Vinicius de Moraes e a tristeza que balança

07 junho 2014 às 10h04

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Um dos aspectos pouco observados na obra do poeta e compositor Vinicius de Moraes foi o seu humor negro
Roberto Mello
Especial para o Jornal Opção

um os mais conhecidos poetas e compositores brasileiros
Depois de tantas e merecidas homenagens ao poeta Vinicius de Moraes pelo centenário de nascimento comemorado em 2013, não custa lembrar um dos traços maiores de seu espírito, um agudo senso de humor negro, divertidamente macabro, até mesmo punk. Vinicius deu a mais que perfeita definição do nosso ritmo por excelência: “O samba é a tristeza que balança”. Está lá no seu “Samba da bênção”. É esse traço que ressalta em “Samba de breque”, crônica publicada no livro “Para Viver um Grande Amor”, merecedor de nossas lembranças, agora que o Festival de Cinema de Nova York anuncia a exibição de uma série de filmes sobre o nosso poeta no mês de junho. A mostra será encerrada com um show de Toquinho, seu eterno parceiro. Fora da competição, estão prometidos “Orfeu”, de Cacá Diegues, baseado na versão que Vinicius deu ao mito grego de Orfeu e Eurídice em pleno carnaval, e ainda “Vinicius”, documentário de Miguel Farias. Talvez os mais jovens desconheçam o que é samba de breque. Pela internet, recordamos que é um subgênero do samba marcado por uma pausa brusca no acompanhamento sincopado, quando o intérprete intervém fazendo um comentário às vezes declamado. Vem do inglês, break, freios, de automóvel, por exemplo. O ritmo floresceu na década de 1930 no Rio de Janeiro e traduz a graça e a malandragem dos cariocas daquele tempo, já tão distantes o tempo, a graça e a malandragem, como registra o samba “Homenagem ao malandro”, de Chico Buarque, aquele em que o compositor foi à Lapa e perdeu a viagem, a tal malandragem não existe mais, mudou, agora é “malandro candidato a malandro federal/malandro com retrato na coluna social/ malandro com contrato, com gravata e capital/ que nunca se dá mal”. O samba de breque teve como pioneiro Luiz Barbosa, que fazia o acompanhamento com um chapéu de palha. Sinhô, em “Cansei”, de 1929, dizia: “Pois lá ouvi de Deus/ A sua voz dizer/ Que eu não vim ao mundo/ Somente com o fito de eterno sofrer”, na interpretação de Mário Reis, precursor do modo de cantar de João Gilberto.
Duas canções com breque apareceram em 1933: “Minha palhoça” de J. Cascata, que mandava um “Lá tem troça/ Se faz bossa”, e “O orvalho vem caindo”, de Noel Rosa e Kid Pepe: “E o meu despertador é um guarda civil/ Que o salário ainda não viu”. O breque está nos sambas de Geraldo Pereira, nas vozes de Jorge Veiga, Ciro Monteiro, Dilermando Pinheiro, Germano Matias, mas foi Moreira da Silva quem o popularizou e consagrou. Moreira chega a fazer um discurso quilométrico no samba “Na subida do morro”: “Me contaram que você bateu na minha nêga/ Isso não é direito/ Bater numa mulher/ Que não é sua/ Deixou a nêga quase nua/ No meio da rua/ A nêga quase que virou presunto/ Eu não gostei daquele assunto/ E hoje venho resolvido/ A lhe mandar para a cidade dos pés juntos”. Moreira criou um personagem, “Kid Morengueira”, que atuava em enredos mirabolantes e divertidos, tal como no grande sucesso “O rei do gatilho”, de Miguel Gustavo.
Mas, e Vinicius? Sua crônica intitulada “Samba de breque” aí vai para os que não partilham dos ideais do politicamente correto: “Esta história é verdade. Um dia meu tio vinha subindo a rua Lopes Quintas, na Gávea — era noite — quando ouviu sons de cavaquinho provenientes de um dos muitos casebres que minha avó viúva permite nos seus terrenos. O cavaco cavucava em cima de um samba de breque, e esse meu tio, compositor ele próprio, resolveu dar uma estirada até a casa, que era a de um conhecido seu, companheiro de música, um rapaz operário com mulher e uma penca de filhos. Tinha toda a intimidade com a família e às vezes ficava por lá horas inteiras com o amigo, cada qual palhetando no seu cavaquinho, puxando música madrugada adentro. Nessa noite o ambiente era diverso. À luz mortiça da sala meu tio viu a família dolorosamente reunida em torno de uma pequena mesa mortuária, sobre a qual repousava o corpo de um “anjinho”. Era o caçula da casa que tinha morrido, e meu tio, parado à porta, não teve outro jeito senão entrar, dar as condolências de praxe e reunir-se ao velório. O ambiente era de dor discreta — tantos filhos! — de modo que ao fim de poucos minutos, não se sentindo por demais necessário, meu tio resolveu partir. Tocou no braço da mulher e fez-lhe um sinal. Mas esta, saindo da sua perplexidade, pediu-lhe que entrasse para ver o amigo. Foi encontrá-lo num miserável aposento interior, sentado num catre, o cavaquinho na mão. — Pois é, velhinho. Veja só … O meu caçula… Meu tio bateu-lhe no ombro, consolando-o. A presença amiga trouxe para o pai uma pequena e doce crise de lágrimas de que ele muito se desculpou com ar machão: — Poxa, seu! Até pareço mulher! Não repara, hein companheiro… Meu tio, com ar mais machão ainda, fez qual-que-bobagem, essa coisa. Depois o rapaz disse: — Tenho um negocinho para te mostrar… E teve um gesto vago, apontando a sala onde estava o filho morto, como a significar qualquer coisa que meu tio não compreendeu bem. — Manda lá. Conta meu tio que, depois de uma introdução dentro das regras, o rapaz entrou com um samba de breque que, cantado em voz respeitosamente baixa e ainda úmida de choro, dizia mais ou menos o seguinte: “Tava feliz/ Tinha vindo do trabalho/ E ainda tinha tomado/ Uma privação de sentidos no boteco do lado/ Que bom que estava o carteado…/ O dia ganho/ E mais um extra pra família/ Resolvi ir para a casa /E gozar/ A paz do lar/ — Não há maior maravilha!/ Mal abro a porta/ Dou com uma mesa na sala/ A minha mulher sem fala/ E no ambiente flores mil/ E sobre a mesa/ Todo vestido de anjinho/ O Manduca meu filhinho/ Tinha esticado o pernil”. Diz meu tio que, entre horrorizado e comovido com aquela ingênua e macabra celebração do filho morto, ouviu o amigo, a pipocar lágrimas dos olhos fixos no vácuo, rasgar o breque do samba em palhetadas duras: “— O meu filhinho/ Já durinho/ Geladinho!”
Roberto Mello é psicanalista.