James Joyce narra as impressões da infância, da adolescência e da juventude de um garoto que deseja profundamente ser um artista. O protagonista do livro é o jovem Stephen Dedalus, que perderá a fé no Deus criador, terrível e onipotente e ganhará na liberdade o direito de perder-se por sua conta e risco

Carlos Russo Jr.
Especial para o Jornal Opção

James Joyce, romancista, contista e poeta irlandês, é um dos autores mais importantes do século 20 | Foto: Wiképedia Commons
James Joyce, romancista, contista e poeta irlandês, é um dos autores mais importantes do século 20 | Foto: Wiképedia Commons

O escritor James Joyce (1882-1941) empreende o resgate da consciência de sua “raça irlandesa” a partir de sua condição de “exilado”. Exilado da pátria que ama e odeia simultaneamente, mas que traz permanentemente consigo, em seu refúgio em Trieste, na Itália. “Um retrato do Artista Quando Jovem” é uma obra semiautobiográfica, o “retrato” no qual o autor escolheu fixar as impressões da infância, da adolescência e da juventude.

Stephen Dedalus, o narrador, é o alter-ego de Joyce, que carrega no coração todos os heróis pátrios destroçados pela violência política e pelo moralismo opressor, como o líder separatista irlandês Charles Parnell. Carrega também o ódio ao opressor inglês e aos preconceitos de uma aristocracia protestante formalizada, minoritária e colaboracionista. Um ódio que provoca o escárnio e a ironia, voltados àqueles que cultuam a injustiça social e promovem o massacre dos pobres, por meio da violência, da prepotência e da ignorância, com que os dominados são mantidos sob rédeas. Finalmente, Stephen odeia também a hipocrisia do clero católico, e esta é denunciada como conivente aos dominadores.

Se por um lado Joyce abriga no ín­ti­mo a sua “sua raça”, ele, entretanto, não pode ser tido como um escritor re­gionalista, dado que unificam os seus “dublinenses” aos substratos psi­cológicos da experiência humana em geral, com seus medos, desvarios e suas incapacidades. Ele é um escritor de seu momento histórico, sua o­bra expressa o homem em sua tentativa de descrever o mundo, de fugir da sensação de inutilidade a que o capitalismo e a modernidade o sujeitam, ele que se auto define como u­ma “espécie de socialista”. Antes de tu­do Joyce é um revoltado, cuja re­vol­ta surge do medo, da perplexidade e se expressa por meio da causticidade de uma ironia ímpar. A vida e to­da a existência humana para ele nem mesmo chegam a ser sem sentido, pois ambos caminham inexoravelmente para um desastre, rumo ao abismo.

Desde a infância Stephen Dedalus incorpora sentimentos de culpa, condicionados pela ortodoxia religiosa da fé católica, transmitida inicialmente pelos pais e pelos padres. Quando completa 10 anos de idade, sua educação será colocada nas mãos dos jesuítas em regime de internato. Os padres serão, na imagem que é recordada, os disseminadores do terror. A religião será o instrumental que o apequenará, buscando transformá-lo em dócil cordeiro. E quando a fé e os dogmas já não bastarem, não faltarão os castigos físicos, como as palmatórias e, mesmo, as ameaças de expulsão do seminário.

Mas ele se revoltará e o “artista quando jovem” refletirá, na revolta, o anseio por liberdade. A partir de então Stephen realizará uma verdadeira viagem íntima por descobertas, na incessante busca de sua própria consciência, independente dos preconceitos e dogmas religiosos. Nessa viagem Stephen, em sua epifania, perderá a fé católica e no Deus criador, terrível e onipotente. Ganhará na liberdade o direito de perder-se por sua conta e risco.

A obra de Joyce se fundamenta em fatores estéticos, místicos e míticos, nos quais Joyce mescla simbolismo e realismo, no cultivo do novo ou do renovado. “Um Retrato de um Artista Quando Jovem”, assim como “Os Dublinenses”, constituem essencialmente a fase lírica do autor, que será seguida pelo épico de “Ulysses” e pelo trágico de “Finnegans Wake”.

Este ensaio cobrirá exclusivamente uma parcela de “Um Retrato de um Artista Quando Jovem”, precisamente aquela em que Stephen adolescente participará de seu primeiro “retiro espiritual” no internato jesuíta, onde os padres “tratarão” dos jovens educandos, transmitindo-lhes as quatro chaves essenciais da fé católica.

Um retiro religioso

“Qual é o significado da palavra retiro espiritual? Um afastamento momentâneo dos cuidados da nossa vida, dos cuidados desse prosaico mundo, de modo a examinarmos a nossa consciência, a refletirmos nos mistérios de nossa santa religião e compreendermos melhor porque estamos nesse mundo. Fomos enviados ao mundo para cumprirmos a vontade de Deus e salvarmos nossas almas imortais. Existem as quatro verdades derradeiras: morte, julgamento, inferno e paraíso.” Assim falou o padre superior com todos os adolescentes reunidos na capela do seminário.

No primeiro dia esse pregador trouxe a morte e o julgamento para dentro da alma de Stephen, despertando-a lentamente de seu desespero. A débil claridade do medo se tornou em terror do espírito. Ele sofreu na sua agonia. Sentiu o frio da morte lhe tocar as extremidades e subir até o seu coração; a faixa da morte velando-lhe os olhos, os claros centros do cérebro extinguindo-se um a um como lâmpadas, o último suor fluindo-lhe da pele e o coração batendo cada vez mais debilmente, falhando, tudo o mais já vencido, a respiração, pobre respiração, o pobre sopro humano sem auxílio, suspirando e soluçando, estertorando. Nenhum auxílio, nenhum socorro! Aquele seu corpo, que tudo dera por ele, estava morrendo. Para a tumba com ele. Fechemo-lo, este cadáver dentro de uma caixa de madeira e carreguemo-lo para fora da casa. Empurremo-lo para longe das vistas dos homens, dentro de um buraco bem fundo, no chão, para ser pasto dos seus próprios vermes, para ser devorado por ratos gordos e pelas baratas e formigas sempre tão ativas e apressadas.

Sentia já em sua veste mortuária e enquanto os amigos ainda estavam lá a velá-lo, em lágrimas, a alma do pecador já estava sendo julgada. Justamente naquele derradeiro momento de consciência, toda a vida terrena passa como um filme pelas vistas da alma, sem tempo de reflexão, apenas de julgamento. Deus, tanto tempo misericordioso, agora seria justo. Ele que tanta paciência tivera argumentando e concedendo tempo para que a alma pecadora se arrependesse, poupando-a. Mas esse tempo findara. Tempo houve para gozar e pecar; para zombar de Deus e dos preceitos de sua Igreja, para desafiar os mandamentos e preceitos de sua majestade, para tapar os olhos dos homens seus companheiros, cometendo pecado após pecado, e escondendo sua corrupção aos próprios olhos dos homens.

Agora chegara a vez de Deus. E ele não poderia ser enganado e nem ter os olhos fechados. Todos os pecados sairiam de seus esconderijos, até mesmo os mais degradantes mesmo para a nossa pobre natureza corrupta. O que adiantava ter sido um grande na terra? Todos eram iguais diante da grande mesa do julgador. Ele recompensaria os justos e puniria os culpados. E nada mais que uma fração infinitesimal de segundos bastaria para o julgamento da alma de um homem. Num instante após a morte a alma era pesada na balança, ao final do qual ou ela passaria para a morada da felicidade ou para a prisão do purgatório ou, então, arremessada, rugindo no inferno.

Não bastava o julgamento imediato “post-mortem”. O grande julgamento necessitaria de publicidade e deveria ser exemplar! A justiça divina tinha que se vingar aos olhos dos homens, de todos os homens: após o particular viria o julgamento geral. Para tanto haveria um Dia D, o dia do juízo final que chegaria ao final dos tempos!

As estrelas dos céus caiam como meteoros candentes. O sol, a grande luminária do universo tinha-se tornado um saco murcho de cabelos amarelos. A lua ganhara a cor do sangue. O firmamento era um papel enrolado. O arcanjo Miguel, príncipe da corte celestial, gendarme pretoriano imbatível e feroz, aparecia glorioso e terrível contra o firmamento. Com um pé no mar e outro na terra fazia ecoar sua brônzea trombeta, despertando os mortos e extinguindo os tempos, os que foram e os que são, mas que jamais serão. Foram três toques, não mais; ao último as almas de toda a humanidade se apinham no vale de Josafat, ricos e pobres, cultos e ignorantes, bons e culpados. São as almas de todos os seres humanos que um dia existiram, todos os filhos e filhas de Adão, que se reúnem para esse dia supremo.

E eis que chega o grande mo­men­to; surge aquele que um dia apa­receu aos homens como o Bom Pastor, o manso cordeiro de Deus, o humilde Jesus de Nazaré. Mas Ele se transfigurou! Já nada possui de humilde, de humano. Os pobres ho­mens logram vê-lo no alto, acima das nuvens, em todo seu poder e ma­jestade, rodeado por coros de an­jos e arcanjos, tronos e dominações, potestades, querubins e serafins, como um Deus onipotente, eterno.

Quando ele fala e sua voz é ouvida até nos mais longínquos recantos da terra, até mesmo nos abismos sem fundo das catacumbas! Juiz supremo, sua sentença não admite nenhuma apelação ou postergação. Ela chama os justos para sua direita, ordenando-lhes que entrem para o reino beatífico da felicidade eterna, para eles preparado. Aos injustos ele enxotará, com ira, de sua presença: “Afastai-vos de mim, oh malditos, ide para o fogo eterno preparado pelo demônio e seus anjos”.

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James Joyce em 1916, por ocasião do lançamento de seu primeiro romance, “Um Retrato do Artista Quando Jovem” | Foto: BBC

A agonia dos pecadores a ninguém arrancará uma só lágrima. O amigo será suprimido dos que o acompanham, os filhos serão tirados de seus pais, os maridos de suas esposas. Os pobres pecadores estendem seus braços para os que lhes eram caros, para os que os aconselhava a seguir a trilha correta quando em vida. Mas já é tarde, muito tarde! Os justos voltam para o lado seus rostos, a visão das almas danadas, que transparece em toda sua horrível feiura, causa-lhes repugnância.

E esse dia há de vir, chegará: o dia da morte e do julgamento! Se a morte é certa, o tempo e a maneira em que se dará, são incertos. Che­garão no momento menos esperado. E após a morte, o julgamento. Morte e julgamento trazidos ao mundo devido o pecado de nossos primeiros pais. Negros são os pórticos que se fecham à nossa existência terrena; a porta através das quais cada alma deve passar sozinha, sem ajuda, apenas com suas ações e intensões. A morte, causa de terror para os pecadores é o abençoado momento para aqueles que andam no caminho reto, para o cristão piedoso e crente, abrigado pela Santa Madre Igreja.

“O Inferno alargou a sua garganta e abriu a sua boca”, do livro de Isaías, bridou-lhes o pregador. Adão e Eva foram criados por Deus para que preenchessem os lugares vagos deixados nos céus por Lúcifer e seus seguidores. Lúcifer, bem o sabemos, era um filho da luz, da manhã, um anjo radiante , mas que caiu, caiu por sua revolta e foi arremessado com todos os seus acólitos nos infernos. Seu pecado, os teólogos dizem, foi o orgulho, aquele pensamento do que não deseja servir. O instante em que pensou o perdeu! Ofendeu a potestade divina pelo pensar dum instante. E Deus o condenou para sempre.

Mas Adão e Eva também caíram! Postos pelo divino amor no Éden, na planície de Damasco, só lhes era negado comer do fruto da árvore proibida. O demônio, aquele que fora filho da luz, tinha-lhes inveja. Resolveu tentá-los, pois não poderia conceber que o homem, feito de barro, deveria herdar aquilo que de direito ele possuíra, antes da queda. E a mulher, o vaso mais frágil, foi quem ouviu da serpente a blasfêmia: “Se eles comessem do fruto proibido se tornariam deuses, maiores mesmo que o próprio Deus”. Ela e Adão comeram da árvore do saber e caíram, como caíram! Ouviu-se a voz irada de Deus e Miguel, o arcanjo pretoriano, espada flamejante em riste, expulsou-os do Éden, atirando-os no mundo de maldades, de corrupção, de dureza, para ganharem o pão com o suor de seus rostos.

Mas quão grande é a misericórdia divina! Tomou-se de piedade por nossos pobres pais e prometeu que na plenitude do tempo deveria enviar Alguém que os redimiria, fazendo-os novamente filhos de Deus e herdeiros dos céus. E ele veio. Nascido de uma virgem pura nasceu numa pobre estrebaria e viveu como um humilde carpinteiro até que sua hora chegasse. E então, repleto de amor pelos homens desceu até nós trazendo o seu evangelho.

Os homens ouviram-no? Não, escutaram-no, mas não o ouviram. Ele foi agarrado e conduzido ao suplício ao lado de dois ladrões. Crucificado teve seu corpo perfurado por lança e, mesmo nesse instante de suprema dor, o redentor teve pena da humanidade: do topo do calvário fundou a Santa Igreja Católica, contra a qual prometeu que as portas do inferno não prevaleceriam. Mas que, após tudo o que havia feito pelos homens se eles ainda persistissem em sua maldade, restaria para os mesmos uma eternidade de sofrimento: o inferno!

A alma de Stephen mergulhou dentro de um crepúsculo ameaçador, contemplando tudo com os olhos sombrios, sentindo falta de socorro, perturbado e humano, sendo visto em atos e pensamentos por um deus de olhos bovino que o encarava dia e noite. Sentia-se regredir, sufocava-o o sentimento de terror que experimentara na infância.

O inferno, a tortura física

Tentemos compreender a natureza da morada dos danados, que a justiça de Deus ofendido criou para a eterna punição dos pecadores. O inferno é uma estreita, negra, sórdida prisão fétida, cheia de fogo e fumaça. É uma prisão feita por Deus para aqueles que se recusaram a seguir as suas leis. Nas prisões terrenas os cativos têm, no mínimo, alguma liberdade de movimento, seja somente entre as quatro paredes de sua cela, seja no tenebroso pátio da prisão. No inferno não é assim. Lá, devido à superpopulação, os prisioneiros estão atirados uns aos outros, extremamente apertados e desamparados, incapacitados até de retirar um verme de seu próprio olho.

Jazem nas trevas exteriores, o fogo do inferno é de um tipo especial, que não emite luz, arde eternamente em trevas, em meio a uma tempestade que nunca termina de negras chamas e de fumaça de enxofre a arder.

O horror dessa estreita e negra pri­são é aumentado por seu tremendo cheiro ativo. Todas as imundices do mundo correrão para um vasto e fu­megante esgoto quando a terrível conflagração do último dia houver purgado a terra. O enxofre que arde, também enche o inferno com seu intolerável fedor. E os corpos aos milhões e milhões, na putrefação dos danados, a arder e emitir densos e horrendos fumos de nauseante decomposição criam uma tão grande pestilência que, um só desses corpos seria capaz de infectar todo o mundo.

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Mas tal horrível fedentina, ainda não é o maior tormento físico aos quais os danados estão sujeitos. Como sabemos, o tormento pelo fogo é o maior suplício ao qual os tiranos têm sujeitado suas criaturas. Colocai o dedo sobre o fogo e sentireis a dor; mas, não se esqueçam de que esta é a dor de um fo­go benéfico, criado por Deus para o bem do homem. O fogo do inferno, aquele que arde nas trevas é de outra qualidade, pois Deus o fez para torturar e punir o pecador sem arrependimento. Ele não se extingue como o fogo benéfico. O fogo do inferno nunca se extingue, arde sempre e ininterruptamente com indizível fúria. Ele preserva aquilo que ele queima para que a tortura seja eternal.

E mais. O fogo terrível não aflige os danados apenas por fora, pois cada alma perdida se transforma em um inferno dentro si mesma, um fogo que se insufla em sua própria essência. Enfim, o fogo que procede da ira divina tortura tanto o corpo quanto a alma, soprado numa perene e crescente fúria pela divindade.
O tormento dessa prisão infernal ainda é acrescido pela companhia dos próprios condenados. No inferno, todos os sentimentos têm sinal trocado. Assim, não há pensamentos de família, amizade, pátria, relações. O danado se esgoela e grita uns com os outros, sua tortura e ódio se intensificam pela própria presença de outros torturados. As bocas dos condenados estão cheias de blasfêmias contra Deus e ódio contra os seus companheiros no pecado. Agora já não há tempo para redenção, para o arrependimento.

Por último considerai o tormento das almas torturadas na companhia dos demônios. Não podemos ter ideia de quão terríveis eles possam ser. Tais demônios, que já foram anjos virtuosos, tornaram-se repelentes, asquerosos. Mas eles, quando pecaram, fizeram-no por meios que eram compatíveis com sua natureza angelical: foi uma rebelião do intelecto. Eles mesmos, decaídos, enojam-se das almas dos danados que cometeram pecados, que ultrajaram o Espírito Santo.

O padre concluiu o sermão do dia: “Meus irmãos, queira Deus que nenhum de nós ouça jamais soar em seus ouvidos a divina sentença de repulsa: Afastai-vos de mim, vós, oh amaldiçoados, ide para o fogo eterno que foi preparado pelo demônio e seus anjos!”

Stephen, desamparado, desceu a nave da capela com as pernas tremendo e o couro cabeludo arrepiado em sua cabeça, como se mãos de fantasmas estivessem tocando-a. E a cada passo tinha medo de já haver morrido, de que sua alma já tivesse sido arrancada do estojo do corpo, que estivesse mergulhando de cabeça no espaço.

Inferno, a tortura psicológica

No dia seguinte, o jesuíta ainda prosseguia a sua fala sobre o que aguarda as almas condenadas: “O pecado é uma dupla enormidade. É um vil consentimento à nossa natureza corrupta em seus mais baixos instintos, naquilo que é grosseiro e bestial; e é, também, um afastamento do conselho de nossa natureza mais alta, daquilo que é puro e sagrado, do próprio Deus santo. Por tal razão o pecado mortal é punido no inferno com duas diferentes formas de castigo, o físico e o espiritual”.

A maior dentre todas as penas espirituais é a perdição; de fato, é um tormento tão grande que chega a ser maior que todos os outros. Lembrai-vos que Deus é um ser infinitamente bom e, por conseguinte, a perda de um ser é para ele infinitamente dolorosa. Nós nessa vida não temos consciência muito clara do que tal perda possa ser, mas os danados no inferno, para seu maior tormento, têm uma compreensão total daquilo que perderam.

A segunda pena que afligirá as almas danadas é o castigo da consciência. Assim como nos corpos mortos se engendram os vermes devido à putrefação, também nas almas dos perdidos se ergue um remorso perpétuo provindo da putrefação do pecado, que age como um aguilhão que aferroa a consciência. A primeira ferroada descarregada por esse verme cruel é a lembrança dos prazeres passados. E que terrível recordação será essa! Lá no lago das chamas que o devora, o rei se recordará das pompas da corte; o sábio pecador dos maus livros que leu; o amante dos prazeres artísticos de seus quadros, dos mármores; o glutão dos prazeres da mesa e do vinho especial; o impuro e adúltero os prazeres imundos e inenarráveis com que se comprazia. Ah, eles arrepender-se-ão dos pecados cometidos, terão nojo de si mesmos e este é a segunda ferroada do verme da consciência: uma tardia e infrutífera angústia pelos pecados cometidos.

Finalmente ainda irão deplorar as boas ocasiões que haviam tido para o arrependimento, e esta será a terceira ferroada do verme. A consciência dirá: tiveste tempo e oportunidade para o arrependimento, não quisestes. Tiveste o ministro de Deus para a santa confissão, desprezastes. Deus apelava que voltasses para ele, para sua lei. Mas não. Não quiseste. Imploras agora um momento de vida terrena para o arrependimento? É em vão, pois esse tempo já se foi.

A pena seguinte é a da extensão. O homem na vida terrestre embora seja capaz de muitos malefícios, não é capaz deles todos ao mesmo tempo. No inferno, entretanto, um tormento ao invés de substituir outro, cede-lhe ainda uma força que o amplifica, enquanto as faculdades internas são mais perfeitas que os sentidos exteriores, sendo mais aptas ao sofrer. Assim, cada sentido é atingido por um tormento que lhe é peculiar: a imaginação com as mais horríveis imagens, o espírito e a compreensão com uma treva mais terrível que as trevas da prisão.

Coexistindo com a pena da extensão temos a da intensidade. Na nossa vida, as aflições jamais são grandes ou longas demais, porque a natureza ou as ultrapassa pelo hábito ou lhes põe certo fim. Mas no inferno os tormentos não podem ser vencidos pelo hábito, pois sendo de terrível intensidade também o são de inimaginável variedade. E nem pode a natureza escapar dessas torturas sucumbindo à mercê delas, pois a alma é sustentada no mal de modo a que seu sofrimento pode ser sempre maior. Ilimitada extensão de tormento, incrível intensidade de sofrimento, incessante variedade de tortura- eis o que a divindade tão ultrajada pelos pecadores, pede; eis o que a santidade dos céus, menosprezada e posta à margem pelos prazeres baixos e luxuriosos da carne corrupta, requer; eis o que o sangue inocente do cordeiro de Deus derramado pela redenção dos pecadores e pisado pelo mais vil dos vis, exige!

Finalmente chegamos a última tortura, que coroa todas as outras: a Eternidade! Oh terrível e medonha palavra, Eternidade! Prestem bem atenção para a eternidade das penas. O que não será suportar as mil formas de tortura infernal para todo o sempre? Que horroroso castigo! Uma eternidade de agonia sem fim, de tormento corporal e espiritual sem fim, sem um raio de esperança, sem um segundo de trégua! Tal é o terrível castigo para os que morrem em pecado mortal e decretado por um Deus todo poderoso e justo!

Os homens muitas vezes não compreendem a hedionda malícia do pecado mortal e sua gravidade. E não compreendem que por um único pecado possa a justiça divina condenar o homem a uma punição eterna, num sofrer infinito. Isto porque eles não estão aptos a compreender toda a malícia do pecado mortal. Mas Deus, em sua suprema bondade, não poderia permitir que um pecado qualquer permanecesse sem o castigo, pois seria uma transgressão à sua lei e Deus não seria Deus se não punisse.

E assim encerrou a sua prédica sobre a morte, o julgamento e o inferno, dado que sobre o paraíso pouco explanou: “Ele vos chama a Si. Sois Dele. Ele vos fez do nada. Ele vos ama como só um Deus pode amar. Os Seus braços estão abertos para receber-vos, mesmo que tenhais pecado contra Ele. Vinde a Ele, pobres pecadores. Agora é o Tempo aceitável! Esta é a hora”.

Carlos Russo Jr. é escritor e crítico literário.