Luzes na Taverna (um conto gótico)
25 setembro 2024 às 20h55
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Na taverna de Noah, terminamos o dia sobre canecas que eram réplicas das de ontem e refeições que seriam reiterações das de amanhã. Na névoa de tabaco, gargalhamos, menos para reagir às piadas do que para nos reassegurar da felicidade dos esforços da estação. A moeda no balcão, o crepitar da lareira, a solidez das paredes de pedra; outros talismãs. Tão profundamente a incerteza havia penetrado que repetíamos o autêntico em confirmação solipsista: o pão está velho, Otto está gordo, faz um frio terrível.
Victor Aetos se sentava de cabeça baixa, observando na madeira do balcão os prismas coloridos projetados pelo pôr do sol através das vidraças da taverna. Um vitral verde, azul e vermelho cobria a parede oeste do bar e, nesta hora, a luminosidade do fim do dia era filtrada em polígonos feéricos atirados sobre nós. Os olhos de Aetos iam para o teto quando ele tornava a cerveja e retornavam ao tampo do balcão, onde as formas multicoloridas levavam sua consciência para longe. Entretanto, um bêbado prematuro chamou até nós o seu espírito, perguntando: Victor, quais notícias você traz dos outros planos?
A taverna silenciou. Edgard, o beberrão, molestava a ferida de nenhum outro senão do único habitante de nossa vila autorizado a ostentar suas chagas. A resposta de Aetos foi apaziguadora: Hoje eu não tenho notícia alguma.
Por quê? Seu investimento não está dando resultados?
Noah, o taverneiro, serviu uma nova caneca para Edgard e apontou uma mesa vazia distante.
O beberrão não percebeu ou ignorou a instrução e falou: Não sonhou esta noite?
Relatos de nossos próprios sonhos são sempre aborrecidos, disse Aetos, o lunático. Meu interesse está naquilo que sonha conosco e naquilo com que nossos sonhos sonham. Ele bebeu sua cerveja e a tensão cresceu, pois receamos que Edgard aproveitasse o silêncio do gole para fazer mais uma provocação. Mas quem tornou a falar foi Aetos: Se está tão interessado, eu posso te mostrar. Posso destapar aqui mesmo o ponto cego que obscurece a vista para outros mundos.
Edgard olhou ao redor, orgulhoso do que conseguira pescar. Recebeu de volta olhares de uma multidão apreensiva como um gato. O bêbado falou em voz alta, mais para nos convencer do que para responder a Aetos: Todos nós, que te apoiamos nessa busca insólita, vamos apreciar sua demonstração. Você pagou pela cerveja que está tomando ou lhe serviram de graça? Não se engane, todos nós te sustentamos e esperamos alguma satisfação.
Um resmungo de protesto aqui e outro ali. Quisemos interromper o bêbado inoportuno que sozinho ameaçava estourar a bolha longamente inflada ao redor do louco. Mas nos detivemos quando Aetos falou: Muito bem, você tem razão. Ele se levantou e foi até a parede oposta à das vidraças. Disse que ainda era cedo para apresentar sua revelação, mas que poderia ocupar os minutos faltantes com uma breve explicação, contanto que concordássemos em apagar as lâmpadas.
Noah hesitou. Por um lado, havia o receio de encorajar um despropósito que, se não inflamasse a loucura de Aetos, seria um embaraçoso desperdício de tempo. Por outro lado, havia o medo de que contrariá-lo pudesse acirrar a desavença, provocada legitimamente. Por fim, a condescendência do público pareceu decidir as coisas. Mais do que complacência, havia simpatia pelo inválido, destratado pelo beberrão. O pobre homem já ouviu demais, deixem que ele fale um pouco, alguém sugeriu.
Assim, Noah fez desaparecer a claridade das lâmpadas. As tintas espectrais projetadas pelo vitral cobriram Victor Aetos na iridescência de um arco-íris corrompido em forma e essência, um manto multicolorido para o sacerdote de uma catedral degenerada. Ele sacou de seu cinto uma grande lanterna enquanto dizia que tudo de que precisava agora era de um voluntário, e por que não você, Edgard, o mais curioso por nosso objeto de interesse?
Investido na exibição como estava, Edgard não pôde recusar. Foi ao centro do salão e encarou seu oponente com as mãos na cintura e equilíbrio incerto e sorriso arrogante. Aetos fez nascer luz na lanterna e começou a falar. Aquele não era o discurso de um demente ordinário, mas um corolário negro, formado por adágios escassos como velho colar que perdera suas contas e cuja aparência tinha de ser inferida pelas pérolas restantes – joalheria decadente e arruinada – mas degenerada daquilo que é autêntico.
Apontou a lanterna para Edgard e disse: Percebam que o equilíbrio de forças está equivalente – a luz do mundo nos invade pelas janelas e nós lançamos lá fora a luz desta lanterna, sem que sombra alguma seja formada. Em vez de escurecer, este ambiente se tornará cada vez mais fosforescente com nossas luzes artificiais. Orgulhosos, nos recusamos a fazer parte da natureza que nos produziu; rejeitamos anoitecer com a noite. Mas o acaso tem mais fôlego; a terra que sempre perece e sempre se renova precisa apenas de uma oportunidade para nos reivindicar. O que acontece se você vacilar, Edgard? Se eu apagar a lanterna, o mundo lá fora irromperá aqui dentro, te levando em doença e sexo e apodrecimento e morte.
Aetos fazia a mão com a lanterna pendular enquanto mantinha o feixe de luz sobre seu voluntário. No rosto de Edgard, eu pensei ter visto o cinismo dar lugar à hesitação.
Com nossas consciências e lanternas, criamos um espaço de ansiedade e paranoia para habitar. Sentimos que somos feitos de matéria diferente daquela que forma o mundo que nos pariu. Edgard, a linguagem de seu pensamento é drama e conflito; o conteúdo de sua imaginação é conquista e ruína; a estrutura de seu sonho é fantasia. Essas fabricações ilusórias são como a taverna, onde você vive apertado pelo medo de ser reivindicado pela mortalidade da terra abaixo e de ser invadido pela loucura da terra acima. E o que acontece se seus sonhos tomam conta, Edgard? Se a lanterna brilha demais, o delírio de dentro corrompe o mundo lá fora, te levando em desatino e infernos de sua própria maquinação.
Enquanto Victor Aetos falava, a noite caiu. Neste ponto, a atitude de Edgard tinha se transformado definitivamente – a lanterna, ainda balançando, era um pêndulo hipnótico semeando sugestões de aflição. Edgard quis abandonar seu posto, mas Aetos esticou a lanterna em sua direção e, chamando a atenção para sua sombra projetada nas vidraças, fez o bêbado girar nos calcanhares para observar a própria silhueta.
Imaginem a aparência deste vitral visto pelo lado de fora da taverna, disse o lunático. Lá fora, minha lanterna faz as vidraças brilharem, exceto onde a sombra negra de Edgard está projetada. Minha descoberta foi simples. Eu encontrei que, na negligência da ordem das coisas, a estrutura que divide os mundos pode sofrer o descaso da deterioração, e nossas concepções imaginárias podem delirar em seus próprios sonhos também.
Aetos desligou a lanterna. Tudo ficou escuro, com exceção das vidraças, agora cintilantes pela iluminação pública lá fora. À medida que nossos olhos se adaptaram à escuridão, passamos a enxergar sobre o vitral uma silhueta recortada no exato lugar onde a sombra de Edgard estivera nos minutos anteriores, quando a luz da lanterna a projetava ali. Edgard, estupidificado, moveu os braços para verificar se sua sombra o acompanhava, mas a forma se recusou a participar. Um e outro membro de nosso grupo quis falar sobre esse fato, mas os comentários soaram difusos e atônitos. Eu pensava que alguém – um conspirador associado a Aetos – devia ter rastejado pelo lado de fora e posicionado sua própria sombra no exato ponto onde a lanterna de Aetos tinha atirado a silhueta de Edgard. Agora, o cúmplice deveria estar na rua, usando a iluminação pública para fabricar sua ilusão.
A forma na parede se moveu sozinha, sem que Edgard precisasse se mexer. A silhueta sacou um objeto de sombras semelhante a uma lanterna e o levou ao verde do painel. Vindo daquele ponto fora da taverna, um intenso feixe de luz filtrado pelo vidro esmeralda nos afogou, e tivemos de cobrir nossos olhos habituados à escuridão contra a enchente.
Aetos disse: Só do que precisamos é de uma coincidência improvável, um erro de lógica, uma mutação na essência das coisas – e qualquer um desses milagres cotidianos, tantas vezes visto e tantas vezes ignorado, servirá como ponta solta a ser puxada.
Alguém na taverna, ainda indulgindo na brincadeira, gritou: É um milagre! minha cerveja virou suco de couve! Uma e outra risada despontaram na multidão, tentando nos assegurar da inocência da peça. A maioria, entretanto, estava desconcertada demais para rir, pois, embora inofensivo, havia algo de estranho em ver nossos rostos cobertos com a tonalidade viçosa. Gotas de suor seivoso corriam por rostos que, na luz renovada, pareciam grosseiros e volumosos – caras empapuçadas reluzindo como cadáveres de afogados.
Ofuscada atrás do holofote, a sombra que havia sido de Edgard se moveu, levando a silhueta da lanterna para o vidro azul. Soterrados, objetos amarelos tornaram-se escuros. Em nossas bocas, dentes se tornaram opalescentes. A pele foi ofuscada como fuligem. Se antes parecíamos cadáveres recentes, avançamos ao couro curtido da decomposição adiantada; pele podre esticada sobre ossos. O brincalhão de antes tentou repetir a piada: Vejam minha aliança ficou preta como uma algema… mas, desta vez, ninguém riu.
Súbito, percebemos que ouvíamos a um lunático. Entender o que estávamos fazendo causou uma sensação de equívoco e vergonha que forçou alguns de nós a querer interromper a demonstração. Eu ouvi alguém dizer: Mande este homem sentar e comer como os demais. Noah levantou a voz: Já chega.
Mas Aetos estava fora de controle – sorria olhando para Edgard, que, no centro da taverna, varria o chão com olhos enlouquecidos. Procurava ao redor de seus pés e perguntava para ninguém em específico: Minha sombra, onde está minha sombra?
O lunático caminhou em direção ao beberrão e disse, já bem próximo de seu rosto: O que acontece quando a terra acima deixa de pertencer a você? Com que sonham os sonhos horríveis de um homem perverso?
Eu ainda estava atento às vidraças, olhando a antiga sombra de Edgard. Agora, só havia uma cor faltante nos vitrais.
Aetos caminhou para a porta de entrada da taverna. Estendeu a mão até a maçaneta. Delírio, ilusão e fantasia – com que alucinam suas alucinações?
Edgard, boquiaberto e agitado, tentou articular um pedido de socorro, mas foi interrompido quando a sombra na vidraça avançou a silhueta da lanterna em direção ao vidro vermelho.
Veja o que você tem sonhado para este mundo, e veja o que sua própria concepção faria com você se pudesse, disse Victor Aetos. Edgard se desesperou, uivou um grito agudo e tentou dar as costas e fugir, mas Aetos girou a maçaneta e a passagem que nos dividia do exterior se escancarou e a luz rubra foi mais rápida do que o tropeçar do bêbado. Ao alcançar Edgard, o feixe escarlate projetou sua sombra viva dentro de toda a taverna – e todos nós fomos atingidos e nos enxergamos uns aos outros coloridos pelas tintas vermelhas de seu sonho febril.