Gabriel García Márquez não precisou morrer para alcançar o posto de mito, tornou-se um ainda em vida

Cultural_1885.qxdLarissa Parente
Especial para o Jornal Opção

Muitos anos depois, diante da notícia da passagem de Gabriel García Márquez para a morte, ela haveria de recordar aquela tarde remota em que seu pai a levou para conhecer o realismo mágico de Gabo em “Cem anos de Solidão”. Tocantínia era então uma aldeia de algumas centenas de casas, construídas à margem de um rio de águas escuras e caudalosas, que há muito careciam de velocidade, devido ao imenso lago que se formara na região à época da usina hidrelétrica construída em Lajeado. O mundo já não era tão recente, muitas coisas já não careciam de nome e, para mencioná-las, se apontar com o dedo não fosse suficiente, já apontava pelo caminho uma tal internet (invento comparável às artes dos ciganos que visitavam Macondo todos os anos, pelo mês de março), que bem poderia sê-lo.

A imersão em Macondo se deu de forma febril. Espantada, com 13 anos, mal dormi, comi — até aula matei, para horror de minha mãe — para ver logo a última página daquele livro estranho e maravilhoso, com o desfecho épico da sucessão de acontecimentos extraordinários que eram pano de fundo da história da solitária e de intrincada árvore genealógica estirpe dos Buendía.

Macondo nada mais é do que a própria Aracataca natal do velho colombiano, onde nasceu em 1927 e aprendeu, criado por avós, a contar histórias, a ter um certo ponto de vista bucólico que os nascidos no interior costumam ter, e de onde saiu para ganhar o mundo com sua escrita, principalmente com a literatura, mas também com o jornalismo e ainda com o cinema. Sobre o entremeado da realidade com a fantasia, diz que aprendeu com o jornalismo, e que seus livros não poderiam ter sido escritos se ele não fosse jornalista, “porque todo o material foi retirado da realidade”.

O reconhecimento mundial veio com “Cem Anos de Solidão” — literatura que abarcou a alta cultura e a cultura de massa, que atraiu a pessoa sem maiores pretensões intelectuais e o doutor da Universidade com o mesmo entusiasmo, que se fez leitura obrigatória nas décadas seguintes. Foi traduzido e publicado em dezenas de idiomas. Publicou mais obras de grande repercussão, “Crônica de uma Morte Anunciada” (1981), “O Amor nos Tempos do Cólera” (1985), “Notícia de um Sequestro” (1996) são alguns de seus sucessos. Levou um Prêmio Nobel pelo conjunto de sua obra em 1982. Seu último romance veio em 2004, “Memória de Minhas Putas Tristes”. Corre um boato de que há ainda um livro inédito, sobre o qual recomendou que só fosse publicado após a sua morte.

Desde a primeira leitura, meu fascínio por Gabo — apelido carinhoso pelo qual tratavam o mestre e que só o abuso de uma leitora voraz me autoriza a repetir — floresceu em profusão semelhante à das tatuagens que cobriam cada milímetro do corpo de José Arcadio, o primogênito dos Buendía.

Faz tempo que o único presente que dou àqueles a quem estimo, que porventura ainda não o tenham lido, é um exemplar de “Cem Anos de Solidão”. Desde que estive dentro do tempo mítico e circular da Aracataca redesenhada de García Márquez, nunca mais consegui sair de lá. Nos trabalhos de conclusão de curso que já tive o (des)prazer de elaborar, foi só de Gabo e para Gabo que escrevi. Meu pouco entendimento acadêmico-literário vive muito de Gabriel García Márquez.

É a maneira desassombrada de contar o assombroso que se passa em situações aparentemente cotidianas que me prende a Gabo. Junte-se a isso as incríveis construções verbais, repletas de retratos poéticos, e tem-se formado o binômio de um amor rasgado e contrariado de alguém que não ama com facilidade e sem desfeitas.

Não sou cega em relação às contradições e aos pecados sobre os quais tanto se batiam (e se batem) seus críticos e opositores. O fascínio pelo poder, a simpatia e a defesa do comunismo e mesmo dos regimes totalitários são tão lendários quanto o “folclorismo e exotismo realmente desnecessários” (segundo palavras de Guillermo Cabrera Infante, um dentre os seus muitos desafetos políticos) atribuídos ao Velho.

Prova dessa afinidade com o poder são as amizades controversas que manteve com grandes nomes da política mundial, tais como o norte-americano Bill Clinton, e os outros ex-presidentes Felipe González (Espanha), François Mitterrand (França), Omar Torrijos (Panamá) e a mais famosa e mais criticada de todas: a proximidade que manteve com o líder cubano Fidel Castro.

Relações polêmicas entre intelectuais e poderosos existem desde sempre. Não estou pedindo que perdoem Gabo por sua conduta nesse sentido. Não é que me desinteresse por política. Embora eu não tenha promovido 32 revoluções armadas, ainda assim, sinto que perdi todas, tamanhos são o enfado e a descrença que compartilho com o velho e combatido Coronel Aureliano Buendía pelo tema. E não, não me orgulho por tal apatia política que ora me acompanha.

Tema recorrente na obra de Gabriel García Márquez, a morte é o desfecho para cada personagem seu. É comum que anuncie a morte do personagem antes mesmo de narrar a vida deste. García Márquez não precisou morrer para alcançar o posto de mito, tornou-se um ainda em vida. Falou, certa vez, sobre a “injustiça da morte”. Disse que seu “interesse literário pela morte” se dava em razão desta ser um “acontecimento terrivelmente injusto”, no qual “se põe um ho­mem no mundo para construir-se e construir, e num determinado mo­mento, sem lhe perguntar nada, se tira tudo”, mas, como escritor, dis­se que, o que mais lhe doía na mor­te era o fato dele estar certo de que “se trata da única experiência” sobre a qual nunca poderia escrever.

Com uma pretensão que só um amor contrariado pelo pesar da morte deste Velho tão querido, ponho-me eu a escrever sobre a nostalgia que sinto agora. Não era de hoje que os jornalistas anunciavam os sinais da demência senil que os familiares e amigos próximos tentavam abafar, que a saúde de um homem de 87 anos, recentemente completados, se mostrava frágil. Viu-se então a crônica de uma morte anunciada quando da hospitalização em decorrência de um quadro infeccioso. Desde então, uma tristeza feita de chuva e borboletas amarelas tomou conta de mim.

Sabedor do “agouro” que lhe faziam, ele ainda falou, recolhendo os últimos fragmentos de um bom humor que era célebre, sobre os jornalistas que estavam de plantão, cobrindo sua “estadia”, à porta do hospital, “estão loucos, o que fazem lá fora? Que vão trabalhar, fazer algo útil”. Dono de tiradas que maravilhavam fãs, biógrafos e jornalistas do mundo inteiro, Gabriel García Márquez tinha a capacidade de fazer com que suas frases ficassem, como dizia por vezes, “encalhadas no coração dos leitores”.

Foi exatamente isso que senti, mais do que ouvi, pelo rádio (quem ainda ouve rádio em casa?), ligado em uma casa vizinha, em Tocantínia, no dia 17 de abril — dia em que completa anos o meu próprio e querido Mauricio Babilonia (teria ocorrido, justo nesta data, tão feliz, para apaziguar minha dor?) — a notícia que nunca aceitei ouvir. E é assim que vou escutar reverberar numa voz de Coronel frágil, tímido, roto e derrotado, “guerreiro de nome nostálgico”, misturada a um “chorinho sem graça dos velhos”, por meio de um manipulador de telégrafo, que sempre estará chovendo em Macondo.

Larissa Parente é jornalista.