Nódoas: o torturador ele só em sua noite
17 maio 2014 às 10h02
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Valdivino Braz
Noite adentro, a tosse intermitente e ele a se arrebentar em golfadas de sangue; uma dor feito estilete a trespassar-lhe os pulmões agonizantes, e umas pontadas repentinas a confranger-lhe o débil coração, arrancando-lhe, tal fossem nacos de carne, os entrecortados gemidos. Rangem as molas soltas do colchão, infestado de percevejos, toda vez que ele, ao tossir, se agita no leito. Fora, uiva o vento, ao modo de um cão agoniado, perdido na treva. Relâmpagos incendeiam os vidros da janela, clareando as áreas obscuras do quarto frio e fétido, parcialmente iluminado pela luz mortiça dum antiquado abajur.
Ratos enormes movimentam-se pelo recinto, emitindo guinchos cantantes, à semelhança de carretilha ao correr duma corda. Um deles, por mais afoito e incisivo, a roer com exaspero a tira de couro que serve de emenda a uma perna quebrada da cama, ali aos pés do moribundo. Entrecruzam-se os roedores, desassossegados, e o enfermo contempla-os com pavor e funesto pressentimento de que ali estão para devorá-lo, a qualquer momento. O pavor aumenta a cada vez que ele, numa sofrida vigília, surpreende os olhos miúdos e brilhantes a fitá-lo com sinistra insistência. Com supremo esforço, tenta soerguer-se no leito nauseabundo, afugentar o inimigo, mas o violento acesso de tosse de novo o acomete, e ele torna a estirar-se, arfante, esgotado, em seus trapos de nojo, infectados pelos bacilos de Koch.
O velho relógio-despertador, sobre o corroído criado-mudo, registra os artifícios do tempo: o cansado tique-taque, aos ouvidos de quem ali jaz e agoniza, soa como o implacável e fatal limite de sua própria resistência, frágil fôlego, dificultosa respiração. Ele sentindo-se cada vez mais próximo do fim, sobremodo quando a espiral no labirinto do relógio, em disritmia com a mecânica das engrenagens, bambeia e se descompassa, desabala-se como que estrabulega: clocloclecleclec!, em sonido de lata velha, que o sobressalta tanto mais, pois então é o seu podre coração atabalhoado por taquicardia, ao que ele se compara com o estafado relógio, sem tirar nem pôr, até mesmo — ele imagina — o giro empenado das rodas denteadas do tempo, e douradas, como do espelho o fundo fosco, que à luz do dia se entremostra ali nos úmidos e mofos da parede, carcomida pelas goteiras.
A água devorando a cal do reboco, em que pese exagerar-se a comparação, semelha uma cadela a roer o osso. E o tempo, ao moribundo ensanguentado no leito, é um cão danado a abocanhar-lhe a vida sempre que se dá o salto frouxo da mola serpentina do relógio, com olhos de rubi, da cor do sangue que ele escarra nos panos impuros em que se deita; o branco do tecido há muito maculado por repulsivos humores de um corpo em decomposição, não bastassem ali aqueles coalhos sanguinolentos e assustadores. Já o enfermo por demais debilitado, como quando se debilitam as pulsações cardíacas, a sístole-diástole oscilando num sobe-e-desce crepuscular, ao emitir-se dos bips luminosos no cardiógrafo de um hospital. Ele agora com um pé na cova e o outro ainda numa nebulosa da vida, a um passo da eternidade, from here to eternity, daqui até lá, ele só e mais ninguém — sempre solitário e tímido ao extremo com o sexo oposto, curtiu uma queda por Deborah Kherr, estrela de um filme de época, década de 50, ao qual ele gostara de assistir: um drama numa base militar, anos 40, conflitos e amantes ilícitos, com uma famosa cena de beijo, sugestivamente — entenda-se — banhado pela espuma do mar.
O tempo, agora, como se cobrasse do moribundo um ajuste de contas por sua sórdida vida pregressa, por seus atos truculentos, por seus crimes hediondos, pela tortura e morte, com requintes de sadismo, de presos políticos, por conta do livre-pensar e pensar de forma diferente. Era ele um produto e instrumento do arbítrio; era um deles, desses que resvalam para o rodapé da evolução humana, na escala natural dos símios, e desistem de ser homens, senão que regridem ao estágio dos girinos, ou ainda ao reino unicelular das amebas.
Esgotam-se, inexoráveis, impiedosos, os minutos que ainda lhe restam, e, para seu maior pavor, mais e mais se atreve a determinação dos ratos. Acelera-se a agonia ao desarranjo das horas que lhe vão esgarçando o fio de vida, para arrebentá-lo de súbito. Acossado pelos terríveis acessos de tosse e pelas fundas ferroadas no peito; cercado pelos ratos e já por conta do implacável avanço das lanças negras no relógio da morte, ele está só consigo mesmo, como jamais esteve ao longo de sua malversada vida; falto, ele, de sentimento humanista, de valores que regem o lado bom da humanidade, tomando-se por bom o oposto ao que faz sofrer, como se toma por mal o que não é por bem do outro, indo-se o bem que se quer por inerência do individual ao coletivo, e em nada recorrente ao dualismo maniqueísta do século III — entre Deus e o Diabo —, primado de um viés reducionista e retrógrado, e posto que em nada absoluto o que é relativo. Dizê-lo assim — relativizar —, todavia e certamente não justifica, em sã consciência, o torturador em questão; tanto menos quanto querer, por meio de vesgo argumento, justificar o que é mau e causa dor, contrário ao que é bom e é de foro íntimo não infligir sofrimento a outrem; já não fosse que a vida por si mesma é um sofrimento, amiúde dolorosa, amiúde alegre, mas nem sempre.
Nessa hora de sustos e punhais do tempo no peito, sombras emergem do passado e vêm assombrar ainda mais o espírito atribulado pela ideia do fim. Visões fantasmagóricas avultam-se na penumbra do quarto, dedos em riste apontam para o gemebundo tuberculoso, vozes acusadoras ressoam-lhe nos tímpanos, atordoam-lhe o cérebro, e vão num crescendo alucinante, somando-se às dores do mal que o apodrece e devora. Bolas de sangue explodem e coagulam no ensebado lençol, dimensionando-lhe o pavor do agora, tanto mais por saber-se abandonado, sozinho com os seus fantasmas e a sua morte. Sequer um cão vagabundo, o mais rabugento, o mais pustulento, o mais repulsivo que fosse, nessa hora crucial, nessa noite tenebrosa, que ele sabe derradeiras. Ah, merecesse ao menos um afeto ou afago compadecido! Mas, não. Apenas os ratos, previsíveis no seu intento, e os espectros da noite em torno de sua agonia final.
O vento vergasta, furiosamente, a janela, querendo entrar, e línguas de fogo lambem a vidraça a todo momento. Guincham os ratos, histéricos com o manifesto das forças naturais, e, atraídos pelo cheiro do sangue, começam a subir no leito infecto, tantos, que o miserável homem ali se sente como um deles, um rato abjeto ao desprezo da família humana, apartado do calor solidário que, ao fim, e apesar de tudo, movimenta as rodas do mundo. Atacam-no, afinal, os sinistros. Cravam-lhe os dentes, mordem, mordem e dilaceram a carne. Ele grita, e tosse, golfando os pavorosos coágulos. Tenta levantar-se e não consegue, dezenas de mãos o impedem, subjugam-no, como garras de ferro. Em vão ele se debate. Rostos antigos bailam diante de seus olhos turvos, olhos furiosos o fitam, dedos o apontam, vozes o acusam. Ele grita, e tosse, e vomita sangue e se estertora e se entrega, vencido, à sanha dos dentes pontiagudos. Talvez jamais tenha pensado nisto, mas tem a vida seus próprios ditames e caprichos, tem suas represálias à revelia de quaisquer outros mecanismos, por vontades do homem. Ao giro das rodas do mundo, tem a vida suas sábias e higiênicas providências.
Roído pelos ratos famintos, vai-se o enfermo pelo ermo de seu inferno. Sentenciado por seus atos de culpa, ele ainda respira entre os claros finais de lucidez e a febre do delírio; mas é tarde, muito tarde, e tempo não há mais para nada. Negros (co)lapsos de tempo são a grafite finita no lápis da vida, acabou-se a escrita. Ali os panos encardidos de sua cama, com eles o asqueroso lençol, sudário aos fluidos humorais. O suor, a linfa, a urina, o sangue, as nódoas de toda a sua podridão. Putrefato o banquete dos ratos, posto que o corpo ali se furta ao repasto dos abutres, mas não lhe escapam, de resto, as sobras aos benditos vermes da Criação, que se arrastam, embolados e nojentos, pela terra de todos e de ninguém. A terra dos homens. O berço e o caixão. A terra abençoada em que jaz a humana pequenez da pretensa e presumida grandeza humana. A mísera suposição de ser o que de fato não é; e presumida porque iludida e ensimesmada, convencida de si mesma. A terra e nela o homem em seu devido lugar. Pó ao pó, a arrogância do saber de reizinhos atarracados, pançudos, e o poder de gigantes empertigados, uns e outros reclusos na empáfia de suas poses, supostamente sábios e poderosos em suas bobas ilusões de ser e vida efêmera.
O trovão estronda e a tudo estremece. Leclecleclec… — o relógio para de pulsar. E assim o torturador ele só em sua noite, sem a sua turma e longe da putíssima — leia-se digníssima — senhora sua mãe, coitada, não tem culpa — salvo que involuntária — de tê-lo parido, de ter posto no mundo esse tipo de homem, um estrupício, uma aberração como essa, em figura de gente. E Deus criou o homem, está escrito. E o homem arvorou-se em imagem e semelhança de Deus. Durma-se com essa. Pelo amor de Deus!
Com água do dilúvio, a terra se purifica de algumas impurezas. O dia amanhece limpo e calmo, claro e cristalino, como se a justiça, afinal, saísse a passeio pelo mundo, se bem que a justiça sempre leva no bolso a conveniência de alguma impunidade, a conivência sob o surrado manto da injustiça.
Aos poucos, ao esquentar-se do sol, as coisas se consolidam em seus contornos, e o admirável mundo novo segundo Huxley retoma sua rotina. Também as víboras saem para o cotidiano e tomam seu matinal banho de sol. E agora a sombra do urubu se recorta e faz sua ronda no ilusório azul do céu. Enquanto isso, espessos volumes, calhamaços em papel-ofício, mil vezes carimbados e rubricados, mais e mais se recolhem aos aposentos da morosa Justiça. Justiça para quem? Às traças os processos arquivados, prescritos os crimes contra os civis, anistiados os culpados, inclusive a parte podre da sociedade civil, e toda a impunidade aos generais. E não se fala mais nisso. Não se repisa esse assunto. Não se alimente, pois, o ranço do ressentimento, nem o desejo de revanche. Os generais são inocentes. Agiram e mataram no cumprimento do dever. Reféns do refrão da obediência. Para todos os efeitos, e de uma vez por todas, revogam-se as disposições em contrário. Para que reprisar os tristes fatos, reabrir cicatrizes? Afinal, cinismo à parte, não doeu tanto assim, doeu? Então para que falar-se em nódoas da história? Os uniformes dos generais estão limpos, lavados e bem-passados. Polidas, livres do zinabre do tempo, brilham as medalhas no peito dos heróis da Pátria. E não lhes venham com ironias baratas, querendo conspurcar-lhes o verde-oliva das fardas, denegri-los por conta delas, a eles, conspícuos bastiões da soberania nacional. Os generais não são assassinos. As estátuas nas praças da República são regularmente limpas de suas impurezas, removido pelas chuvas o cocô dos pombos, embora resista, renitente, a nódoa comprometedora da pátina esverdeada, cor de biles, de vômito.
Valdivino Braz é jornalista e escritor, autor do premiado romance “O Gado de Deus”.