O jogo de descobrir quem são os autores
31 maio 2014 às 13h28
COMPARTILHAR
Este é o espírito da obra, seu veio nutriente preenchido por histórias pessoais e por escritores de várias tendências
Regina Igel
Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura para Estreantes (2012), o mineiro Jacques Fux não é apenas escritor. É formado em Matemática, tem mestrado em Computação e doutorado em Literatura Comparada, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Também tem um doutorado pela Universidade de Lille, na França, em Língua, Literatura e Cultura Francesas. Além da premiação paulista, seus merecimentos abrangem o Prêmio Capes 2011 por sua tese em Letras (2010) e uma Bolsa de Pesquisa em Harvard (EUA) para o período 2012/13.
No título deste livro, Anti vem em letras inclinadas, que diferem do restante da palavra: Antiterapias. “Anti” significa “o contrário de”, daí este livro, uma vez lido e entendido, poder ser qualificado como: antiformal, antitradicional, anticorriqueiro, anticonvencional. Não é um romance, nem livro de contos, tampouco coletânea de poesia ou peça teatral. A qual gênero pertenceria? Ao sui generis…
Original, de estrutura inconformada em relação às disposições literárias já conhecidas (ou antiformatação), o livro é regido por um sistema de divisões temáticas que, em outros, seriam vistas como “capítulos”. Aqui, têm de ter outra nomenclatura, que eu não saberia inaugurar. São textos completos em seus tópicos, sem ligação com os demais. São as várias e variadas faces que um ser humano, urbano, cultivado, viajado, construído pela classe média de qualquer país, pode ter. Então, estas são as faces ou títulos de alguns, que Jacques Fux esclarece com adjuntos que se iniciam com um “Aquele que…”: Astrofísico ou Aquele que sonha as estrelas; Arqueólogo ou Aquele que inventa o passado; Delinquente ou Aquele que subverte uma época; Antropólogo ou Aquele que perscruta o ser; Vidente ou Aquele que inventa o porvir; Falsário ou Aquele que perjura a memória; Ficcionista ou Aquele que finge seu prazer; Amador ou Aquele que se dedica ingenuamente ao deleite; Poeta ou Aquele que inspira a imaginação… mais o Posfácio do autor ou Aquele que plagia a outra dor. Um Glossário, na parte final do livro, ajuda a identificar as palavras estrangeiras (na maior parte em ídish e hebraico), mitos e movimentos literários que emergem ao longo do desenvolvimento dos temas. Ainda que sem ligação óbvia entre eles, os textos remetem a uma pessoa — o narrador — e, também, ao título do livro, pois suas letras inclinadas (anti) ressoam nas letras inclinadas das sucintas explicações que se seguem aos nomes dos 21 textos que o compõem. Complicado? Espere, então, para ler esta obra…
Começa por dez prefácios, cada um assinado por alguém de renome nunca formalmente convidado para escrever a apresentação do livro (muitos deles já falecidos): Marcel Proust, Mario Vargas Llosa, Jorge Luis Borges (“escreveu” dois), Ferreira Gullar, Sigmund Freud, Isaac Bashevis Singer, Primo Levi, Rousseau e Liev Tolstói. Mas, aparentemente acima de todos estes medalhões, sobressai-se o judeu francês Georges Perec (sobrenome original Peretz), filósofo contemporâneo e autor de muitos livros também bastante “originais”. Pouco conhecido no Brasil — pelo menos não se sabia quase nada da organização a que ele pertencia —, é praticamente o guru do autor. A organização de Perec, Oulipo (Ulipô, na pronúncia francesa), sobreviveu ao próprio Perec, falecido em 1982, aos 46 anos. (Na década de 1970, procurei saber mais sobre o Oulipo, porque pesquisava a obra de Osman Lins, construída com base num palíndromo, portanto, bastante calculada na distribuição de seus capítulos, como em Avalovara. Pouco consegui, pois então não existia o Google… e eu não tinha orçamento bastante para ir a Paris fazer pesquisa.) A sociedade enfatiza a total liberdade da escrita, mas dentro de um conceito de liberdade medida, calculada — como no caso de um dos romances de Perec, em que aparecem palavras exclusivamente sem a letra “e” —, penosamente calculada. Daí a sociedade atrair literatos como Jacques Fux, escritor e matemático. Escrever é um exercício livre, mas orientado por um cálculo rígido, uma pesquisa abrangente, um fazer e desfazer, uma criatividade que abarca a tudo e a todos que já criaram em literatura, matemática, antropologia, música, física…
Plágio?
Este é o espírito da obra, seu veio nutriente preenchido por histórias pessoais e por escritores de várias tendências. Os textos contam sua história: infância, adolescência — é um menino judeu, criado e educado entre judeus, formado em escolas judaicas no Brasil; jovem sionista, crítico, autocrítico e grande contador de histórias; viagens, pesquisas, competições esportivas e intelectuais, mudanças de locais de morada, estudos, desencantos amorosos, tudo observado a partir de uma plataforma cômoda, que é a ficção. Se ele é um escritor que se escreve a si mesmo ou não, depende dos leitores, em quê eles acreditem ou não. As histórias, como vinculadas à vida de um homem, não diferem de narrativas que se autodescrevem, seja baseando-se na sua biografia ou a inventando. O que faz estas diferentes é o estilo do narrador. Ele percorre seus relicários de lembranças em linhas retas, até um certo ponto. Este é quando se rompe sua adesão a uma descrição realista e entra por divagações literárias. Aí nos pegamos lendo outros autores, como se vê na página 16: “Einstein, com toda sua dificuldade infantil, teve sua ideia genial aos 16 anos. Ganhou o prêmio com 42. Eu devia, portanto, estar preparado para o meu insight, minha epifania genial, meu encontro com o cego mascando chicletes aos 11 anos” (Os grifos nesta e nas demais citações textuais são meus; em “Astrofísico ou Aquele que sonha as estrelas”). Onde eu li “o cego mascando chicletes”? Em Clarice Lispector, claro. No mesmo texto, aparece, sem aspas nem autoria declarada, um trechinho de Jorge Luis Borges: “As professoras, rainhas do saber da época, desconheciam o termo. Sabiam muito bem declarar infâmias. Eram personagens importantes da história universal da infâmia” (p. 17). Mais além no mesmo texto, aparece obra de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa): “O amor é a exposição ao que você próprio julga ridículo. Como todas as cartas de amor”(p. 19). O sistema de incorporação de textos alheios ao seu próprio é visto em todo o decorrer do livro. Mais adiante, é Carlos Drummond de Andrade que aparece por dois versos: “A dor é inevitável./ O sofrimento é opcional” (p. 117, em “Charlatão ou Aquele que é fiel à sua própria falácia”). No mesmo texto, é citado, às avessas. O título de uma das obras de George Perec: “A vida não espera. Ela passa. Não há modo de usar na vida” (em alusão ao “La Vie Mode D’emploi”).
A leitura da “ficção”, como categorizada pela editora, passa a ser um jogo interessante de procura de nosso próprio conhecimento dos autores incluídos, mas não citados, na obra de Jacques Fux. (Ele identifica apenas aqueles cujos textos são epígrafes para cada um dos seus textos, como Walter Benjamin, Ferreira Gullar, Jean Paul Sartre, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski e George Perec, citado mais de uma vez). Aliás, guardadas as devidas proporções, Borges também foi criticado, em certa fase de sua carreira literária, pela inclusão de personagens e textos alheios, por aqueles que não entendiam sua mensagem: o mundo é um emaranhado de tudo.
O artifício de mesclar a sua escrita com textos publicados por outros, já conhecidos e consagrados, pode levar críticos a pensar em “plágio”. A crítica mais conservadora exigiria que Fux indicasse suas fontes, que citasse os autores e as obras de onde foram extraídas tais e tais sentenças. Mas… estamos no limiar de uma nova era. Ainda nem temos um nome para ela — seria pós-pós-modernismo? Seria antiliteratura, um caminho diverso da literatura com a qual estamos mais familiarizados? Como podemos entender este livro de Jacques Fux? Talvez como o iniciador de uma nova modalidade na literatura brasileira? E por que não? Ganham, assim, tanto a literatura brasileira de temática geral quanto a literatura brasileira de temática judaica.
Recomendo este livro não só pela história de um judeu no Brasil e suas andanças pelo mundo, mas também porque é um desafio dos mais interessantes, justamente pela inclusão de textos de autores que se amoldam ao texto de Fux como se nele tivessem nascido… e cabe a nós descobri-los. A intertextualidade no seu limite de liberação.
Regina Igel, colunista do Boletim ASA, é professora titular e coordenadora do Programa de Português da University of Maryland, College Park (EUA). Texto originalmente publicado no Boletim da Associação Scholem Aleichem e republicado no Jornal Opção a pedido do escritor Jacques Fux.