Da mulher e a enchente
15 abril 2016 às 16h08
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Loisse Rodrigues
Especial Jornal Opção
Sentou-se sobre as pernas dobradas no que restou da mesa, os olhos fixos na janela da cozinha e o cheiro de terra úmida nas narinas.
A chuva assustou o telhado, sacodiu a estrutura da casa, tentou forçar as janelas. Invadiu quartos, banheiro e sala. Tomou a cozinha e queria engolir todo o resto. Alguns móveis despontavam sob a água em busca de um último fôlego, inertes em sua essência.
Ela também estava submersa em desesperança. Assistiu em silêncio o ápice da tormenta, não se moveu, não esperou socorro. Apenas ficou.
O marido foi aos filhos no campinho de várzea. Campeonato do bairro sob o clima da véspera do brasileirão. Garotos inquietos, chinelas nas mãos, poeira no rosto. A chuva os seguiu até o jogo, borrasca. Em minutos, se enfureceu. Cismado, o pai foi buscá-los há seis dias. Não retornou mais.
Pela janela, viu a terra descer o morro, abundante, e levar muros, paredes, portões, mulheres, homens, cachorros, camas, geladeiras. Assistiu à lama devorar árvores, carros, pontos de ônibus, cadeiras, idosos. Gente fazer armário de bote, se agarrando aos fios de energia, esmurrando o vidro do carro enquanto a água violentava cada fresta e bebia o motor, o painel, as chaves, o câmbio e o volante.
A porta da cozinha rompeu com o estouro da enchente e entrou na casa. Quase não teve reação quando o dilúvio assenhorou da sua cama de casal, arrebentou a pia velha do banheiro e encharcou as roupas secas e limpas no cesto da área de serviço. Apenas fechou os olhos quando sentiu os pés descalços imersos em lama e água, depois os joelhos e a cintura.
Subiu no rack da televisão quase coberto, içou-se para a cunheira da casa e aterrissou sobre a mesa da cozinha. Ali, ficou durante todo o tempo. Ilhada, imunda, faminta, amedrontada.
O som dos barrancos descendo morro abaixo foi, aos poucos, substituído pelo canto melancólico das cigarras, gritos isolados e latidos dos cães. Caiu em si, o marido não voltaria e nem os filhos. Sentiu o soluço nervoso apertando a garganta, forçando a saída como a enchente forçara os limites da sua vida. O berro oculto ecoou do fundo do seu desespero, ardendo a alma por tudo que se fora.
A resposta do mundo era um silêncio doído, pois agora cada um por si e Deus que ouvisse os lamentos de todos. As portas da dor foram escancaradas e tomadas de água, mesmo que não lhe saísse uma lágrima sequer para desafogar.
A mente voltou sozinha até a manhã anterior quando a vizinha bateu à porta, com cara de espanto. Vinha falar da previsão meteorológica dos próximos dias.
“Vou pra casa da tia do meu marido”, contou ela, passando a mão no batente e espetando o dedo em uma farpa. Torceu o nariz. “O prefeito prometeu uns lotes lá do outro lado da cidade, mas até hoje. Já não espero mais nada”. Ela apontou com o queixo para o morro. “Aquilo ali ainda vai enterrar todo mundo. Quando a terra descer vai chegar até aqui”.
Não duvidava da vizinha. Sabia dos riscos. Só não tinha para onde ir. A família do marido era do norte e não os tinham em alta conta. Perdera contato com a dela, no Mato Grosso. A mãe morrera há mais de trinta anos, desaparecida em um rio do interior em dia de chuva, enquanto lavava as roupas dos filhos menores. Os irmãos se mudaram da antiga casa e não deixaram rastro. Aonde iria?
Teve um lapso de saudade das coisas pequenas. Do cheiro do café que o marido fazia antes de vender salgados no terminal, da rachadura no quarto dos meninos que parecia um tronco de árvore retorcido e sempre tinha uma trilha paralela de formigas, do dia que o cachorro da Dona Suzana invadira o quintal com um rato na boca e fugiu quando ela jogou um balde d’água nele. Eram bobagens cotidianas que pareciam muito distantes agora. Tão distantes quanto a sua fé.
O marido já perguntara se poderiam ir à igreja metodista no quarteirão de baixo, na rua da feira. Ela disse que pensava, mas não via alento nestas coisas. Não enxergava divindade ali dentro. Estendia a roupa no varal quando encontrou um passarinho morto no cesto. Foi a sua blasfêmia que matara a criaturinha? Castigo? Não sabia. Duvidava que Deus existindo teria essas mesquinharias típicas dos homens.
Memórias tão distantes estas que não pareciam reais. Tudo girando confusamente dentro da sua cabeça dolorida, a fome deixando-a zonza e aérea. Trechos entrecortados de lembranças difusas, ora tão próximas, ora tão afastadas que pareciam ter um milhão de anos.
O corpo clamou que se deitasse. Ela torceu as mãos sujas de barro. Nunca cedera aos cansaços da vida, ao trabalho da casa, ao estudo na escola pública. Tinha gosto pela leitura, não se intimidava com letras, nem com números. Era sim letrada, mas as oportunidades tinham as costas viradas para ela e sua família. Viviam no aperto das contas, encurralados por cobradores cínicos e barreiras hostis.
Abraçou as pernas frias, o rosto curvado sobre os joelhos. Fome, sede. Que inferno era este que a tornaria mais um número nas estatísticas? Que faria algum figurão político sobrevoar sua casa com olhos distantes e nem se dar conta de que ali havia uma história particular?
Lembrava bem o discurso das casas do outro lado da cidade. Na época das chuvas do ano passado. Incidente menor, mas com estragos. Uma senhora perdeu a casa e o marido com a queda de parte do morro. Veio a rede de televisão. O repórter gritava e acenava que o prefeito não fez caso dos alarmes da Defesa Civil. Cobrou respostas. Cobrou visitas. Cobrou atitude. Aplausos, gritos, assobios. Próximo candidato podia sair dali, com microfone, terno e votos.
O prefeito veio. Engomado, capacete de engenheiro na cabeça, seguido de um bando de carneirinhos frouxos, assessores e secretários de camisas riscadas suarentas. Aquelas caras de entendidos, cumprimentando a todos com polidez e reverência ensaiada.
A mulher que perdeu o marido, os olhos inchados, cabelos desgrenhados, no centro da multidão. O prefeito passou por todos, segurou o rosto da desgraçada e beijou a testa. “Vou fazer o impossível para lhe dar uma vida digna. Uma vida que todo cidadão desta cidade merece”. O povo aplaudiu. Mas como não? O prefeito saiu de casa limpo e coração aberto, se enterrou na lama até os joelhos, beijou a viúva simples e sofrida. Tem direito à cadeira. Reeleição, meus amigos. Não há dúvida. Do contrário, só quem ele apontar o dedo. Que homem, meu Deus, que homem.
Meses depois, a comunidade ajuntava roupas e comida para a mulher beijada pelo prefeito. Largada sem teto, sem marido, sem futuro. Nos bolsos, as promessas da vida digna que nunca vieram. A televisão não voltou, nem o prefeito. Às minguas, ela morou com vários vizinhos. Morreu. Desgostosa de tudo.
Sem marido, sem filhos, sem casa estava ela agora. Maria do Rosário Bento Paiva. Com seus quarenta e dois anos. Aniversariando em seis dias. Nascida em Mato Grosso, filha de Alzira Rosário Bento e Nicanor Bento Ferreira. Negra. Setenta e três quilos. Ensino médio completo e bem feito. Mãe de dois rapazes sadios. Esposa de Antônio Paiva Neto. Doceira e salgadeira da redondeza. Tutano de coragem nas veias.
Agora só.
Nem se identificava mais. Só à escuta de um coaxar mudo dos sapos atraídos pela chuva raivosa. Até eles não deram presença naquele cenário devastado. Sem grilos, sem pássaros noturnos. Os cães se calaram, os gritos também. Silêncio de respeito às mortes em vida dos que acordariam no outro dia com água até os ouvidos e o mundo próprio afogado. Ainda nem pensara nos próprios mortos.
Antônio Paiva Neto. Um mestiço cheio de vida. Taciturno como uma coruja. Seu primeiro morto lembrado. Agonizava em uma alegria melancólica sentado no alpendre, remexendo uma caixa de eletrônico. “Que é isso, Tonho?” Ele sorriu, os dentes tortos e brancos. “Quero guardar as cores do mundo”. Era uma câmera compacta. Daquelas paraguaias, meio chinesas. Uma família de brancos sorridentes posava para a foto da embalagem, numa praia acalorada. Instruções em inglês, espanhol e mandarim. “Não quero foto na praia. Quero foto na serra. Muito verde”. Que fim é esse, Tonho? Não tem mais verde, só o marrom da terra.
Vendia doces e salgados no terminal. A calmaria de sempre, passadas suaves. Recém divorciado da aguardente. Era só café agora. Muito. “Dois discos de carne e um copinho de preto quente como brinde”. Abria o sorriso torto, tímido, as pessoas simpatizavam. O papo engajava. “Vai uma caninha mais tarde, Tonho? No bar do Lauro?”. Ele sorria, dava de ombros e se esquivava cortês. “Vou, assisto a festa, mas só bebo água morna, que é para não estragar a voz”. E entoava um trecho da Beth Carvalho, a melodia saltando para o grave quando não conseguia ir mais alto: “Já me fiz a guerra por não saber/ Que essa terra encerra o meu bem querer / E jamais termina o meu caminhar”. Terminou seu caminhar, Tonho. Debaixo da lama, sabe-se seu Deus onde.
Entre o frio e a fome a mente deu seus saltos. Chegou à figura do mais novo. Ernani Paiva Bento, adolescente embirrado nos seus treze anos. Queria ser alfaiate. “Onde já se viu?”, ria o Tonho, mas sem maldade. “Eu sei o que o alfaiate faz, pai. Quero fazer um terno pra mim igual ao do Messi”. Tinha os dentes tortos do pai, mas sem a mesma mansuetude. Agitado, briguento, tiradas fanfarronas. A mãe chamava à corrigenda, fazia de bronco. “Não aceito, já tenho mais de doze. Sou homem grande”. Jogava bola com sabedoria, teria prêmios de ouro no futuro, dizia o irmão.
O mais velho. Jair. Calmo, dócil, um abobalhado. “Todo mundo pisa nas fuças do Jairo, mãe”, fungava Ernani, cheio de rancores. O irmão sorria, passava a mão pelos cabelos de reggae, se limitava a responder entredentes: “Jah deseja paz ao mundo. Quem sou pra querer o contrário?”. A fase Bob Marley, o som dos três passarinhos pousados à porta, camisas em verde, vermelho e amarelo, filtro dos sonhos no teto, cheiro de erva queimada. “Não quero, não quero, Jairo”, berrava ela alterada. No meio da janta, todo mundo de olhos pregados no futebol, Maria do Rosário com os nervos estridentes. “Já aguentei muito da cana do seu pai. Não aceito filho maconhado”. Não, Jairo. Não o meu Jairo quase abortado no terceiro mês. A falta de grana, o pai pastor correndo com ela de casa aos dezessete anos, Tonho procurando emprego e cartório para oficializar o caos. A decisão de seguir em frente, o garoto nascendo e crescendo em meio aos tapas que levavam da vida. “Se ele continuar assim, se forma advogado”, disse a professora do primário, ar piagetiano, sorriso de ternura para o Jairo. Não, não aceito, Jairo. O único que poderia sair daqui com jeito, levando a família junto. Maria chamava aos dois de meninos, mas o Jairo já tinha seus vinte e cinco sob os ombros.
“Tá me devendo uma faculdade, garoto”, dizia a ele, enquanto ralava cenoura para o bolo. Jairo sorria. Os dentes eram retos iguais aos seus. Juiz nenhum diria não para aquele bagre. “Vou ver um lance no Sisu, minha preta. Prometo que até o meio do ano dou jeito nisso”. Repetia o mesmo engabelo a cada janeiro. Vivia dos bicos de técnico de som na igreja Metodista da rua da feira. Tinha a ousadia de tocar os hinos no ritmo do reggae. Fez de amigos os fiéis de lá, que o queriam de camisa de linho e barba feita. “Um dia, filhos de John Wesley, mas não hoje”, e era de uma educação tão apaziguadora que os irmãos oravam com paciência pela sua conversão.
Jairo, meu Jairo. Seu filtro dos sonhos oscilava preguiçosamente com o vento noturno. Devia ser madrugada. O corpo enrijecido pelas roupas molhadas, o cansaço dobrando-lhe a dureza. Sentiu-se pender, o tabuleiro de bolo vazio como travesseiro, lembrou-se da avó. Imagem distorcida, parecia rir-se dela. “Menina feia, dorme muito. Não sabe cozinhar, lavar. Não casa”. Sentiu o cheiro do cigarro de palha da velha, o estômago revirou com a memória.
A dona Lisandra, com seu azedume habitual, pairando sobre a água da cozinha. “Não dormi, vó, é só para aparar as costas”. O rosto macilento se abriu no que pareceu ser um sorriso. “Levanta essas ancas, menina feia. Vai passar um café para o seu pai”. A voz dentro da sua cabeça, dando ricochetes na massa cinzenta. “Não tem pó, velha diaba. Só lama. Quer café de lama”? Os olhos pesados, a cada piscadela um vislumbre da gengiva nua da avó. Não dormia. Eram as costas doloridas. A respiração apertou-se no peito, sentiu-se dormente, numa daquelas sensações de que o espírito vai se apartar do corpo para velejar nos sonhos. Lisandra baforava sem fumaça. “Cadê o café, menina feia que só dorme? Cadê”?
Perdeu-se no tempo. O café, a avó, as lembranças. Três dias para frente ou mais que isso. Deitada sobre a mesa áspera, ouviu o ronco. Motor potente, os pneus riscando na terra para não se prenderem. Parte do sonho dizia que eram os homens do exército resgatando o povo dos escombros. Ninguém morreu. Só precisavam de um banho demorado. As casas iam se levantando quando os soldados passavam. Glória, glória, gritavam os irmãos enlameados da igreja metodista. Todos com bíblias e frutas nas mãos, pois são da rua da feira. Olha o Tonho Paiva. Não bebe aguardente, mestiço danado. Hoje pode. Estamos vivos e temos casas. Lá vem o prefeito. Beija minha testa, seu rato imundo. Cadê as chaves do meu lote?
Despertou as poucos. A cara do prefeito dançando nos seus olhos. Ergueu o pescoço endurecido, viu pela janela uma camionete prata, plotada com algum símbolo comum. Já vira em algum lugar, mas a mente estava falha àquela hora.
Ouviu as vozes baixas, o som da caminhada pela água. Entraram pela porta da frente. O rapaz com um microfone na mão direita. Não era o futuro candidato? Viu outros, mas não identificou seus rostos. “Jorge, você tem uma visão de águia. Como viu a mulher pela janela?”. A voz aguda de uma moça perplexa. “É Deus, Joana. Quem mais poderia ser”? A voz do Jorge, engordurada por falsa humildade. Estava com o ego explodindo por ser o dono daquele achado.
Chegaram até ela. Sua cabeça caíra novamente sobre o tabuleiro. Que sono infernal.
“Consegue me ouvir, senhora? Ela não deve comer há dias”. As perguntas iam e voltavam no seus ouvidos. Moça, aproveita que está aí e faz um café. Olha aí, dona Lisandra. Estou realmente com muito sono.
Perdida nas horas, as ideias em branco. Alguém lhe chegou às costas, pediu que erguesse a cabeça, com os olhos para as paredes. O enquadramento tinha de enfatizar a desolação. “Esfregue terra nesta cara”, e a pessoa bateu os dois dedos na testa de Maria do Rosário. “Aqui, aqui. A imagem precisa convencer”. Passaram terra, umedeceram seu rosto, lhe deram dois beliscões gentis. Ela gemeu. “Não exagere. Para doer teria de ser assim”, e outro beliscão. Com força, irritação, uma ligeira vingança. Então de seus olhos brotaram água. Ou seria a água que lhe jogam na cara? Uma turma de assistentes passa as mãos pelas paredes checando a umidade. Analisam o tamanho das goteiras e derrubam os móveis que ainda estão de pé. O diretor bateu palmas, hora de gravar. Todos saíram da cena.
Jorge se aproxima com aquela pinta de emotivo, gente do povo, bota o microfone diante dela. O cinegrafista prendeu o fôlego, aquilo renderia uma tomada das melhores. Ela não ouviu as perguntas. Pareciam palavras desconectadas, saltando de um lado para o outro, sem sentido. Havia mais pessoas na sala do que antes.
O prefeito chegou com sua trupe de aprovadores, com expressão comovida, ares de pai. Pegou Maria do Rosário pelos ombros, grudou-lhe um beijo de dez votos na testa, se pôs ao seu lado e descarregou o discurso de entidade protetora dos indefesos. Mais promessas para serem esquecidas até o próximo mandato.
A luz da câmera apagou. A transmissão foi encerrada. Informaram a ela que o prefeito requisitara o seu resgate. Foram embora. À noite dormiria em algum ginásio entupido de almas e esquecido pelos condoídos das primeiras horas. Na lama do descaso e do fim, pegou-se pensando em passar um café para si e suas amarguras.