A arca de Noé das palavras

14 junho 2014 às 10h22

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Em “Dicionário do Nordeste”, Fred Navarro lança sua rede em várias direções, como que batendo uma foto polaroide do Nordeste, em sua geografia, história, culinária, vestimenta, literatura, gíria, fauna e flora
Braulio Tavares
Nossa relação com a palavra inclui dois impulsos que parecem opostos mas na verdade se complementam. Um é o impulso de inventar palavras novas. O outro é o impulso de fazer a lista das que já existem. Um está inventando o futuro, por assim dizer, e o outro tentando evitar que o presente desapareça.
Quem tem o hábito de inventar palavras conhece por experiência própria a altíssima mortalidade infantil dessas criaturas. A maioria esmagadora dura algumas horas ou dias, e logo em seguida as pessoas que as inventaram e usaram já as esqueceram.
“Se a gente arranjar um goleiro bom fica com um time inderrotável.” “Arte moderna é isso, o cara compra meia dúzia de canos de ferro, arma uma tripizumba qualquer e vende a um besta por duzentos mil.” “Ô meu Deus, a buchichinha de mamãe levou uma queda, chore não, minha pululuca, mamãe cuida…” “Rapaz, hoje aconteceu comigo a cena mais philipkdickiana que você pode imaginar.” “O show dela é uma aula de desafinologia do começo ao fim.”
Quem inventa nem inventa de propósito, faz pela necessidade de dizer algo, e provavelmente nem percebe que está usando uma “palavra que não existe”. Pariu a palavra e a soltou no mundo. Ninguém se deteve para administrar a carreira dela, divulgá-la, elogiá-la, marquetá-la… Francamente, até as crianças brasileiras são mais bem cuidadas do que as palavras. Estas, coitadas, não têm quem puna por elas.
É por isso que todas as tentativas de tirá-las da poeira das ruas e colocá-las num lugar de destaque são elogiáveis. Todo dicionarista é, em grande medida, um colecionador. Ele quer salvar, preservar, depois organizar, depois estabelecer conexões e hierarquias. Está no sangue. Palavra salva no formol dos dicionários é palavra viva, palavra meramente adormecida. Uma palavra da língua portuguesa pode passar dois séculos sem ser pronunciada ou escrita por ninguém. Mas se estiver guardada em dicionário ou apensa a um texto literário clássico, um texto que não desmorona com o tempo, essa palavra poderá um dia ser de novo observada, estudada, reconhecida, discutida e recolocada em ação nas ruas, que já serão outras ruas de outro mundo de um futuro que ninguém pode prever.
Por mais que seja estranha uma palavra isolada, ela pode, como os mosquitos pré-históricos conservados no âmbar, manter seu DNA vivo. O texto onde está contida evita que ela se destrua. E uma palavra que nove entre dez pessoas desconhece pode bater asas e alçar voo. Basta pensar em palavras como saudade, noigandres, nonada, maracutaia… Quem sabe o mecanismo que improvavelmente as manteve vivas, até poderem de novo florescer como recém-nascidas.
Um dos choques culturais que o nordestino sofre é quando vai pela primeira vez passar algum tempo numa cidade do Sul (essa direção mítica onde ele situa o Rio de Janeiro e São Paulo) e percebe que seu dicionário e o daquelas pessoas não são exatamente os mesmos. Coincidem em muitas coisas, mas em outras, aleatoriamente, não. O nordestino exclama “Meu Deus do Céu!” e exclama “Oxente”, mas só esta última provoca estranheza. Ele diz “gargalhar” e diz “mangar”; por que diabos só a segunda provoca gargalhadas e mangação? A primeira coisa que muitos nordestinos fazem, a partir desse momento revelador, é começar a compilar dois dicionários mentais. O primeiro é o da linguagem que eu posso, e preciso, usar com eles. O segundo é o da linguagem que eles não conhecem, e que consequentemente é somente minha.
Não é somente dele, ele sabe muito bem, porque palavra é como dinheiro, só tem valor, mesmo, naquele instante em que troca de mãos. Ou vai da boca ao ouvido. Ou da página ao olho. Nas redes orais de comunicação, palavras novas surgem todo dia, e são testadas todo dia, não no ar condicionado dos dicionários, mas na dengue da rua. Cada palavra nova é submetida milhares de vezes ao teste do: Vão entender ou não vão? E muitas sobrevivem. Vêm parar no livro.
O jeito de falar nordestino envolve muito mais coisas além da nordestinidade. Envolve tradição linguística. Muita coisa do que já vi ser chamado de “fala de matuto” são modos de dizer arcaicos, mais fáceis de encontrar na literatura portuguesa de 300 anos atrás do que na literatura ou na imprensa de hoje. São palavras que um certo senso estético (um “achar bonito quem fala assim”) evitou que morressem.
Neste “Dicionário do Nordeste”, Fred Navarro expande o território que havia demarcado com seu utilíssimo “Assim Falava Lampião” (1998). Se aquele livro era um apanhado do linguajar regional, já unindo palavras e expressões mais longas, este aqui lança sua rede em várias direções, como que batendo uma foto polaroide do Nordeste, em sua geografia, história, culinária, vestimenta, literatura, gíria, fauna, flora…
Como cobertura específica da cultura e das palavras que a sustentam, o Dicionário tem as duas virtudes de uma grande obra: a amplitude e o detalhismo. A atenção ao universo dos possíveis, e o detalhamento milimétrico em cada verbete e em cada referência precisa. Um dicionário tem o karma auto-imposto de não perder de vista o universo total da língua, e de não poder ter uma letrinhazinha fora do lugar.
O projeto acaba tendo um certo gigantismo. Fiquei orgulhoso ao me reencontrar aqui, em verbetes como “Campina Grande” ou “trezeano”; mas fico imaginando se outras cidades e torcidas, não contempladas, não irão erguer-se e demandar reconhecimento? É um território perigoso o que o lexicógrafo começa a pisar, porque ou coloca todo mundo ou faz a sua amostragem de maneira a não desconfortar os excluídos. A disposição de incluir pratos típicos me parece correta, mas a referência a cidades específicas, plantas, parece abrir uma porteira impossível de fechar depois.
Dicionários são feitos para ser consultados, mas idealmente deveriam ser lidos, assim como um mapa deveria poder ser apreciado, também, como mero quadro, pintura pura. Há dicionários que quando me caíram nas mãos eu fiquei lendo dez ou 20 páginas de uma assentada, fascinado por encontrar tudo-aquilo-junto-ao-mesmo-tempo-agora. O “Dicionário Contrastivo Luso-Brasileiro”, de Mauro Villar, o “Idiom Savant”, de Jerry Dunn (com gírias de ambientes específicos: esporte, negócios, entretenimento, crime), o “Diccionario da Antiga Linguagem Portuguesa”, de H. Brunswick, o “Dicionarinho do Palavrão & Correlatos”, de Glauco Mattoso, e por aí vai
Estou descobrindo na leitura deste livro coisas que nunca imaginei que existissem. Expressões saborosas, por exemplo, “casa de camelo”, “macha vilícia”, “sol coado”, “arenga de mulher”, “fazer o decote”, “xis com”, “estar de viva rosário”, “só o oco e os caburé cantando dentro”… Sem falar, é claro, no prazer de reencontrar palavras “minhas” mas que não posso sair dizendo por aí porque fora do Nordeste ninguém sabe o que significam: “puxavante”, “lascança”, “deforete”, “brebote”, “cartola” (na acepção gastronômica), “roncha”, “maluvido”, “pei buf”…
Claro que nem tudo bate de primeira. Impossível não polemizar com um livro destas proporções. Eu prefiro, por exemplo, a grafia “silibrina” a “celebrina” (v. verbete raio da celebrina); mas como o autor registra ambas, está perdoado. “Granvanha”, registrado como “comida ruim, de péssima qualidade” na Paraíba, eu já vi dita por meu pai como “grangranha”. É uma variante local? É um mau ouvido? É uma invenção dele? Não importa: todos esses casos acontecem, vão se misturando, e nenhuma palavra nova precisa de maioria absoluta para ser aceita no idioma. Ainda bem.
A vida verbal se dá fora do dicionário. O povo é o inventa-línguas, e nessa palavra “povo” todos estão incluídos, tanto os lavradores quanto os intelectuais, tanto as donas de casa quanto os peagadês, tanto os funkeiros de morro quanto as socialites de cobertura. Se nem todo mundo inventa palavras, todos ajudam a pôr essas palavras novas em circulação. Um texto, como já foi dito, pode manter uma palavra viva e adormecida durante trezentos anos; mas a rua pode mantê-la viva por esse mesmo espaço de tempo, viva e bulindo. A palavra que encontrar abrigo tanto nos livros quanto nas ruas está destinada a uma longa existência.
Braulio Tavares é escritor.
Nota: o texto publicado nesta edição faz parte do livro “Dicionário do Nordeste”.