispôs a defendê-lo como postulante do grupo. Aceitei sua ilusão e respondi-lhe com firmeza, como se travássemos um despreocupado diálogo entre Esculápio e Ganime­des. Foi a última vez que nos falamos. Antes que morresse nos encontramos algumas vezes, em sequência. A quarta vez foi há duas semanas, em sua casa, nas proximidades da Praça Cívica. O motivo, ordinário, era o partido: o partido era o elo que nos unia e nos separava. Marcus Messner, o egoísta, não tinha mais o gosto religioso das confrarias, como seu amigo de outros tempos, que se tornava, gradativamente, uma relíquia histórica. Messner achava insuportável a ideia de viver e morrer em função do grupo, como se o mundo permanecesse dividido entre comunistas e capitalistas: talvez o quiséssemos; talvez fosse insuportável perder o chão, mas a vida não liga. A história é a maior potência da história. Desenraiza-nos, atropela nossas paixões. É invencível. Entre debiques e fumaradas, Mar­tiniano se divertia com reuniões muito mais do que eu — como aliás se divertiu, naquele dia, no início da tarde. Na roda en­contrávamos eu, ele, uma professora do primário, um casal de funcionários públicos, uma em­pre­gada doméstica e um jornaleiro gordo e bonachão, que descia de Nerópolis: Daniel, a erva daninha. Quase nunca dava certo de nos encontrar: éramos poucos e pouca a motivação. Suspeitei, por isso, que a urgência do seu caso foi mais interessante do que o pretexto original: pela primeira vez havia um acordo mútuo, entre nós. Com muito custo nos encontrávamos durante o ano e, agora, num único mês conseguimos articular duas reuniões em sequência: foram o terceiro e o segundo encontros. Se morresse um de nós a cada mês, em breve passaríamos de uma centena. Tentamos trazer outros elementos e a conversa estendeu-se até a uma importante entidade de trabalhadores rurais. Vislumbramos uma terceira reunião com um número dobrado de participantes. Só que não houve a terceira reunião, nem houve mais planos. As adesões não se confirmaram. Fracas­samos pela enésima vez, admiravelmente quixotescos. Na noite seguinte retornei so­zi­nho à casa de Martiniano, a seu pedido, pois ele queria avaliar o quadro. Recolhemo-nos na área dos fundos, de parelha com a cozinha. A empregada trou­xe à mesa pães de queijo assados na hora e um saquinho de soja torrada. Martiniano a­briu uma Bohemia e tomamos juntos. Bem baixinho, ouvi uma valsa de Strauss vindo de seu escritório (por alguma motivo eu me lembrei das músicas incidentais, nos filmes). Não era na verdade uma valsa de Strauss, mas eu não sabia que música era aquela e acreditei que ele poderia gostar de Strauss. Tinha seus refinamentos burgueses, apesar da filiação comunista. Sua casa era enorme e ele possuía um Fritz Dobbert, jazendo solenemente num dos cômodos espaçosos. Uma litografia de Siron, quadros de Antônio Poteiro e de outros artistas de renome enfeitavam as paredes da sala de visitas. Martiniano vivia bem, da forma que se merece, e eu não poderia censurar aquele amigo dos pobres por ter conquistado alguma dignidade. Na estante destacavam-se, ao primeiro golpe de vista, as grossas lombadas vermelhas das biografias de Che, Stálin e Mao, vidas pelas quais nunca me interessei. Enquanto degustávamos os aperitivos, olhei para ele e sugeri: “Vamos esquecer a formação do grupo. Já há muitos partidos no partido, não acha?” Preparei-me para ser duramente altercado, pois ele envolvera-se na causa a ponto de ainda mandar tomar no cu, como fazia todas as vezes em que se sentia contrariado. Era bom sinal que me mandasse tomar no cu, coisa que eu não tinha coragem de mandá-lo fazer. Era bem mais velho do que eu e, apesar de ser liberal e curtidor, uma espécie de respeito se me impunha e eu não conseguia tratá-lo com tanta intimidade. Apesar da doença Martiniano teimava em viver com certa normalidade seus últimos dias, e por isso portava-se como um imaculado. Tentando enganar-se, acho, ele agia como se tudo estivesse sob controle, embora porcaria nenhuma estivesse mais sobre controle. Ainda me ligava com a frequência habitual, passava e-mails, jogava paciência em seu computador, bebia cerveja e interessava-se pelos destinos do grêmio. E continuava fumando um cigarro atrás do outro, mais ansioso do que nunca. Eram expressões de seu interesse pela vida. Como repreendê-lo pela anestésica carteira diária de Carlton? Se tinha medo, não é o que desejava transparecer, irônico ainda, risonho ainda. Um lapso e a certeza: vai se recuperar, por que não? Com tal interesse pela vida, eu poderia jurar que daria a volta por cima e faríamos muitas outras reuniões — quem sabe ainda viraríamos o mundo de pernas pro ar, como ele sonhava! Erámos sete personagens típicos, que lembravam o germe das revoluções inacabadas. Que me lembravam “A Jangada”, de Gericault... De qualquer modo achei sinceramente que seria possível: a vida não é um amontoado de absurdos? Tudo pode mesmo acontecer, se você acredita, se você se empenha. Para minha surpresa, ante a ideia de abortar nossos movimentos, Martiniano apenas olhou para mim e deu um sorriso de aceitação. Isso não fazia parte do script. Tive a impressão de que o sorriso dele flutuara fora do tem­po. Pensamentos terríveis minavam a atenção de Martinia­no, enquanto ele sorvia a cerveja e tragava um cigarro, que o tragava. A intervalos tossia e pigarreava, massageando a garganta enfermiça. O pijama de seda deixava seu aspecto ainda mais lívido e convalescente: quase morto. Não respondeu nada durante alguns minutos, sentado, quieto. Limitou-se a contemplar o que já não cabia em pensamentos. Dado instante, fe­cha­ra os olhos e roçara a testa, a­fo­gando-se para dentro de si. Eu es­tava vendo derreter uma estátuas de cera, como aquelas dos mu­seus. Novo trago. Olhei de novo; novo e discreto sorriso, eloquente de doer (um amigo por perto pode servir de boia no pânico, eu recordaria nas próximas horas). Deixar tudo de lado já não soava uma perda tão importante assim. Dali a pouco eu me despedi com a trivialidade de sempre, sem saber, ignorante, que nunca mais apertaria a sua mão. O último contato e a última palavra entre amigos podem ser de uma banalidade impressionante. Assim aconteceu entre eu e ele. Na segunda-feira, 31, ao chegar ao trabalho, meu diretor me surpreende ao dizer que Martiniano “morreu”. Incrédulo, fui ao jornal do dia, olhei e lá estava ele, Martiniano, estampado sob a nota ruim e inequívoca, despertando-me para a realidade, mais irreal do que o sonho. Era mesmo ele: o homem de chapéu de feltro e barba destruída pela quimioterapia — um líder perdido para a doença. Mas, alegre, continuava sorrindo para nós, como se fosse imune. A alegria que é a maior recusa, o maior protesto. Vá lá o corpo — mas o que são feitos dos sentimentos de uma pessoa, quando ela morre? Caberá mesmo numa cova o coração de um homem? Leio o conteúdo inacreditável, conheço sua agonia e descubro que tinha sido sepultado no dia anterior. Enquanto morria eu traçava planos de futuro, sem nunca imaginar como foi duro o seu final de semana. Hemorragia, parada cardíaca e óbito. Conhecia Martiniano há três anos. Apesar da diferença de idade que nos separava, quis de mim um amigo, desses de sair para o boteco. Fiquei devendo a ele uma rodada, que para sempre teceu um vínculo de afeto entre nós. Nunca lhe perguntei se acreditava na vida após a morte (não sofria a doença da gravidade, como eu). Se ela existe, saberá agora que não resisti de fazer esse conto, com feitio de crônica, em sua homenagem. As palavras me atormentaram e tive de me livrar delas, para sobreviver sem omissão. Na­quela mesma segunda-feira, à noite, eu conferi no celular as chamadas recebidas e lá estava, pela última vez, o seu nome: “Martiniano 28/08/09 15:22”. Fiquei olhando seu nome, o dia e a hora cravada. Deti-me por um momento, perplexo com esses dados, aparentemente insignificantes. Eu estava agora diante do último criptograma, diante já do mistério insondável e surpreendente que nos assusta feito crianças. J.C. Guimarães é escritor e crítico literário.

O preferido do rei

Carlos Trigueiro Untitled-3  

Nos tempos da reconquista do solo ibérico aos muçulmanos, quando pequenos feudos formavam o reino de Leão, as façanhas de Valderico corriam de boca em boca. Cavaleiro descendente de guerreiros celtas e visigodos saía-se vencedor em qualquer tipo de combate ou escaramuça. Os inimigos o temiam. E tremiam ao saber de seus feitos. Granjeava admiração ou inveja de seus aliados.

Ficando a sua bravura pouco aquém do disse-que-disse — a mídia daqueles tempos —, a fama do cavaleiro acabara vazando as fronteiras asturianas. E como cruzar a ponte entre a fama e a lenda era questão de encompridar a língua, disso se encarregavam os bufões palacianos — marqueteiros medievais — sabedores de que a mente humana costuma dar pés ao que vê, e asas ao que imagina.

Enfim, os sarracenos estremeciam ao ver a soberba figura de Valderico senhoreando sua montaria, com o brial de cavaleiro e a armadura reluzente, destroçando tendas, barbacãs ou guaritas, e espalhando mortes a golpes de espada, maça, lança, ou com os próprios punhos. Naquelas liças encarniçadas, nunca um infiel sobrevivera à fúria do guerreiro asturiano. Tal bravura o tornara vassalo preferido do rei.

Mas como tudo neste mundo tem seus prós e contras, a distinção concedida a Valderico nos campos de batalha deixava o monarca pouco confortável na paz do cotidiano: cobria-o de honrarias ou concedia-lhe favores. As honrarias seguiam os ritos das justas medievais. Já os favores tomavam caminhos sinuosos, pessoais, não raro levando o rei a fazer vista grossa aos caprichos sentimentais do cavaleiro. De fato, além de temível nos campos de guerra, Valderico era rastreador compulsivo dos fetiches femininos.

Conhecido o lado glorioso do cavaleiro, forjado e temperado nos campos de batalha, passamos àquelas lides, não menos perigosas, entre as muralhas dos castelos, nem menos inocentes travadas nos redutos acortinados das alcovas, sob a pureza contestável dos lençóis.

Ouviam-se nos corredores, torres, paços, pontes, guaritas, muralhas, em todo o castelo, que raras mulheres da corte conseguiam rechaçar os assédios do herói.

Numa ocasião, havendo o rei se deslocado às terras galegas, não muito longe do que viria a ser o caminho de Santiago, coincidiu na ausência do soberano que o seu vassalo preferido retornasse antecipadamente de vitoriosa missão contra os sarracenos nas fronteiras ao sul. Mal o herói se desvencilhara das parafernálias de combate, irrompeu nos alojamentos da armaria do castelo um mensageiro real.

— Nobre cavaleiro Val­de­rico, trago mensagem de Sua Al­teza, a rainha!

Embora surpreso com a presença tempestiva do mensageiro, Valderico não se alterou. — Com que mensagem me honra Sua Majestade?

— Sua Majestade ordena-lhe comparecer aos seus aposentos reais, amanhã, uma hora antes do pôr do sol.

— Diga à Sua Majestade que o seu fiel vassalo, com grande hon­ra, ali estará na hora aprazada. Já o mensageiro iniciava mesuras para afastar-se, quando ocorreu a Valderico perguntar-lhe.

— Aconteceu alguma coisa fora dos costumes à Sua Majes­tade durante a ausência do rei?Estou pouco informado, pois estava a combater o inimigo infiel além das margens do Douro.

— Nobre cavaleiro, apenas sei que Sua Majestade, a rainha, anda maldisposta nos últimos dias. Agora, se me permite…

— Vá, vá mensageiro, e confirme à rainha o que já lhe transmiti.

No dia seguinte, a natureza cobriu de beijos ensolarados o verde úmido que ainda hoje engalana os montes asturianos. Valderico preparou-se dignamente, e dois pajens deram-lhe banho numa tina adaptada ao enorme guerreiro. Sendo costume somente dois ou três banhos daquele tipo por semestre, talvez por ano, uma visita aos aposentos da rainha requeria sacrifício de imersão e esfregões extras.

O pôr do sol fugia pela encosta dos montes, quando Valderico atravessou garbosamente a ala do castelo que levava aos aposentos da rainha. O brial de cavaleiro cobria-lhe vestes palacianas. Espada curta embainhada na cinta. A guarda real reconhecendo o herói, imediatamente deu-lhe passagem nos corredores sombrios.

O mesmo ocorreu no vestíbulo que antecedia a câmara real, quando cinco aias que guardavam a entrada reconheceram Valderico. Três delas lançaram-lhe olhares tão afiados quanto cimitarras sarracenas. Talvez numa tentativa imaginária de cortar-lhe as tramas do brial, suas vestes, e ver o gigante guerreiro despido. As outras abaixaram a cabeça com reverência desconfiada, mas pensamentos suspeitos. Todas suspiraram quando, na passagem do guerreiro, recendeu o cheiro inconfundível do banho tomado. Mas na cabeça de Val­derico transitou outro gênero de questão, qualquer coisa como a diferença entre montar selas ou saias.

Vencidos corredores, vestíbulos, guardas e aias, Valderico em carne, osso e brial, apresentou-se à Sua Majestade, ajoelhando uma das pernas no chão, como era reverência de praxe nas saudações aos soberanos. Estando a rainha deitada sobre grandes almofadas no leito, o guerreiro achou por bem mencionar preocupação com a sua saúde.

— Vossa Majestade ordenou que estivesse aqui uma hora antes do pôr do sol, pois bem, cá estou, em carne e osso, cavaleiro Valderico de Santullano, Valdedios, Lena, Oviedo, Naranco e Leon…, mas a minha nobre senhora parece não estar bem-disposta…

— Cavaleiro Valderico agradeço-vos a presença, mas antes de qualquer conversa, melhor saberdes que, por minha ordem, entre este pôr do sol e a aurora de amanhã, todos os meus guardas, servos, aias e camareiras vão empenhar-se em tarefas longe da câmara real, de modo que, de agora em diante, tudo o que falarmos, tudo o que aqui ocorrer, tudo o que aqui fizermos, ficará entre estas frias paredes, nós dois, e Deus, talvez. Ordeno-vos juramento à rainha!

— A ordem de Vossa Majes­ta­de será cumprida por este fiel ser­vo mesmo que eu tenha de apressar o pôr do sol ou retardar a au­ro­ra com a espada que trago na cin­ta. Tem meu juramento, nobre Senhora!

— Alça-te! Era o que esperava ouvir do maior herói do reino. Pois, pois, valoroso e fiel Valderico, durante algumas horas, vamos tratar-nos de tu, e guarda a tua espada para outras causas… Sabes tu que, desde menina ouço teus feitos e glórias, e todos falam de ti, e… bem… sempre sonho contigo…

— São exageros majestade, apenas cumpro o meu dever de vassalo preferido do rei… — Tentou argumentar Valderico.

— Ouve Valderico! O rei está ausente, e pode até morrer nos campos de batalha, está ficando velho e fraco, e tu sabes que ainda não entrei na carreira dos trinta. Ora, pois, quero então saciar agora mesmo todos os meus desejos em relação a tua figura de cavaleiro e herói, quero ouvir de viva voz aquilo que mais te dá prazer nos campos de batalha, pois o tempo passa e teus feitos parecem cada vez mais assombrosos, excitam-me a imaginação, caso compreendas um pouco da alma feminina!

Estando os heróis sempre prontos a enfrentar o inusitado, Valderico pareceu não se alterar, e maior foi a dificuldade de mudar o tratamento pronominal ordenado pela rainha do que, naquele momento, apagar do pensamento a figura do rei. Então, reiniciou o discurso com eufemismos logo envolvidos pela excitação.

— Exageram minha nobre rainha, apenas luto com denodo por fidelidade aos meus senhores e à causa cristã. Verdade que herdei de meus ancestrais visigodos desejo insaciável para o combate, principalmente o corpo a corpo. E me apraz nos campos de batalha montar meu cavalo, e com a lança retesada derrubar o inimigo de sua montaria, e… bem, depois sentir o infiel estremecer por inteiro ao trespassar-lhe minha espada! E também…

Valderico falou, falou, e falou. E tanta era a vibração que instilava na voz que gotas de suor lhe escorreram da fronte e se infiltraram nas barbas. Mas como homens de ação são objetivos e não se perdem em elucubrações, logo constatou que tanta vibração não vinha da fala, mas do falo.

Enquanto o herói discursava, a rainha parecia enfeitiçada. Rito estudado, soltou os longos cabelos de ouro, livrou-se de almofadas e lençóis, içou o tronco esbelto e, com movimento estratégico preciso, deixou metade do corpo níveo cruzar as fronteiras do decoro. Em seguida, passou da estratégia à tática, apontando agressivamente na direção de Valderico dois aríetes bicudos e, claro, majestosos. De repente, a boca em arco disparou seta indefensável.

— Ordeno que tolhas o brial de cavaleiro e todas as tuas vestes, para que eu possa ver tuas origens celtas e visigodas, tuas armas naturais.

— Majestade!…

— Jurastes…

— Jurei... minha rainha...

Até então nenhuma cimitarra moura fizera zunido semelhante àquele que Valderico sentiu nos ouvidos. Estratégia por estratégia, tática por tática, fidelidade ao rei por fidelidade à rainha, vendaval de­sarrumou-lhe as ideias por um instante, e como a vida é feita de mo­mentos e, às vezes, há mo­men­tos que valem a vida inteira, a arquitetura celta e visigoda do seu inconsciente desabou com um grito tribal, interior e milenar: “Guerra é guerra!” E mais rápido que o voo do falcão, tolheu o brial e despiu-se .

— Pronto minha rainha! Juramento é juramento, eis-me, em guarda, com as minhas armas naturais.

— Ordeno ao maior herói do reino que suba ao leito, e por merecimento e glória, trave com sua rainha uma contenda amorosa e real!

E foi assim que, lança em riste, sob o lusco-fusco do pôr do sol, numa atmosfera real de um lado e irreal de outro, Valderico travou com a rainha confronto amoroso privativo dos reis. Noite alta e a lua entre sombras, após o calor da luta, dos infindáveis movimentos e golpes de parte a parte, sem vencedor nem vencido, desejos saciados, torpor inevitável anunciou a trégua final. Um silêncio parecia esmagar a ambos, lado a lado. A atmosfera de sonho começou a dissipar-se. E como na vida tanto os gozos fruídos quanto os sonhos a desfrutar têm um preço, um custo, um ônus, ou que nome se queira dar, instalou-se nos amantes o pêndulo da reflexão que logo se transformou em remorso, depois em culpa, finalmente em pecado. A rainha espatifou o silêncio contra o teto.

— Valderico, cometemos tremendo pecado!

— Verdade minha rainha, traímos nosso rei, sob a lei dos homens não teremos perdão, mas eu jurei cumprir tuas ordens… — Achou melhor retornar ao antigo e respeitoso tratamento — aliás, cumpri ordens de Vossa Majestade…

— Jurastes — isso é verdade, mas eu vos provoquei… e nós dois fraquejamos. Porém, ainda po­demos pedir perdão a Deus, o Se­nhor de todas as coisas… só Ele poderá perdoar-nos e aliviar a nos­sa consciência… talvez uma grande penitência, uma clamorosa contrição…, talvez um autoflagelamento…

Untitled-3'

— Que pensais Majestade?

— Tão logo amanheça, irei à abadia. Abrirei o coração ao meu abade confessor, e ele me dirá qual penitência terei de cumprir para recuperar minha pureza...

— E eu, que farei? Há anos não me confesso, e jurei que tudo o que acontecesse aqui não o revelaria a ninguém… Ficarei com este remorso o resto dos meus dias?

— Fareis o mesmo, ireis ao abade logo depois de mim. Pedireis perdão a Deus que está acima de qualquer juramento. Obviamente, quando confessardes vossos pecados ao meu padre confessor, ele já saberá o que cometemos — até será melhor — e assim somente uma voz pedirá a Deus por nós…

Valderico deixou a câmara real incógnito, pensamentos sombrios e passadas estreitas. Passadas menos silenciosas do que quanto queria, pois a culpa agrega peso invisível ao espírito. Então, o que é imponderável parece adquirir massa, matéria, peso. E surge uma espécie de incômodo corpo dentro do próprio corpo. Em seu alojamento na torre não conseguiu dormir, assaltado pelo remorso.

O sol nasceu. A luz do dia ajuda a clarear também as sombras do espírito. Valderico observou da janela da torre dois servos carregando a liteira da rainha em direção à capela da abadia. Homem de ação, ele pensou rápido, desceu da torre e dirigiu-se à capela. Ajo­elhou-se atrás de uma coluna e ficou à espera. Viu quando a rainha terminou o ato da confissão e retirou-se para cuidar de sua penitência. Valderico apareceu como um raio diante do abade confessor e pediu-lhe para, também, tomar sua confissão.

— Abre o coração filho!--Disse o abade por trás da treliça de madeira.

— Tenho muitos pecados!

— Abre o coração, filho, todos somos pecadores, confessarás teus pecados a Deus, e se deleste arrependeres, o Senhor de tudo te perdoará.

— Trucidei quatrocentos e oitenta e nove sarracenos!

— Eram infiéis filho, basta fazeres o pelo-sinal e estarás perdoado.

— Afoguei cento e vinte e cinco cristãos-novos!

— Tardaram a converter-se, reza uma ave-maria e estarás perdoado.

— Tirei a vida de oitenta e dois cristãos, homens de armas!

— Jejuarás por dois dias consecutivos.

— Deitei com metade das mulheres da corte!

— Quantas?

— Acho que umas trinta…

— Quantas?

— Talvez quarenta…

— Então, durante quarenta dias não conhecerás nem deitarás com mulher, será tua penitência.

— Ia esquecendo, não reconheci dezesseis filhos bastardos!

— Dezesseis ave-marias será tua penitência.

— Deitei com a rainha no leito real!

— O quê? Pecado gravíssimo, filho! Não só aos olhos de Deus! Cometeste alta traição ao rei, e à própria rainha, mesmo tu, Valderico, sendo o maior herói do reino poderás ser enforcado e esquartejado! E tua pobre alma arderá no Inferno eternamente!

— Mas estou confessando meu pecado, e farei qualquer penitência, até mesmo me autoflagelar!

— Ouve filho, grandes pecados, exigem grandes penitências.

— Então, o que devo de fazer, meu abade confessor?

— Hoje nada farás. Vais e repousa. Mas amanhã, deves tomar um bom banho, com muitos esfregões nas tuas armas naturais. Em seguida vestirás o teu brial de cavaleiro. Ao cair da tarde, virás procurar-me, sem que ninguém perceba, em meus aposentos particulares aqui na abadia. Aliás, será melhor uma hora depois do pôr do sol.

Carlos Trigueiro é escritor

Resignação

Paulo Lima cul8 Na época das Grandes Navegações, quando das primeiras viagens de Portugal ao Brasil, desde a invasão até a exploração regular que durou cerca de três séculos, as condições de transporte em nada lembravam um passeio bucólico pelos bosques paulistas do Ibirapuera ou pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Você leu direito: eu falei invasão, não descoberta. Até parece que não havia ninguém na futura colônia (índios não eram gente?), sem contar que o navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón aportara na costa norte do Brasil três meses antes da chegada de Cabral, fora os vestígios de africanos que aqui estiveram centenas de anos antes ainda. Continuemos. A nau do Pedrão, por exemplo, viajava a vertiginosos nove quilômetros horários, no máximo. Durante cerca de um mês, superar o enjoo do mar sem Dramim, o mau cheiro da embarcação repleta de homens fedendo a macaco morto a tapa, a vontade de desistir e pegar o caminho de volta logo a partir do segundo dia, a saudade da terrinha, não era tarefa para os fracos. Nada de camas ou colchões. Os cor­pos ficavam ao chão, se revezando para descansar, uns dormitando, ou­tros de pé no batente. Havia aqueles que dormiam ao relento, no convés. Uma caravela tinha no máximo mais dois pavimentos inferiores, onde o ar e a luz chegavam através das fendas entre os ripados de madeira, que também deixavam passar água. Os porões estavam sempre abafados, quentes, úmidos e fétidos. É óbvio que não havia banheiro nos navios. Mas não faltava criatividade para resolver esse pequeno problema que afetava somente algumas dezenas de homens que dividiam um espaço que deveria ser ocupado por no máximo uns vinte. Qualquer semelhança com os aposentos das penitenciárias brasileiras da atualidade é mera coincidência. Dependendo do tipo e do ano da em­barcação, como ocorre hoje nos carros e seus opcionais produzidos pelas nobres montadoras, sempre dava-se jeito. Para fazer suas necessidades mais sujas, os marujos recorriam a pequenos assentos pendurados sobre a amurada dos navios, se debruçando no costado com as calças arriadas e o traseiro voltado para o mar. O resto ficava por conta da força da cólica, da contração abdominal espontaneamente provocada ou da lei da gravidade. Talvez ambos os três. Outra alternativa: usava-se uma longa corda cuja ponta estava sempre alguns metros dentro d’água, se lavando e desinfetando de água e sal marinhos em tempo integral. Teria a agressão ambiental ao Atlântico começado ali? Em tempo: a corda era compartilhada por todos, sem exceção. Até os capitães faziam uso do mesmo recurso... Vale o registro: alguns mais ditosos caíam enquanto buscavam alívio e nunca mais retornavam para relatar a aventura. Outros ainda optavam por encher recipientes diversos, despejando o conteúdo no oceano ou deixando-o em qualquer canto. Por fim, havia os vergonhosos ou preguiçosos que largavam sua produção intestinal no porão mesmo. Ninguém se lavava, pois tinham que racionar água e o banho era considerado nocivo à saúde. De resto, era comum no balançar das ondas em alto mar os marujos vomitarem como quem joga uma tarrafa, sujando uns aos outros. Oficialmente, constava que a embarcação levava carne vermelha defumada, peixe seco ou salgado, favas, lentilhas, cebolas, vinagre, banha, azeite, azeitonas, farinha de trigo, laranjas, biscoitos, açúcar, mel, uvas-passas, ameixas, conservas e queijos. Como não havia lenha e fogo, peixes e carnes eram consumidos crus. Oficialmente. Na verdade, a dieta era basicamente composta de biscoitos de água e sal cozidos duas vezes para durar mais tempo. O restante da lista era só uma complementação esporádica, privilegiada e temporária. Cada qual recebia diariamente cerca de quatrocentos gramas do delicioso biscoito para sua farta refeição. A ração era distribuída três vezes ao dia, nunca excedendo uma porção de biscoitos, meia medida de vinho e uma de água. Depois de algumas semanas, o vinho se transformava em vinagre e a água em um criadouro de larvas. Em viagens longas, os biscoitos já estavam todos roídos por outros tripulantes não convidados: ratos e baratas. Aliás, caçar os muitos ratos presentes também era uma estratégia honrosa para driblar a fome. Alimento fresco? Sim, às vezes seguiam a bordo alguns animais vi­vos, como galinhas, porcos, carneiros e cabras, brindando os embarcados com muito esterco e urina. Estamos falando de uma viagem perfeita. Diante de imprevistos, como tempestades, danos físicos nas embarcações ― quer dizer, imperícia ― do timoneiro, a machaiada sofria com a falta de alimento e mais desconforto. Os utensílios eram compartilhados entre os tripulantes. Lavar as colheres, as gamelas e os pratos usados? Nem pensar. Consumia muita água, produto precioso para tamanhos luxos. Mas nem tudo era de todo ruim. O consumo de ratos, animalzinho virtuoso que sintetiza a vitamina C a partir dos alimentos que consome, diminuía sensivelmente os infortúnios vividos pelos mareantes. Sem saber, acabavam evitando o aparecimento ou agravamento do escorbuto, então chamado de “mal das gengivas” ou “mal de Luanda”. Uma enfermidade daquelas bem desgracentas que causava inchaço das gengivas e perda dos dentes, dilatações e dores nas pernas, levando o desinfeliz a uma morte lenta e dolorosa. Infestação de piolhos era tão comum como hoje são os vírus de computador. Cabeça raspada, a solução. Nem as princesas reais escapavam da desdita. Sem a proteção da cabeleira, a cachola esquentava muito sob o sol dos trópicos, mas... Fazer o quê? A bordo a rigidez na disciplina era comparada à dos quartéis, pois tinha de tudo: marinheiros experientes e grumetes (aprendizes), tripulantes, carpinteiros, artesãos, calafates (especialistas em tapar fendas ou buracos) e tanoeiros (responsáveis pelo conserto de tonéis e barris), soldados e religiosos, degredados e criminosos, além de canhões e peças de artilharia. Manter a ordem exigia pulso firme. Alguns desses homens eram extremamente necessários a uma viagem desse tipo. Mas evitavam levar médicos, porque os humanos presentes eram descartáveis. Crianças e adolescentes entre 9 e 15 anos de idade eram recrutados ou alistados pelos próprios pais, que embolsavam o soldo dos meninos, coisa que hoje ainda ocorre em algumas culturas e profissões, mesmo depois de instituída a tal civilização. A molecada servia como grumetes, fazendo as piores tarefas como lavar o convés, limpar o bosteiro, costurar velas. Serviam também à sanha dos mais afoitos, pois mulheres eram proibidas durante as expedições de descobrimento. Frequentemente alguns adultos, mais enfraquecidos pelo rigor da jornada, eram arrastados para onde sua virgindade pudesse ser surrupiada. Suicídios eram comuns e aceitos pela Marinha Portuguesa como efeitos colaterais ou acidentes de percurso. Vale lembrar que, depois que se tornaram rotineiras nos séculos 15 e 16, a presença de mulheres nas viagens à Índia e ao Brasil foi finalmente permitida. As escolhidas: órfãs e ex-prostitutas, enviadas para casar com colonos portugueses. E para a diversão durante as viagens, claro. Por recomendação dos padres, o lazer era proibido. Apesar disso, os precavidos capitães sempre faziam vistas grossas para alguma jogatina, como cartas e dados, para aliviar a tensão interna. Aqueles navegadores carregavam na alma medos reais e imaginários. Muitos juravam de pé junto que o oceano era povoado por monstros e dragões, buracos sem fundo e tantas outras coisas que no século 21 nem as criancinhas são capazes de fantasiar. Fora isso, havia a certeza de que, ao seguir em mar aberto, as tempestades e chuvas intensas poderiam pôr fim à fragilidade das embarcações. Por tudo isso, alucinações e depressão eram uma constante. Contei essa história, com muito mais riqueza de detalhes, durante uma hora inteira ― a terceira da viagem São Paulo-Miami ― às minhas duas filhas adolescentes que me comprimiam no assento do meio do voo noturno e mais barato que a companhia aérea dispunha. Era nossa primeira excursão rumo à Disney. Não é fácil se posicionar em meio a um ataque de nervos de duas jovenzinhas acostumadas ao conforto das modernidades, indignadas com o desconforto da classe econômica e dos serviços precários da aviação brasileira. Mas valeu o esforço e a consulta ao Google, ainda que não pudesse comprovar a veracidade das informações postadas na controversa fonte Wikipédia. A narrativa surtiu efeito. As cinco últimas horas foram de sossego, marcado por profundo silêncio e resignação. Paulo Lima é escritor e publicitário.

Nódoas: o torturador ele só em sua noite

Valdivino Braz cul11d

Noite adentro, a tosse intermitente e ele a se arrebentar em golfadas de sangue; uma dor feito estilete a trespassar-lhe os pulmões agonizantes, e umas pontadas repentinas a confranger-lhe o débil coração, arrancando-lhe, tal fossem nacos de carne, os entrecortados gemidos. Rangem as molas soltas do colchão, infestado de percevejos, toda vez que ele, ao tossir, se agita no leito. Fora, uiva o vento, ao modo de um cão agoniado, perdido na treva. Relâmpagos incendeiam os vidros da janela, clareando as áreas obscuras do quarto frio e fétido, parcialmente iluminado pela luz mortiça dum antiquado abajur.

Ratos enormes movimentam-se pelo recinto, emitindo guinchos cantantes, à semelhança de carretilha ao correr duma corda. Um deles, por mais afoito e incisivo, a roer com exaspero a tira de couro que serve de emenda a uma perna quebrada da cama, ali aos pés do moribundo. Entrecruzam-se os roedores, desassossegados, e o enfermo contempla-os com pavor e funesto pressentimento de que ali estão para devorá-lo, a qualquer momento. O pavor aumenta a cada vez que ele, numa sofrida vigília, surpreende os olhos miúdos e brilhantes a fitá-lo com sinistra insistência. Com supremo esforço, tenta soerguer-se no leito nauseabundo, afugentar o inimigo, mas o violento acesso de tosse de novo o acomete, e ele torna a estirar-se, arfante, esgotado, em seus trapos de nojo, infectados pelos bacilos de Koch.

O velho relógio-despertador, sobre o corroído criado-mudo, registra os artifícios do tempo: o cansado tique-taque, aos ouvidos de quem ali jaz e agoniza, soa como o implacável e fatal limite de sua própria resistência, frágil fôlego, dificultosa respiração. Ele sentindo-se cada vez mais próximo do fim, sobremodo quando a espiral no labirinto do relógio, em disritmia com a mecânica das engrenagens, bambeia e se descompassa, desabala-se como que estrabulega: clocloclecleclec!, em sonido de lata velha, que o sobressalta tanto mais, pois então é o seu podre coração atabalhoado por taquicardia, ao que ele se compara com o estafado relógio, sem tirar nem pôr, até mesmo — ele imagina — o giro empenado das rodas denteadas do tempo, e douradas, como do espelho o fundo fosco, que à luz do dia se entremostra ali nos úmidos e mofos da parede, carcomida pelas goteiras.

A água devorando a cal do reboco, em que pese exagerar-se a comparação, semelha uma cadela a roer o osso. E o tempo, ao moribundo ensanguentado no leito, é um cão danado a abocanhar-lhe a vida sempre que se dá o salto frouxo da mola serpentina do relógio, com olhos de rubi, da cor do sangue que ele escarra nos panos impuros em que se deita; o branco do tecido há muito maculado por repulsivos humores de um corpo em decomposição, não bastassem ali aqueles coalhos sanguinolentos e assustadores. Já o enfermo por demais debilitado, como quando se debilitam as pulsações cardíacas, a sístole-diástole oscilando num sobe-e-desce crepuscular, ao emitir-se dos bips luminosos no cardiógrafo de um hospital. Ele agora com um pé na cova e o outro ainda numa nebulosa da vida, a um passo da eternidade, from here to eternity, daqui até lá, ele só e mais ninguém — sempre solitário e tímido ao extremo com o sexo oposto, curtiu uma queda por Deborah Kherr, estrela de um filme de época, década de 50, ao qual ele gostara de assistir: um drama numa base militar, anos 40, conflitos e amantes ilícitos, com uma famosa cena de beijo, sugestivamente — entenda-se — banhado pela espuma do mar.

O tempo, agora, como se co­bras­se do moribundo um ajuste de con­tas por sua sórdida vida pregressa, por seus atos truculentos, por seus crimes hediondos, pela tor­tura e morte, com requintes de sa­dismo, de presos políticos, por conta do livre-pensar e pensar de for­ma diferente. Era ele um produto e instrumento do arbítrio; era um deles, desses que resvalam para o rodapé da evolução humana, na escala natural dos símios, e desistem de ser homens, senão que re­gri­dem ao estágio dos girinos, ou ain­da ao reino unicelular das amebas.

Esgotam-se, inexoráveis, impiedosos, os minutos que ainda lhe restam, e, para seu maior pavor, mais e mais se atreve a determinação dos ratos. Acelera-se a agonia ao desarranjo das horas que lhe vão esgarçando o fio de vida, para arrebentá-lo de súbito. Acossado pelos terríveis acessos de tosse e pelas fundas ferroadas no peito; cercado pelos ratos e já por conta do implacável avanço das lanças negras no relógio da morte, ele está só consigo mesmo, como jamais esteve ao longo de sua malversada vida; falto, ele, de sentimento humanista, de valores que regem o lado bom da humanidade, tomando-se por bom o oposto ao que faz sofrer, como se toma por mal o que não é por bem do outro, indo-se o bem que se quer por inerência do individual ao coletivo, e em nada recorrente ao dualismo maniqueísta do século III — entre Deus e o Diabo —, primado de um viés reducionista e retrógrado, e posto que em nada absoluto o que é relativo. Dizê-lo assim — relativizar —, todavia e certamente não justifica, em sã consciência, o torturador em questão; tanto menos quanto querer, por meio de vesgo argumento, justificar o que é mau e causa dor, contrário ao que é bom e é de foro íntimo não infligir sofrimento a outrem; já não fosse que a vida por si mesma é um sofrimento, amiúde dolorosa, amiúde alegre, mas nem sempre.

Nessa hora de sustos e punhais do tempo no peito, sombras emergem do passado e vêm assombrar ainda mais o espírito atribulado pela ideia do fim. Visões fantasmagóricas avultam-se na penumbra do quarto, dedos em riste apontam para o gemebundo tuberculoso, vozes acusadoras ressoam-lhe nos tímpanos, atordoam-lhe o cérebro, e vão num crescendo alucinante, somando-se às dores do mal que o apodrece e devora. Bolas de sangue explodem e coagulam no ensebado lençol, dimensionando-lhe o pavor do agora, tanto mais por saber-se abandonado, sozinho com os seus fantasmas e a sua morte. Sequer um cão vagabundo, o mais rabugento, o mais pustulento, o mais repulsivo que fosse, nessa hora crucial, nessa noite tenebrosa, que ele sabe derradeiras. Ah, merecesse ao menos um afeto ou afago compadecido! Mas, não. Apenas os ratos, previsíveis no seu intento, e os espectros da noite em torno de sua agonia final.

O vento vergasta, furiosamente, a janela, querendo entrar, e línguas de fo­go lambem a vidraça a todo mo­mento. Guincham os ratos, histéricos com o manifesto das forças naturais, e, atraídos pelo cheiro do san­gue, começam a subir no leito infecto, tantos, que o miserável homem ali se sente como um deles, um rato abjeto ao desprezo da família humana, apartado do calor solidário que, ao fim, e apesar de tudo, movimenta as rodas do mundo. Atacam-no, afinal, os sinistros. Cravam-lhe os dentes, mordem, mordem e dilaceram a carne. Ele grita, e tosse, golfando os pavorosos coágulos. Tenta levantar-se e não consegue, dezenas de mãos o impedem, subjugam-no, como garras de ferro. Em vão ele se debate. Rostos antigos bailam diante de seus olhos turvos, olhos furiosos o fitam, dedos o apontam, vozes o acusam. Ele grita, e tosse, e vomita sangue e se estertora e se entrega, vencido, à sanha dos dentes pontiagudos. Talvez jamais tenha pensado nisto, mas tem a vida seus próprios ditames e caprichos, tem suas represálias à revelia de quaisquer outros mecanismos, por vontades do homem. Ao giro das rodas do mundo, tem a vida suas sábias e higiênicas providências.

Roído pelos ratos famintos, vai-se o enfermo pelo ermo de seu inferno. Sentenciado por seus atos de culpa, ele ainda respira entre os claros finais de lucidez e a febre do delírio; mas é tarde, muito tarde, e tempo não há mais para nada. Negros (co)lapsos de tempo são a grafite finita no lápis da vida, acabou-se a escrita. Ali os panos encardidos de sua cama, com eles o asqueroso lençol, sudário aos fluidos humorais. O suor, a linfa, a urina, o sangue, as nódoas de toda a sua podridão. Putrefato o banquete dos ratos, posto que o corpo ali se furta ao repasto dos abutres, mas não lhe escapam, de resto, as sobras aos benditos vermes da Criação, que se arrastam, embolados e nojentos, pela terra de todos e de ninguém. A terra dos homens. O berço e o caixão. A terra abençoada em que jaz a humana pequenez da pretensa e presumida grandeza humana. A mísera suposição de ser o que de fato não é; e presumida porque iludida e ensimesmada, convencida de si mesma. A terra e nela o homem em seu devido lugar. Pó ao pó, a arrogância do saber de reizinhos atarracados, pançudos, e o poder de gigantes empertigados, uns e outros reclusos na empáfia de suas poses, supostamente sábios e poderosos em suas bobas ilusões de ser e vida efêmera.

O trovão estronda e a tudo estremece. Leclecleclec... — o relógio para de pulsar. E assim o torturador ele só em sua noite, sem a sua turma e longe da putíssima — leia-se digníssima — senhora sua mãe, coitada, não tem culpa — salvo que involuntária — de tê-lo parido, de ter posto no mundo esse tipo de homem, um estrupício, uma aberração como essa, em figura de gente. E Deus criou o homem, está escrito. E o homem arvorou-se em imagem e semelhança de Deus. Durma-se com essa. Pelo amor de Deus!

Com água do dilúvio, a terra se purifica de algumas impurezas. O dia amanhece limpo e calmo, claro e cristalino, como se a justiça, afinal, saísse a passeio pelo mundo, se bem que a justiça sempre leva no bolso a conveniência de alguma impunidade, a conivência sob o surrado manto da injustiça.

Aos poucos, ao esquentar-se do sol, as coisas se consolidam em seus contornos, e o admirável mundo novo segundo Huxley retoma sua rotina. Também as víboras saem para o cotidiano e tomam seu matinal banho de sol. E agora a sombra do urubu se recorta e faz sua ronda no ilusório azul do céu. Enquanto isso, espessos volumes, calhamaços em papel-ofício, mil vezes carimbados e rubricados, mais e mais se recolhem aos aposentos da morosa Justiça. Justiça para quem? Às traças os processos arquivados, prescritos os crimes contra os civis, anistiados os culpados, inclusive a parte podre da sociedade civil, e toda a impunidade aos generais. E não se fala mais nisso. Não se repisa esse assunto. Não se alimente, pois, o ranço do ressentimento, nem o desejo de revanche. Os generais são inocentes. Agiram e mataram no cumprimento do dever. Reféns do refrão da obediência. Para todos os efeitos, e de uma vez por todas, revogam-se as disposições em contrário. Para que reprisar os tristes fatos, reabrir cicatrizes? Afinal, cinismo à parte, não doeu tanto assim, doeu? Então para que falar-se em nódoas da história? Os uniformes dos generais estão limpos, lavados e bem-passados. Polidas, livres do zinabre do tempo, brilham as medalhas no peito dos heróis da Pátria. E não lhes venham com ironias baratas, querendo conspurcar-lhes o verde-oliva das fardas, denegri-los por conta delas, a eles, conspícuos bastiões da soberania nacional. Os generais não são assassinos. As estátuas nas praças da República são regularmente limpas de suas impurezas, removido pelas chuvas o cocô dos pombos, embora resista, renitente, a nódoa comprometedora da pátina esverdeada, cor de biles, de vômito.

Valdivino Braz é jornalista e escritor, autor do premiado romance “O Gado de Deus”.

Da noite para o dia

O escritor Nilto Maciel, conhecido como o mago do conto, foi encontrado morto em sua casa, na cidade de Fortaleza, Ceará, na quarta-feira, 30 de abril. Ele tinha 69 anos e deixou uma extensa bibliografia de romances, contos e crítica literária. Em sua homenagem, o Opção Cultural republica o conto “Da noite para o dia”, um de seus textos clássicos

Magrinha

Antônio José de Moura [caption id="attachment_3117" align="alignleft" width="400"]Cultural_1885.qxd Aeich Thimer[/caption] Há seis dias o general Zarastru assumiu o governo da República, abocando sua parte de leão no acordo previamente selado com o diminuto e misterioso comando da ditadura de revezamento de generais no poder. De óculos escuros montados no narigão de pera, durante a posse Zarastru presidiu solenidades e festejos castrenses, sempre escondido atrás de vidros à prova de bala e protegido por aparato de segurança digno de bunker de todos os ditadores, caso eles se agrupassem para formar um único centro de decisão na Terra. Cercava-o quantidade quase inverossímil de homens e de armas, capaz de guardar a Cor­dilheira dos Andes e abater até mesmo um inseto que quisesse voar sem sua permissão sobre ela. No domingo posterior à posse daquela casca-grossa que até então detivera a chefia do exército, aproveitamos o telão recém-instalado no Cascatinha Bar Show Dançante para permanecermos sem maiores riscos e por algum tempo juntos sob o pretexto de assistir à que, dependendo do resultado, seria a partida final do campeonato carioca de futebol. Vasco e Flamengo, o clássico dos milhões. Quase todos tínhamos televisão em casa, mas deliberamos nos reunir em torno da 24 polegadas do cascatinha porque ela nos permitiria, antes e após o jogo, conversar de assuntos prazerosos — peixes, mulheres, cardumes de uns, escassez de outras, pescaria, caça, imponderabilidades climáticas — e confraternizar, apesar das emoções dentro e fora de nós exasperadas, tão exasperadas quanto as cigarras de um poeta cujo nome esqueci. Refiro-me às emoções soltas em campo, nos pés dos artilheiros e no berro da torcida, cujo contágio e pressão mantínhamos como panela a custo tampada, enquanto, à guisa de água, deitávamos cerveja na fervura, fosse rubro-negra, ou cruzmaltina. No grupo, felizmente não havia nenhum pinguço, somente homem de conceito e respeito. Na tela e no Maracanã tremendo de gritos e de gente, um jogo de arrepiar. Final: 1 a 1 — resultado que transferiu a decisão do campeonato para o próximo domingo. Ainda bem, pois vivíamos naqueles dias entorpecidos de medo, atormentados por imprevistos e sobressaltos, de modo que um Vasco e Flamengo caía do céu como uma espécie de comoção compensadora e talvez providencial para os nossos nervos exauridos. O Cascatinha Bar Show Dan­çan­te fica defronte à Praia da Farofa, um nome que veio calhar bem, devido encontrar-se ela ulteriormente infestada de turistas, de cocô e da promiscuidade dos turistas. Com o tempo, de tal modo suas águas foram afetadas que mudaram de cor e ainda se veem obrigadas a aguentar a impostura dos jet-ski e da cáfila de imbecis pendurados em telefones celulares e outras engenhocas eletrônicas. Naquela época porém nem fedentina era tanta, nem o ar se encontrava tão emporcalhado. Do Cascatinha, construído sobre uma elevação, descortinava-se todo o movimento do porto de Aruanã, já então meio frenético na temporada, mas de certo modo calmo, quase tranquilo, nos mais períodos do ano. A vista se fazia de tal maneira magnífica que, debruçada com seu dono de uma das janelas num cair de tarde, a imaginação se deixava levar rio abaixo ou rio acima, até se perder na linha do horizonte, a crepitar no incêndio de crisântemos e begônias de pura substância etérea, celestial — um incrível, verdadeiro espetáculo de cores projetadas do paraíso original, antes da queda do homem: o pôr-do-sol do Araguaia. Também o nascer do astro-rei em nada diferia do sol-posto, exceto que em vez do lento mergulho parecia levantar-se devagarinho e no entanto poderosamente das águas, noutra metáfora de luz ampliando-se em bola de fogo colossal — quiçá o olho de Deus. Antes de transladarem o lixo e a loucura do que julgam progresso para cá, representado até por boates e discotecas que enchem o ar e as madrugadas de relinchos à laia de música, a cidade oferecia la­zer noturno natural, sadio, que não degradava a paisagem nem o sono das gaivotas. Aruanã era a réplica do Éden. Sem tirar nem pôr. O Cascatinha Bar Show Dan­çante tinha muito de bar e nada de show dançante, salvo de tempos em tempos um bailezinho-família no salão alugado a preço simbólico por ranchos de rapazes e moças, determinados a angariar fundos para algum acontecimento de peso nas efemérides da cidade, incluindo as religiosas. Pertencia a Arióbulo Trinchinchelo, alcunhado o Jacaré. Entre as naturais da terra, ninguém compreendia porque lhe pespegaram e Arióbulo sustentava o sáurio apelido, que assentaria melhor em sua grandalhona cara-metade, a senhora Adrianola. De outro lado, bem considerada as coisas, ninguém também teria peito para chamar a jacaroa de jacaroa, mesmo tratando-se visivelmente de uma espécie aruá gigante de saia, braba como dez leoas, de traseiro que nem dois braços longos dariam conta de abarcar, as narinas salientes, convulsionárias, resfolegantes, ruidosas, e os bugalhos do globo ocular lembrando limões galegos, e dos grandes, dando a impressão de plantados no cocuruto e não perto do septo nasal, se vistos no lusco-fusco da noite ou da manhã. Sem falar nos dentes preênseis, fortes como palhetas de aço e cortantes feito facas. Enfim, uma crocodilona, uma calangona d’água das mais ferozes e temíveis. Virago? Machona? Já excogitaram que sim, porém sem um fiapo de prova a favor. No entanto, tirante este aspecto, saltava aos olhos que Adrianola ilicitamente se livrara da alcunha aderida ao marido, ao passo que nele cairia — justo como dois dedos no nariz — o apelido de Camaleão; além de poltrão, ou da impressão de poltronice que emitia, percebia-se que o mimetismo do mocorongo moleirão derivava dos humores da mulher: de manhã, quando ela amanhecia de cara fresca como as hortaliças no meio das quais se metia, regando, estercando, exterminando lagartas e outras pragas, Arióbulo Trin­chin­chelo se disfarçava em verde, contemplando-a com olhos esgazeados; de tarde, geralmente, Arióbulo punha-se todo cinzento, tal e qual o humor de folha seca da patroa. Noutras horas, a cada hora, o paspalhão assumia a impreterível cor correspondente às disposições e tonalidades de espírito da robustona, inclusive a cor negra, mal a noite caía ou quando a alma dela se fingia de enlutada. Arióbulo Trinchinchelo deveria ser coroado imperador dos seres que desembarcam no mundo com a finalidade única de não incomodarem nem serem incomodados por nada e por ninguém, pois tudo o que pediram a Deus foi um lugar em que se encostar, uma árvore que lhes dê sombra a ignorar sua presença, não ligando a mínima se eles escorregam um pouquinho para apanhar qualquer restiazinha de sol refratado dos galhos. E com a cabeça tomada de largo pensamento: que à noite podem com tato escalar-lhe o tronco, trepar nela, em busca da forquilha na qual vão se enganchar. Dona Adrianola era a árvore da vida de Arióbulo Trinchinchelo, o (sob protestos) Jacaré. E ela, com efeito, o deixava em paz no seu canto, pela recíproca razão de que ele não a estorvava em seu objetivo feminino (embora vigoroso) de mandar. Não obstante o jeitão e disposição a de jacaroa, ou machona, que infundia medo despistado em respeito ao redor, especialmente nas crianças e nos adventícios, dona Adrianola encarava vários aspectos da existências com ternura, e às vezes os envolvia em amor, conquanto fossem um amor e uma ternura tão ásperos por fora que quase sempre permaneciam impercebidos aos olhos que a observassem apressados. E já que falar sem pensar é atirar sem apontar, falemos com cuidado e devagar: sem pôr a mão no fogo, porque as aparências não se cansam de iludir, no fundo dona Adrianola nada possuía de lésbica, mulher-macho ou fanchona. Tão durona pros demais, Adrianola se tomou de amores — um amor terno e derretido de mãe — por sua sobrinha-neta, Mágora, a Magrinha. Mágora, a Magrinha, nasceu aqui, à beira do Araguaia, fez o primário no antigo Grupo Escolar Modelo e depois se mandou pra capital, onde estudou tanto quanto um doutor de Salamanca. Ou mais. E como quem muito lê, treslê, desde o ginásio Mágora, a Magrinha, principiou a manifestar ideias esquisitas, arauta de utopias, porta-voz de verdades e coisas tiradas a proféticas — destoantes; Gogó de Ouro, eis o epíteto que lhe aderira à identidade como o sol à flor, o verde à água do mar; os jornais a chamavam assim, exaltando-lhe os méritos nas artes oratórias, nas quais Mágora ganhara todos os concursos e largos espaços na mídia. Achava língua para tudo, e tão bonitas palavras. Aliás, as palavras lhe acudiam com uma presteza de súditas, uma obediência carola, parecia que Mágora, a Magrinha, nem precisava chamá-las ao pensamento, posto se acharem ali, prontas a lhe sair pela boca, ordenadas, ordeirinhas, cada qual em seu lugar, encaixando-se umas nas outras, como flores num buquê. Daí por que em fulgurações de metáforas as frases cascateavam em sua voz qual água que se derrama em cachoeira a compor cenário que não parece deste mundo, de tão sublime, refratando o arco-íris; e de fato ditas por ela tinham cores, as palavras, cores fortes e harmonia, e também muito vigor. Em resumo: poesia. Deus, vê-la discursando em praça pública era o mesmo que ver um nascer ou pôr-de-sol no Araguaia, impossível descrever tal fenômeno de emoção irisada. E aí, na volúpia da empolgação, ela se transfigurava, e tarari, tererê, que queremos pão e justiça, que a terra é de quem trabalha e não de quem a domina, e liberdade, e oportunidades, e igualdade de direitos para todos, e não sei mais o quê. Mesmo versando matéria de vasta controvérsia, todos ou quase todos dela se encantavam. Muito meiga e fragilzinha, nestes momentos Mágora, a Magrinha, se agigantava, feita de seiva e calor. Tinha olhos castanhos claros, cabelos da mesma cor, rosto ovalado e bonito, mamilos que se adivinhavam durinhos e róseos sob a blusa encarnada, um delta-de-vênus que por nunca exposto acendia sonhos de posse e também de imaginação pictórica, tez de um branco quase diáfano, corpo bem proporcionado e belo apesar de carecer um pouco mais de suculência. E lábios nem muito finos nem tão carnudos, os quais se abriam em sorrisos que qualquer um gostaria de sequestrar e guardar como tesouro ou talismã. Dela os homens se agradavam, pois nascera pra agradar. Tornada insigne em altos estudos e altíssimas virtudes, Mágora, a Ma­grinha, comandava a ligas dos universitários, na capital da província. Tão logo os generais instauraram a tirania de farda, à qual e da qual se serviam os lambe-botas civis, Mágora, a Magrinha, viu-se de súbito dentro de um torvelinho, privada até à morte de um minuto de sossego. Primeiro prenderam-na e a conduziram para uma fortaleza militar distante, a Fortaleza de Lajes, em pleno Atlântico, mas decorridos seis meses de muita lábia e artimanhas, ela com alguns companheiros, e também com a cumplicidade do chefe da guarda e de dois barqueiros, conseguiu render as sentinelas e pisar clandestina em terra firme, no Rio de Janeiro. No curso de seis anos, percorreu labirintos, socada em ocos de perigos clandestinos, sempre procurada pela Organização dos Vigilantes de Mil Olhos (OVMO), a rede de espionagem criada em 1964 como o braço armado e tentacular do regime. Por milagre, e por ventura outros pretextos que produzem os milagres, oculta no breu de certa noite de setembro, enquanto os de Mil Olhos a supunham no estrangeiro, Mágora, a Magrinha, veio ter novamente a estas plagas, metida em disfarces de transformismo de atriz. A tia Adrianola a recebeu e a enlapou em locais tão ignotos e invioláveis, que a julgou trancadinha a sete chaves, podendo afiançá-la invisível. Mas céus! no quarto ano de esconderijo araguaiano, Mágora, a Magrinha, caiu nas unhas dos opressores, por artes de um infame delator, alcunhado ulteriormente de Judas Dedo-Duro. A Judas Dedo-Duro reservou-se destino em essência igual ao do seu avô Iscariotes, o que ao enforcar-se assistiu ao próprio derramamento das entranhas e cujas trinta moedas da traição serviram apenas para comprar campo de sangue, consoante o evangelista e a predição do profeta Jeremias. Ignora-se se morrendo ou não de remorso, mas decerto já picado de remorso, e desprezado de todos, num beco escuro Judas Dedo-Duro amanheceu certo dia casado com a mulher da foice, e de forma ignominiosa: a boca cheia de formiga, a cabeça espatifada por paulada semelhante em efeito a dez cachamorradas de feroz borduna xavante. Há simulacros de conjecturas rebuçando a certeza de quem desferiu o golpe daquela morte vindicante e talvez necessária. Sabemos e conhecemos muitíssimo bem quem a executou e, antes, quem a premeditou em seus mínimos detalhes: o mesmo homem e a mesma mulher que mais tarde dariam cabo do chefe de beleguins que entregara o pecúlio da delação ao imundo e execrado Dedo-duro. Mágora, a Magrinha, morreu por excesso de suplícios — ou descuido, sofisma a que davam o nome de “erro técnico”, coisa comum naquela quadra de terror. Mágora, a Magrinha, a quem os algozes preferiram chamar de subversiva, padeceu e sobreviveu às várias modalidades de tortura institucionalizadas, começando pelo pau-de-arara, em que põem a vítima — joelhos dobrados, abraçados e amarrados — dependurada de uma barra de ferro entre dois cavaletes, submetendo-a a espancamentos e outras formas adicionais de interrogatório que não prescindem nem da eletricidade nem de sevícias rupestremente animalescas. Repetidas vezes, Mágora, a Ma­grinha, sobreviveu ao limite máximo do pau-de-arara — três horas —, findo o qual é impossível evitar-se a morte, o que pasmou os próprios seviciadores. Mágora, a Magrinha, sobreviveu às descargas elétricas da máquina de choque chamada triplicemente de pimentinha, manivela e perereca, de cujos terminais se alongam fios ligados ao corpo da vítima, inventada, como se sabe, pela Gestapo, no apogeu do nazismo, e aprimorada nestes trópicos. Mágora, a Magrinha, sobreviveu à polé ou roldana entre contorções e gritos de dor que lembravam os inimigos da Inquisição na Idade Média: pés amarrados por corda que passa pela polia presa ao teto, o corpinho nu suspenso do chão, de cabeça para baixo, espancado, chutado, queimado com pontas de cigarros, retalhado a gilete e navalha, e ainda por cima acicatado pelos disparos elétricos da máquina de muitos volts. Mágora, a Magrinha, sobreviveu às torturas químicas, ao pentotal sódico, o soro da verdade, às torturas em cuja composição entram o éter e o amoníaco, ao torniquete que é o círculo de folha de aço ajustado ao crânio mediante mecanismo de rosca e parafusos, os quais, à medida que são apertados, produzem dilaceração encefálica e afundamento, a ponto de obrigar a saltar para fora o globo ocular. Mágora, a Magrinha, sobreviveu à cadeira-do-dragão, poltrona tosca de madeira revestida de metal eletrificado, na qual se viu amarrada despida inúmeras vezes, por correias, enquanto, ao elevar o volume da voz através do dispositivo ligado aos eletrodos e apodado por gracejo carcereiro de “microfone dos shows” (o das perguntas de respostas impossíveis), o torturador aumentava a voltagem das descargas da energia doida por eletrocutar o corpo da prisioneira. Mágora, a Magrinha, sobreviveu ao inferno de ruídos e gelidez de nevasca no negro cubículo dito geladeira, onde prisioneiros enlouquecem sem arbitrar ou sequer se situar no tempo. Um invento de tortura, esse, dos ingleses, mas ao qual os milicos do Brasil, para desfrute e deleite dos pinochets do continente, acrescentaram melhorias. Mágora, a Magrinha, sobreviveu ao telefone das manzorras em concha de gorilas que lhe arrebentaram os tímpanos. Mágora, a Magrinha, sobreviveu à palmatória, aos chicotes, sobreviveu aos pedaços de madeira, às cordas molhadas, aos cassetes de borracha recheados com cabo de aço — os infames e infamantes “pênis-de-boi” — que lhe introduziram na vagina, no ânus e em outras partes. Mágora, a Magrinha, sobreviveu a tantas formas de tortura, incluindo velas e cigarros acesos para sua pele apagar, socos e pontapés, agulhas e estiletes. Mágora, a Magrinha, sobreviveu a todos os métodos inomináveis de esfolamento e fraturas, físicas e morais. No entanto, Mágora, a Magrinha, cujo calvário por ineptas as palavras se recusam a descrever —, Mágora, a Magrinha, veio entregar a alma ao Criador exatamente na mais primária das práticas de suplício — a do afogamento. No poço — o nosso poço, ou o que pelo menos deveria ser o nosso poço. Adicionaram-lhe pedras aos pés. Amarrada à corda de náilon deslizando através de roldana suspensa de uma galho de árvore a sombrear o rio — remanso de afluente do Berocan-Araguaia —, calcula-se que durante horas imergiam e içavam-lhe o corpo das águas no último limite do fôlego, a fim de que ela confessasse o que eles inventaram para ser confessado; logo, o inconfessável. Decerto — e esta não é uma dedução fora de lógica — Mágora, a Magrinha, pedia a morte, suplicava pela morte, desde que lhe pusesse fim aos padecimentos sem termo. Contudo, embora sofrendo muito, a vida no corpo de Mágora, a Magrinha, relutava em abandoná-lo. Num tempo contado em séculos, descontrolados, ensandecidos, os verdugos continuaram infligindo a Mágora, a Magrinha, as imersões, ou naufrágios compulsórios. Até que, Cristo, vupt! quando a içaram, numa dessas imersões de quase morta, para nova rodada de perguntas, a vida havia abandonado aquele corpo de menina nua. Um corpo só empanzinamento hidráulico e hematomas, um corpo que vagamente lembrava a inquilina que o habitara. Conforme a praxe em imprevistos assim, simularam e propalaram um suicídio tão inverossímil que nem os jornais sob censura acharam jeito de veicular a versão oficial. De modo solertemente análogo ao empregado na prisão, os esbirros converteram na calada da noite nossa pobre igrejinha em cenário do autocídio forjado e levado a efeito de maneira tão ou mais absurda que a utilizada para a expedição e conhecimento público do atestado de óbito com que pretenderam legitimar aquela morte. De crocodilo ou autêntica, ambas inconcebíveis numa mulher de seu feitio, dona Adrianola jamais deixara escapar uma lágrima. A mulher que nunca chora — oxalá esta lhe calhasse como definição exatíssima. Pois ao recolher o corpo desfigurado de sua sobrinha-neta — e ela o buscou sozinha, junto ao altar, apesar de a cidade inteira encontrar-se à sua volta, solidária — não escondeu o pranto que os seus olhos vertiam. Talvez fossem lágrimas de toda uma vida, represadas só Deus sabe por quê. Ao romper os primeiros passos, com os frágeis despojos da suicida de fabricação nos braços, cingindo-os como se acalentasse uma criancinha de peito, ela parou três vezes e por três vezes volveu o rosto a fim de encarar a Virgem e o Cristo crucificado nos olhos; deixou tombar dois pares de cordas grossas dos cantos das órbitas, que anularam ou incorporaram o choro regular, ao passo que seus lábios mussitaram algo que somente ela e a consciência divina conseguiram captar e entender. Ao transpor o umbral da igrejinha e ganhar a rua, o marido de um salto colocou-se a seu lado, executando-lhe doravante as ordens com uma presteza e vigor de que ninguém antes o julgaria capaz. — O castigo vem a pé. Mas um dia chega. Então, não ficará um para contar o caso do outro — ela rugiu, após o enterro. Sem poder esperar pelo padre, que nos acudia de raro em raro em desobriga, o corpo desceu à sepultura debaixo de nossas rezas e cânticos. A melodia que mais subiu às alturas, porque mal a encerrávamos alguma voz a puxava de novo, foi “Segura na Mão de Deus”: “Se as águas do mar da vida quiseram te afogar, segura na mão de Deus e vai. Se as tristezas desta vida quiserem te sufocar, segura na mão de Deus e vai. Segura na mão de Deus, segura na mão de Deus, pois ela te sustentará. Não temas, segue adiante e não olhes para trás: segura na mão de Deus e vai”. Ao final, todos choravam, dando-se as mãos e cantando “Segura na mão de Deus e vai”. Ao sairmos da missa de sétimo dia, que a nosso chamado padre Zezinho de bom grado oficiou, Arióbulo Trinchinchelo, tão diferente do Jacaré que conhecíamos no Cascatinha Bar Show Dançante, levou a mão à garganta. Tomamos este gesto ritualístico de quem decepa o pescoço, à maneira maçônica, como a chancela do carrasco à sentença exarada e inelutável. Rotina — De modo que ainda nos encontrávamos no bar de Arióbulo e Adrianola — uns, renitentes, comentando lances do clássico dos milhões; os mais conversando de pescarias e outros leves assuntos — quando o homem chegou perguntando por um tal Anterino. Dissemos que não sabíamos, mas o homem não se conformava. Sobre quem ele era, porém, tínhamos certeza — uma certeza que o homem ignorava. Apesar do tempo e dos diferentes disfarces, a nosso ver inúteis, que agora ostentava, apesar da ausência da antiga careca e dos remotos bigodes grisalhos, o que ante olhos comuns fariam dele um perfeito desconhecido, não havia dúvida de que nos defrontávamos com o chefe dos capturadores que suplicaram e remeteram por outro mundo Mágora, a Magrinha. — Quero que informem onde está o Anterino. — Que Anterino, meu? Aqui não mora nenhum Anterino. — O Anterino, um que tem olho de vidro. Mora nessa rua — o homem insistiu. — Nessa rua, não — alguém protestou. — Nessa rua, sim — o homem disse, limpando a boca com as costas da mão. — Aqui não mora nem Anterino nem João Quirino — outro dos nossos falou. — Conheço todo mundo e posso garantir pro senhor que não tem nenhum Anterino na rua. — Fazendo gracinha, é? Se eu disse que mora, é porque mora; tão querendo acoitar? — o presumido forasteiro gritou; e bateu o copo de dose no balcão. Fregueses distanciados assustaram-se e dois que jogavam sinuca, lamentando o empate que adiara a decisão dos cariocas, quiseram ir embora. — Não vai sair ninguém, sem minha ordem — disse o homem, sacando ao mesmo tempo dois revólveres. — Fechem as portas. Avaliei a situação, sem no entanto encarar o homem que procurava Anterino. Olhava-o de banda e, quando sentia seus olhos queimando meu rosto, disfarçava com o pé, de um jeito bobo, esfregando qualquer coisa invisível no chão. Mas quando o homem olhava para o outro lado, examinava-o com um rabo de olho. Não conheço hipnotizadores, mas penso que o homem era um deles. E os dois revólveres em suas mãos também brilhavam. — Fila indiana. Agora, contra a parede! — o homem ordenou, os dedos ágeis brincando com as armas, como se fora caubói. Obedecemos maquinalmente e houve quem exagerasse, ajoelhando-se com as mãos na nuca, o que parece tê-lo irritado ainda mais. — Não sei o que faço que não acabo logo com vocês — ganiu, acertando uma cusparada na eletrola. Deu um tempo e voltou a lembrar-se do Anterino. — Vão ou não vão dizer onde está o jovem? — gritou, colocando com o polegar um dos revólveres no descanso e apontando-o em nossa direção. Um silêncio de casa sem ninguém. O falso desconhecido tirou o dedo do gatilho e depositou a arma no balcão. Sacou a latinha do bolso e conversou em código. — Câmbio! — concluiu. Cinco minutos depois, homens armados de escopeta punham as portas no chão. Varejaram tudo. Nem mesmo uma agulha teria escapado à revista. — Concluía com êxito, Grande Chefe, a Operação Viver-em-Ordem! — o homem soprou na latinha. — Câmbio! E, virando-se, advertiu que se alguém ali abrisse o bico, para dizer que eles andaram atrás do Anterino, ira parar no poço. O poço, ora, o poço! Por alguma razão, o homem cometera um erro — e talvez não somente um “erro técnico”, para usar a nomenclatura deles — ao mencionar o poço no qual, além de outras vítimas, há anos imolaram Mágora, a Magrinha, porque, não sendo adivinha bem mentirosa, ela não pudera fornecer detalhes, pretendidos pelos desalmados, acerca de certo e inexistente Comando Revolucionário de Resgate do Ideário Trotskista, em cuja direção fictícia igualmente a encastelaram. De qualquer modo, por mais perdido no tempo e sossegado no rio, era de causar arrepios para que servira o poço. — Ou então será esfolado vivo — o homem avisou, antes de ir-se com os outros, lembrando que o que acabavam de fazer era coisa banal, sem importância: mero exercício de rotina, para manter os rapazes em forma. Antes, porém, de eles se irem, do fundo do corredor que dava para a cozinha, dona Adrianola olhava com fixidez absurda o homem da latinha falante. Quando ele se retirou com os outros e suas ameaças, ela escarrou satisfeita e chamou o marido para uma conferência. Os dois sumiram de nossas vistas, lá pros fundos, na cozinha. Antônio José de Moura, escritor, é autor de “Sete Léguas de Paraíso” e “Umbra”.

Os mortais

cul5Delermando Vieira Chega um tempo em que as ervas medram, crescem como praga invadindo o quintal, o pátio, trepando, com fôlego, nos muros, nos vãos e caibros da casa; e é nesse tempo que as flores, e suas pétalas, murcham e mais parecem faces chupadas, secas em covos de melão, exalando, no pó do ar ferroso, seu aroma de pudim retraído, regado a louros de um sopro que, pastoso e ferido, aderna à lágrima dos arvoredos em chumaços de chapéus sombrios; chega um tempo em que o existir é o inexistir, em que o real, de tão real, real não nos parece, em que, em suma, em nossa porta ouve-se o soar do bater do punho de um espectro visível, cruel e insensível em seu modo, em sua troupe de arcanjos agônicos; e é nesse tempo, justamente nesse tempo, que a angústia nos toca, nos sangra, inaugurando em nós, a farsa do abandono, dos dias sem sol, sem chuva; e é por isso mesmo, nesse tempo, que a dor de estar ausente, embora apensa aos “slides” das horas, à vida em libélulas de som, nos visita, com sua legião grega e seus soldados precisos em suas lanças, em seus elmos, em suas cnêmides; e não nos é concebível a lâmpada de elidir o que de ruim nos é imposto, ainda mais e quando elas, as urtigas, povoam nosso corpo e em nós fazem vibrar a nênia de uma raça primitiva, oriunda, é certo, dos confins da Mongólia; e é aí, meu Deus, que o ser não sabe ser e, por ser o que já não sabe, passa ser a força e os elos da serpente do Nilo, a naja, talvez, ou a víbora que, por Marco Antônio, um dia mordeu Cleópatra. Chega um tempo em que a nossa casa é pura teia e nossos móveis, abandonados, frouxos no escuro de suas formas, encostam-se pelos cantos, e não há vivalma que ali não pressinta o defluir da vida, do que pensa ou pensou; chega um tempo em que tudo é vácuo, e nada é explicado a nada; e fora, ou é, nesse tempo que se encontrava eu, Pedro, Ana , minha irmã, e Thiago, meu pai; e fora muito antes desse tempo que Maria, minha mãe, deixou de existir, se é que existir era estar ali, era estar aqui, era “nascer” para além do sol, do abstrato em que nossos olhos cabem; e fora, ainda, por esse tempo afora que meu pai, juntamente comigo e Ana, pôs-se a ruir na faúlha do que naqueles dias se alongava; e vendo ele que as teias, as traças, os escorpiões, a tudo cobriam, e sentido, no peito, o vazio se erguendo, se construindo, à sonata empírica dos bruxos, das sombras em estado grávido, entendeu que a nós fora dado o direito livre de escolha, entre existir e inexistir. Crente, então, nessa fé, e diante de tamanho desespero, desceu conosco àquelas terras vermelhas, por dentro da mata vermelha, à espera de ali encontrar a grande fonte, ou seja, o verdadeiro sentido de existir; e ficamos, assim, vagando em círculo; e, quanto mais andávamos, mais a mente se nos apagava, se nos diluía. Vagamos durante vários dias até que, de repente, nos vimos debaixo da porta, da gigantesca porta que dava entrada para o vale, o fantástico vale de luz e ilusões, que mais parecia um pulmão se inflando, se aquecendo, num processo de inspiração e expiração. À medida que avançávamos, à medida que o tempo chegado ficava para trás, em nós o coração se encantava, enraizava-se com sopro de flautins dourados. Com muito susto, assombro que aos deuses desperta, flagramo-nos no colo daquele reino, daquele vale enunciado em framboesas e alfazemas, onde, carregadas, as jabuticabeiras pendiam-se frouxas, sedosas, e as parreiras, enquanto verdes e molhadas, exsudavam em seu suor, em seus pelos de cachos copuliformes, sensíveis, enfim, ao vento amaciando as têmporas, os figos, num estremecer de espumas oleosas; a luz, naquelas bandas, era dócil, tênue como a face de um deus; e era dela, de sua aura esmagada em ponches de maçã, do ventre de seus fios em marfim, que a Grande Mão se edificava e em salmos de sangue proclamava a aurora com sabor de pêssegos carnudos; e fora lá nesse tempo, muito longe do tempo chegado, que encontramos a fonte da magia ocidental, dos pífaros aguados em percucientes de brisa, a jorrar a água que deifica e fortalece a herança da alma na Terra; e fora dela, do esguicho de suas águas em arco-íris e, terminantemente, à poeira luminosa vazando as asas das crisálidas em festim, que bebemos, saciamos nossa sede; mas, como no espaço se concebia, se determinava, não nos era permissível assentar morada por lá, uma vez que, depois de estarmos alimentados, aquele vale se inchava, se inflava, feito balão, pressionando-nos, fazendo com que nos evadíssemos, fugíssemos de seu interior; então, depois de havermos matado nossa sede, reativado nossa força, a este tempo chegado voltamos; e, passado algum tempo, tudo dentro deste plano se nos voltava a violar, e nos fazia arder em lenhos de resinas incendiadas. Dia-após-dia, retornávamos à fonte, logo que nos víamos de novo enfraquecidos. Como sempre, ela nos dava de beber, expelia do espírito de suas entranhas; e, assim, meu pai, naquele vale, erguia, primeiramente, suas mãos em forma de cuia e dela recebia o alento, enquanto eu também o seguia, acompanhado de perto por Ana; e vários dias ficamos voltando àquele reino de magia ocidental. Um dia, não me lembro quando, sei que corria no céu uma fumaça escrita em cuneiforme, retornamos à fonte; mas ela, em sua sabedoria transcendental, não mais verteu de sua água a meu pai. Depois de levantar as mãos em cuia, muitas e muitas vezes, ele, enfraquecido e estonteado, recuou comigo e minha irmã àquele tempo chegado. Noutro dia, pela mesma hora, volvemo-nos a essa fonte; no entanto, nada de água, alento, para meu pai; jorrou ela apenas para mim e Ana; mais enfraquecido, meu pai retrocedeu a este tempo chegado; e, ocorridos os dias, mirou-se ele no espelho empoeirado da sala sufocada de ervas; porém, sua imagem não se refletiu; abatido, destituído de energia alguma que pudesse faze-lo resistente, olhou para nós com olhos de sabão em pó, empacotados e brancos, indo, em seguida, em direção à porta, ao tampo-de-abertura deste tempo chegado; como quem é apagado pela borracha da mão se achando no erro, desapareceu, esquivou-se entre as sebes do lugar, e nunca mais o vimos! Uma semana depois, quando Ana e eu (ao voltarmos daquela fonte ocidental) estávamos sentados à porta da casa tomada por ervas, uma pomba luminosa veio e pousou no parapeito da janela ardida em feixes, em aros de estanho vil, e, ali, como se nos conhecesse há muitos anos (e seus olhos muito se assemelhavam aos de meu pai), ficou a nos observar, vigiando, atenta, nossos gestos, nossos movimentos; era bastante suave seu ruflar, bater de asas e, no seu voo de luzes, preocupou em estar sempre perto de nós; mas os fluídos emitidos de sua aura, do eixo de seu ser, não lhe premeditavam que em si Sat era sadia, que em si Ananda ainda era leve, frágil como casca de ovo. Chega um tempo em que a desolação é total, em que nunca sabemos se já estamos, ou estamos, em que nos vem o pensar de onde viemos e até quando iremos; e fora por este tempo, e devido a ele somente, que íamos todos os dias àquela fonte ocidental, numa eternidade que só o Céu e a Terra hão de provar; e, por não compreendermos este fato, ansiávamos o ápice da existência, mesmo que fosse por um segundo, mesmo que nos fosse árduo o instante de admitirmos que não estarmos vivendo e, por imaginarmos assim, dessa maneira tal, é que fomos à fonte, naquele meio-dia de setembro, com o intento de lá sorvemos o alento; para nossa tristeza, nossa desilusão, ela não mais jorrou para Ana e, como espectadores do Infinito, postamo-nos ante ela estáticos, e mudos, na persistência, ou espera, do ato de Ana, de sua mão pênsil em forma de cuia; a fonte naquele dia jorrou apenas para mim; desencantados, retornamos à tarde a este tempo chegado. Voltamos, noutro dia, à fonte, àquele mundo de fascínio e encanto, mal o sol surgira; no entanto, ela, a fonte, jamais jorrou para Ana; e não me era possível ceder de meu alento, ou seja, do que ela me ofertava, à minha irmã, pois o que me era dado era dado rapidamente, e, rapidamente, eu deveria bebê-lo; não havia tempo para ceder a ela; e Ana, então, uma semana após, quando esgotada na sala da casa em ervas, mirou-se no espelho em que meu pai antes se mirara, e sua imagem também sequer se refletiu; sentindo-se abatida, feito um elefante que, pressentindo a morte, a vida, chegando, caminha no rumo de seu cemitério, ela desapareceu, sumiu na névoa, no calor das tabocas ardendo. Vencidos os dias, outra pomba, voando em tênues raios de luz, pousou no parapeito das janelas em ervas, e ali permaneceu, o coração pulsando na pele iluminada do peito; eram, agora, duas pombas em luz sutil; e uma delas, se estou certo, tinha o perfil igual ao de Ana; aquilo me fez pensar no que era existir. Chega um tempo em que tempo é de repensar, e é deste tempo que ora falo; a quem interessar, deixo escrito no pano de algodão branco da mesa: há dias vou àquela fonte ocidental, e ela até hoje nunca me negou seu alento e em mim, por mais que eu não queira, Ananda é forte, vibra como lírios no campo, enquanto Sat se me soa ininterruptamente; por mais que eu procure, não compreendo ainda o que é existir, sobretudo porque Thia­go e Ana já não se fazem mais presentes, e a solidão, por cá, é abismo, ferrete imóvel no ar, entre os vãos dos caibros; e nada é mais triste do que não ter alguém pra conversar, dizer alguma coisa, a não ser aquelas duas pombas, sobre o parapeito da janela, que não sei se são ou se realmente são; e o pior de tudo é ter, ainda, a amarga certeza de que aquela fonte ocidental jamais me negará seu alento! Derlermando Vieira é escritor. via Revista Bula

A flor no labirinto

Aconteceu na manhã da terça-feira, quando lhe telefonaram avisando que ela tinha ido embora — na noite da segunda, tinham feito amor e sofrido muitas outras alegrias. Avisaram para o rapaz não se espantar, quando encontrasse a casa vazia, e também disseram que a mulher não queria telefonar

No SUS

Enzo ainda tava machucado. Dois anos de relação e a noiva o largou por causa de um empregado do pai, bom de lábia, mau caráter e interesseiro