Opção cultural

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Netflix em busca da estatueta de ouro

Douglas Arantes Antunes Lopes*

As premiações mais tradicionais do cinema têm reconhecido as produções de filmes da gigante do streaming Netflix. Podemos elencar aí uma série de razões – desde a diminuição de visitas do público às salas de cinema, passando pela eficiência do financiamento das produções da empresa, até os filmes de diretores ilustres, como Martin Scorsese (O Irlandês) e Fernando Meirelles (Dois Papas). Quando estamos diante da tela, seja do cinema ou dos nossos dispositivos domésticos, ficamos impressionados e distraídos com os conteúdos que nos são exibidos a ponto de esquecer que a produção de cultura de massa é feita por uma indústria. Ou seja, os títulos que tanto gostamos são feitos a partir de complexos processos de produção, os quais envolvem um sem número de recursos humanos e materiais. As transformações em campos como o da telecomunicação e do processamento de dados possibilitaram a criação dos serviços de streaming, revolucionando as formas de se produzir e consumir cinema. Antes, éramos restritos à programação das salas físicas de cinema, ao catálogo das locadoras de fitas VHS ou DVDs ou, ainda, a contar com a sorte de que algum canal transmitisse filmes de nosso interesse. Acima de tudo, todas essas opções para entretenimento eram caras em comparação ao que pagamos hoje. As produções também eram restritas à grandes estúdios, que já estavam ficando enjoativas. Plataformas de streaming, por sua vez, já atingiram porte grande o suficiente para financiar produções de diretores e elencos consagrados, permitindo que experimentem facetas irrealizáveis nas produções tradicionais. Ao mesmo tempo, abrem espaço para filmes de equipes independentes ao redor do mundo. Esta conjuntura faz com que a edição do Oscar de 2020 seja peculiar, com títulos ousados e concorrência bem equilibrada. Para os brasileiros, a boa surpresa é concorrer com dois títulos, ambos produzidos pela Netflix. Os Dois Papas, dirigido por Fernando Meirelles (Cidade de Deus e Ensaio Sobre a Cegueira) recebe as indicações de Melhor Ator, com Jonathan Price, e Melhor Ator Coadjuvante, com Anthony Hopkins. O longa ainda foi indicado por Melhor Roteiro Adaptado (Anthony McCarten). Já Democracia em Vertigem, de Petra Costa, concorre como Melhor Documentário. Na categoria de Melhor Filme, a empresa conta com duas indicações: O Irlandês (Martin Scorsese) e História de um Casamento (Noah Baumbach), concorrendo com títulos como Coringa (Todd Phillips) e Parasita (Bong Joon-ho). Na categoria de melhor ator, além de Jonathan Price, Adam Driver foi indicado pela sua atuação no longa de Noah Baumbach, concorrendo com Joaquim Phoenix e Leonardo Di Caprio. Por um lado, a premiação este ano está mais equilibrada e diversa do que em qualquer outro. Por outro, a presença magnânima dos títulos, diretores, roteiristas e atores da Netflix na lista de indicados deixou qualquer cinéfilo sem saber em quem apostar. *Douglas Henrique Antunes Lopes é professor do Centro Universitário Internacional Uninter. Atua nos cursos de Filosofia, Serviço Social e Pedagogia, além do Curso de Extensão Cineclube Luz, Filosofia e Ação.

O blues do deserto de Tinariwen

Banda formada por tuaregues lançou disco em 2019 em que versa sobre o deserto

O olhar de Dorothea Lange sobre a tragédia

Fotógrafa  imortalizou imagens de pessoas que sofreram durante Grande Depressão

O olhar de Lynn Hunt sobre a Revolução Francesa e sobre como ela se faz presente nos nossos dias

Em Política, cultura e classe na Revolução Francesa, a historiadora se desvia de teorias já postas na mesa e tenta novos parâmetros de análise

Monty Python e subversão da comédia

Na década de 70, grupo já ignorava regras da "boa comédia" e satirizava instituições de poder da sociedade

O som envolvente e contraditório dos australianos da Sticky Fingers

Apesar de conquistar cada vez mais fãs e agendas pelo mundo, músicos da Sticky Fingers lutam constantemente com conflitos internos

Messiah, da Netflix, especula sobre a chegada do messias

Série instiga ao tratar do aparecimento de um salvador, visto com esperança e descrédito pelas pessoas em tempos de redes sociais As três grandes religiões monoteístas (por ordem cronológica: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo) somam, juntas, quase 4 bilhões de pessoas, praticamente a metade da população mundial. Todas têm uma mesma raiz, o patriarca Abraão (por isso, são chamadas de regiões abraâmicas), mas, ao longo de milênios, as divergências, que fomentaram guerras e perseguições, acabaram por esconder os muitos pontos de contato entre elas, além da origem única. Ainda que existam distâncias aparentemente incontornáveis entre essas três tradições, a própria concepção de Deus único, que as une, é revolucionária, pois surgiu em meio a um caldo cultural exclusivamente politeísta. Entre as crenças mútuas de judeus, cristãos e muçulmanos, está a espera por um messias, que chegará no fim dos tempos para redimir o homem e instaurar a era da paz no mundo. Cada uma delas, porém, tem sua própria maneira de enxergar esse messias. Para os cristãos, por exemplo, haverá o retorno de Jesus. Entre os judeus, a vinda do Mashiach, da linha de David (como a de Jesus no cristianismo) se dará junto da reconstrução do templo. Na visão de alguns segmentos islâmicos, especialmente entre os xiitas, que são minoria, haverá uma batalha final entre o falso profeta Al-Dajjal e o profeta Mahdi que, auxiliado por Isa (Jesus), sairá vencedor. Outra semelhança é que a chegada desses messias é precedida de muitas tribulações. O homem estará entregue à ganância, à violência, ao orgulho e à luxúria. O planeta estará enfrentando ondas de furacões, terremotos e tsunamis. Em resumo, parecerá que o mal, enfim, estará prestes a triunfar. É em um cenário assim que temos as primeiras imagens de Messiah, série que estreou na Netflix em janeiro e que causou polêmica em vários países, especialmente aqueles em que o Islã é maioria (a obra foi acusada de tratar os muçulmanos de forma preconceituosa e desrespeitosa, especialmente por supostamente liga-los ao terrorismo). Al Massih (Mehdi Dehbi) surge em Damasco, Síria, quando a cidade está prestes a ser invadida pelo Estado Islâmico. Uma multidão o ouve e, quando o ataque inicia, uma tempestade de areia toma conta do lugar. Al Massih continua sua pregação e, após dia de tempestade ininterrupta, o Estado Islâmico desiste da batalha. Isso basta para que dezenas de pessoas acreditem ter presenciado um milagre e passem a segui-lo. Do oriente médio, Al Massih surge em uma pequena cidade no Texas, Estados Unidos, devastada por um furacão. Ali, a família de um pastor batista e os moradores presenciarão outra cena milagrosa. Assim, é a vez de cristãos ocidentais apontarem o homem como o aguardado messias. Mais uma vez, ele atrai milhares de pessoas. A série escorrega no que pretende ser um thriller investigativo. Estão ali velhos clichês, como agentes dedicados integralmente ao trabalho e, consequentemente, com vidas pessoais destroçadas. Também não ficam de fora as exibições de capacidade investigativa dos vários órgãos de segurança norte-americanos (como CIA e FBI) e as rusgas entre os membros de cada um deles. Não falta, ainda, um toque de feminismo e do politicamente correto. Mas essas são falhas que não estragam o que realmente importa: a premissa poderosa levantada pelos produtores Mark Burnett e Roma Downey, casal cristão responsável pela série A Bíblia, também disponível na Netflix. Afinal, como cada um de nós reagiria se o esperado messias chegasse hoje? Como seria a cobertura na imprensa? Como agiriam os grandes líderes mundiais, religiosos ou políticos? E as redes sociais, bombariam? Messiah especula sobre todos esses olhares e não entrega respostas prontas – deixando aberta a janela para uma segunda temporada. E não é preciso ter uma imaginação muito fértil para antever algumas reações, de tão óbvias. Há o religioso que oscila entre a esperança cega e o ceticismo. Há o que vê no advento a oportunidade de angariar ainda mais prestígio. Há os que o considerem louco, revolucionário, terrorista, charlatão. Há pessoas que descobrem, ou reencontram, a fé. Há, ainda, as que tratem encontram nela maneiras de prosperar financeiramente. Em meio a todas essas possibilidades, um sentimento une os personagens. Ao fim, aparentemente são aqueles que nada esperavam que encontram no messias uma possibilidade de redenção. Aos que projetaram nele a solução para as angústias e porta de saída para seus labirintos pessoais, resta a decepção. Ao menos na primeira temporada.

Três iluminações do cinema que manipulam suas emoções

Se à princípio a luz servia para iluminar, dar perspectiva e melhorar a imagem, o cinema, ao longo de seu caminho, encontrou outros sentidos mais profundos para aperfeiçoar suas técnicas  A fotografia e o cinema nasceram praticamente juntos, lá por meados de 1890, e tinham como premissa básica de iluminação a naturalidade, a luz solar. Por essa razão, o cinema foi transportado de Nova York para Los Angeles, nos anos 20 do século passado, como explica o teórico do cinema Richard Blank em seu livro "Cinema e luz. A história da luz no cinema é a história do cinema". Em Los Angeles, a luz é mais clara, mais contundente e mais dourada, o que possibilita uma iluminação frontal e uniforme nas personagens. Enquanto as tecnologias para aperfeiçoar a iluminação se desenvolviam, outros padrões do cinema hollywoodiano também começavam a se delinear, como os perfis de suas estrelas, de suas personagens, sonoridades e roteiro e todo um pot-pourri de regras que fortaleciam sua posição no establishment. Hollywood se tornava uma das indústrias mais poderosas do mundo. Do outro lado do Oceano Atlântico, na Europa os cineastas quebravam os paradigmas e faziam exceção à regra, se inspirando na estética de movimentos artísticos, se adaptando às adversidades (guerras, falta de recursos, clima, política) e buscando uma substância mais subliminar e filosófica para a iluminação de seus filmes, como ocorreu com o Expressionismo Alemão, o Realismo Italiano, a Nouvelle Vague e, também aqui nos Trópicos, o Cinema Novo Brasileiro. Na pintura, a brincadeira com luzes e sombras permitem os olhos humanos a identificarem a perspectiva dos objetos. Pessoalmente, nós não precisamos exatamente que as luzes e sombras nos ajudem a determinar a distância entre os objetos e nós ou dos objetos com outros objetos, porque temos dois olhos que capturam a imagem de ângulos diferentes, mesmo que sutilmente. Apesar de pequeno, o deslocamento proporcionado pelos dois olhos nos dão a percepção tridimensional. Como na pintura, a fotografia e o cinema também tiveram de desenvolver estilos de iluminação capazes de dar noção de profundidade para o público. Para além disso, também de transmitir mensagens subliminares ou sensações com um propósito específico. Agora, a iluminação não apenas proporciona luz e sombra, perspectiva e melhora a qualidade da imagem, como ela também cria no fantástico mundo da imaginação e das sensações a dramaticidade. Um dos efeitos de iluminação mais famosos da Sétima Arte foi criado há cerca de 400 anos pelo pintor holandês Rembrandt Van Rijn. Dentre as características mais marcantes deste artista está a forte marcação das linhas de expressão dos rostos, o dramático chiaroscuro herdado de Caravaggio (claro-escuro: um contraste forte entre luzes e sombras) e a luz triangular carimbada sob os olhos de seus retratados. Essa última é hoje uma das mais utilizadas artimanhas do cinema, frequentemente usada para fazer o espectador acreditar que este é um momento emocional para a personagem. Em filmes de suspense ou thriller, já é mais comum ver o efeito Top Down Lighting, que é uma técnica de iluminação desenvolvida para tornar determinados rostos da história assustadores. Geralmente a iluminação também é low-key, ou seja, o fundo é bastante escuro e a luz se concentra na personagem, reforçando a protuberância da face. O rosto é iluminado diretamente de cima para baixo e, com isso, é possível criar uma luz no formato de uma caveira sobre o rosto, o tornando mais ameaçador ou intimidador. A sensação no público é de medo. Já o Far Side Key é uma luz quase poética e que dá às personagens um ar mais intrigante. Uma sombra mais endurecida deixa encoberto o lado da face que está voltado para a câmera, enquanto a luz ilumina o lado do rosto que quase não mostra. O efeito tem o poder de romantizar, dramatizar ou dar um ar heroico à personagem.

A destruição criativa do trabalho americano

Considerações sobre o documentário “Indústria Americana”, que concorre ao Oscar 2020

Everaldo Leite

Em agosto de 2019 a Netflix disponibilizou para seus assinantes o documentário “Indústria Americana” (American Factory), dirigido por Steven Bognar e Julia Reichert, que mostra a difícil síntese produzida a partir do encontro entre culturas de trabalho diferentes. No filme, uma empresa chinesa adquire o que restou de uma montadora da GM em Ohio, no centro-oeste americano, e lá começa um processo de fabricação de vidros, com objetivo de atender a produção mundial de automóveis. Trabalhadores americanos são contratados e submetidos ao modelo chinês de manufatura, que abrange um mínimo de doze horas de trabalho diários e que não se detém para o descanso semanal. Trabalhadores chineses são contratados e trazidos da Ásia para impor o ritmo e suprir as “deficiências” americanas. Sem aceitar que hajam ingerências do sindicato, começa aí uma batalha entre a obstinação asiática e a “predeterminação” do sonho americano. Desde o início, a velha questão: O que um americano médio quer? Sua cultura de vencedores, como mostra o documentário, fala em bons empregos, excelentes investimentos, casas, família típica, carros, crianças na escola e jovens na faculdade. Há lugar para os perdedores, é claro, mas na imagem das más consequências individuais nascidas das péssimas decisões. Existe, para tanto, desde o seu nascimento, um ideal de liberdade pelo qual todos podem correr atrás de seus sonhos, lançando mão da racionalidade e, não raramente, da certeza de que “Deus” os ajudará. No folclore geral a visão correta é a de que os EUA conseguiram a liderança econômica mundial e construíram a sua colossal força militar em função desse sonho, e, por isso, nunca serão pisoteados por quaisquer circunstâncias externas ou sabotados por uns poucos interesses egoístas internos. O filme “Indústria Americana”, insistentemente, mostra que o contrário pode ser a verdadeira realidade de grande parte do país. A meritocracia é um valor da democracia dos EUA, pois é o que dá significado às vitórias e às derrotas individuais. Cada um americano tem o que merece, segundo a ética do mérito. Não parece, portanto, na mentalidade americana, que as circunstâncias adversas podem ser a verdadeira causa do fracasso de muitos. O valor do mérito próprio, muito mais relevante, acaba por se impor como uma baliza entre o que o indivíduo consegue realizar e o que ele efetivamente sonhou para si. Por isso, a frustração consigo mesmo é clara e fica estampada na cara de cada um trabalhador – que aparece no filme – após a crise de 2008 ter colapsado o setor industrial de toda aquela região. Aliás, essa frustração quanto à fragmentação de seus sonhos, de terem nada em mãos apesar de atribuir mérito ao que realizavam até então, foi a única coisa que restou de uma complexa equação política e econômica cujo trabalhador nunca tem acesso e compreensão. Obviamente, o documentário não consegue aprofundar o espantoso contexto político-econômico no qual subjaz os interessantes fatos que apresenta. Seriam muitas horas a mais de filme. Sua meta é contar uma história e dar voz àqueles que comumente servem apenas às estatísticas. Não deixa de ser um ponto de vista americano, mas a oportunidade de fala também se estende aos trabalhadores e gestores chineses, que a utilizam conforme acham pertinente. O produto final, o filme, é bastante franco nesse sentido, não destaca um vilão ou uma vítima, aparentemente todos ali se movem por intenções apropriadas ao que requer sua própria cultura de trabalho. Se os diretores de “Indústria Americana” deixaram de fora da narrativa algo essencial – talvez propositalmente – foi a possibilidade de um sonho chinês ser tão respeitável quanto o sonho americano.  O que os americanos perderam de vista é que outros países também têm indivíduos com desejos. O sonho chinês, diferentemente do sonho americano, é um ideal que, apesar de atender ao indivíduo, precisa primeiramente satisfazer aos interesses coletivos de sua nação. A empresa chinesa precisa ser extremamente produtiva, muito lucrativa, impressionar o ocidente e atender todo o planeta, em honra da China. No documentário esse espírito coletivista fica bastante evidente na postura militarizada dos seus trabalhadores e na forma arrogante como estes se colocam frente aos “preguiçosos” e “piores” trabalhadores americanos. Essa característica parece ofensiva e traz uma ideia de superioridade étnica nada insignificante. Ao cair o véu da polidez chinesa – seus forçados gestos de simpatia e de tolerância – o que se exibe no documentário é a face mais radical e rigorosa da ética da meritocracia. O mérito, para o chinês, é praticamente um estatuto religioso e sua total dedicação ao trabalho é a realização do sonho em si, tendo a casa, o carro e a família – tão caros aos americanos – como consequências secundárias. Não, os chineses não são desalmados, são na verdade uma nação cuja economia de mercado e o ativismo do Estado lhes restituiu o orgulho imperialista. Não prometem guerra contra nenhum povo, mas querem enriquecer rapidamente ocupando o espaço dos “perdedores” com sua tecnologia inovadora e, como mostra o documentário, com sua carga horária quase suicida de trabalho. Na China, especialmente nas grandes cidades empresariais, se vê muito claramente que a riqueza e a mudança dos hábitos estão criando uma nova civilização asiática. Há chineses ricos, de classe média e chineses pobres, mas o que se deve ressaltar é que a mobilidade social por lá é impressionantemente forte vis à vis à sua crescente produtividade. No documentário, uma equipe americana é levada à China para conhecer esse novo mundo e suas expressões não deixam dúvida sobre o impacto dessa realidade. Meritocracia, mérito, os estadunidenses quase dizem: “eles merecem ser ricos, nós, sindicalizados preguiçosos, não!”. Os EUA ainda são os grandes representantes econômicos do ocidente, não há dúvida. Sua expansão tecnológica e seu potencial financeiro são admiráveis, sendo pioneiros e hegemônicos em vários segmentos produtivos. O seu setor de serviços é sofisticado e o grau de complexidade de sua produção surpreende o mundo competitivo. Sua supremacia política, com o fim da União Soviética, foi a mola propulsora da globalização, que fez crescer colossalmente o comércio internacional e gerou oportunidades em todos os países que aderiram rapidamente ao novo modelo de negócios, especialmente os países asiáticos. A Coreia do Sul, Cingapura e a própria China lançaram mão de todas as boas ideias do mundo corporativo e, não raras vezes influenciados pelos objetivos de seus governos, sofisticaram a sua indústria e desenvolveram segmentos complexos para atender as demandas mundiais. O que o documentário “Indústria Americana” revela é apenas mais um capítulo de um momento histórico que se iniciou lá atrás, bem antes da eclosão da crise de 2008. Ou seja, a narrativa somente aponta para mais um processo pragmático de “destruição criativa” – conceito criado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter (que não é da chamada Escola Austríaca de Economia) –, que se segue de modo incontornável na esteira deste novo momento do liberalismo. A China transnacional, hoje com melhor eficácia produtiva, melhor tecnologia industrial e enorme ambição por parcelas maiores de mercado, quer destruir o modelo americano e transformar seus trabalhadores, criando novos paradigmas a serem seguidos. O documentário mostra justamente isso, a destruição criativa do trabalho, com a inédita substituição do sonho americano por satisfações materiais e afetivas pelo sonho do trabalho incansável. O documentário “Indústria Americana” concorre ao Oscar 2020 de melhor documentário, vamos ver que efeito terá essa difícil história nos membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas na hora do voto.   Everaldo Leite é economista. 

“Coma branco”: as aventuras de um guitarrista goiano na terra do Tio Sam

Obra do jornalista e escritor Henrique Morgatini conta as peripécias de Mark Days no mundo do rock da Califórnia, na década de 1990

Mariza Santana

O mundo dos astros do rock é basicamente composto por música, sexo e drogas. Além é claro, atualmente, de milhões e milhões de dólares. Até aí, nenhuma novidade, é somente um lugar comum. Todos sabem como funciona a engrenagem desta indústria cultural que influencia a vida de milhares de jovens em todo o planeta, ditando moda e consumo, enfim toda uma forma de viver. Alguns ídolos do rock foram embora cedo, como Jimmy Hendrix e Janis Joplin, e mais recentemente, Kurt Cobain. Outros astros sobrevivem nos palcos até hoje, para o delírio dos fãs, com Axl Rose. Entre eles, alguns já são chamados de dinossauros do rock, como Ozzy Osborne (e sua lendária mordida em um morcego em pleno palco, durante um show) e o setentão Mick Jagger, só para citar uma pequena parcela dessas celebridades. O leitor vai perceber que, embora roqueira de coração, meus conhecimentos sobre o mundo do rock se resumem a algumas bandas e artistas mais antigos (Pink Floy é um dos meus favoritos). Estes astros, entretanto, ainda arrastam multidões em festivais como o Lollapalooza e o Rock in Rio. Por isso, senti um pouco de dificuldade para identificar todos os personagens deste meio musical em Terras do Tio Sam, na década de 1990, ao me embrenhar no livro “Coma Branco”, do jornalista e escritor Henrique Morgatini. Este detalhe pode limitar o número de leitores da obra, que acaba apresentando uma narrativa destinada a um público específico: os roqueiros de carteirinha, mais conhecedores do gênero, incluindo os músicos, pois muitos são os detalhes citados sobre equipamentos. Mas isso não impede de se apreciar as aventuras e desventuras de um guitarrista anapolino no mundo do rock na Califórnia. O protagonista de “Coma Branco” passa por uma transformação. Antes era Marcos Dias, um jovem apaixonado por rock and roll e morador do Centro-Oeste brasileiro. Depois se torna Mark Days, inicialmente mais um músico em busca de um lugar ao sol no meio musical das cidades de San Francisco e Los Angeles. Nosso herói, depois de muitas peripécias, sexo e drogas (afinal esta é uma história sobre o rock, baby!) acaba tocando guitarra na banda do músico norte-americano Marilyn Manson, conhecido por sua personalidade escandalosa. O artista em questão é líder e vocalista de uma banda epônima (defensora do não-conformismo, que usa conteúdos líricos polêmicos e imagens controversas.). A transformação de Marcos Dias em Mark Days, e sua mudança de Anápolis para a Califórnia, ocorrem devido a uma decepção amorosa. Sim, elas sempre são as causadoras de mudanças drásticas na vida de muitos jovens de coração despedaçado. A responsável pela desilusão em questão se chama Sandra. Nos States, para esquecer Sandra, Mark Days vai se impondo sobre Marcos Dias, pois o personagem passa a adotar um novo modo de vida. Sua história vai virando uma roda-viva, até que ele se depara um novo amor, Sabrina. A atuação dela será decisiva para que Mark finalmente consiga conquistar seu lugar nesse disputadíssimo círculo de músicos roqueiros. Henrique Morgatini adota uma linguagem dinâmica para que o leitor possa sentir o clima efervescente daquela última década do século passado, demonstrando como é vibrante e louco o mundo dos artistas que enveredam pelo rock. No caminho, Mark conhece o líder do Nivarna, (sim Kurt Cobain em carne e osso!), simplesmente um de seus maiores ídolos. Nosso herói vive aqueles alucinados anos 1990 em toda a sua plenitude, até começar a se questionar o que estava fazendo ali. Nesse momento, ele repensa sua trajetória. O desfecho da história talvez seja o melhor momento de toda a narrativa. Mark Days versus Marcos Dias, de fato um bom duelo. Nesse ponto, é melhor não adiantar mais nada, para não dar spoiler, como costumamos falar hoje, em tempos de Netiflix e outras produtoras de conteúdo oferecido pelo serviço de streaming. “Coma Branco” é um livro sobre as aventuras de um guitarrista acidental nos Estados Unidos, escrito para outros jovens. O grande desafio é fazer com que esse público se interesse pela leitura, nesses tempos de redes sociais e textos telegráficos. Quem aceitar o desafio e, principalmente se tiver um coração repleto de rock in roll (vale lembrar que Goiânia é também a cidade do rock alternativo), certamente vai gostar de acompanhar a trajetória desse goiano que, de forma acidental, conviveu com celebridades roqueiras em um passado recente. Pode ser ficção, mas quem não gostaria de ter vivido em sua juventude o que Mark Days viveu?

Duas bandas que você precisa conhecer: Caffeine Lullabies e Ousel

Grupos goianos de vertentes diferentes do rock independente lançaram discos que merecem a sua atenção. O primeiro deles saiu em outubro. O segundo há nove dias

Goiânia ganha primeiro centro de treinamento gamer voltado para jogadores de LoL e CS

Primeiros atletas desembarcaram em Goiânia para início dos treinos na nova casa do time Rensga Esports. Diretor executivo do grupo garante que equipe CS:GO será 100% goiana

Dos poeminhas pescados numa fala de João ou de como a arte da poesia começa na infância

de Soninha dos Santos

[caption id="attachment_24462" align="alignnone" width="620"] Reprodução/USP[/caption] É comum as pessoas grandes ficarem maravilhadas com o que dizem as crianças. Nos encantamos com as falas "poéticas" que pronunciam e com as maneiras como ajeitam as concordâncias e as conjugações verbais. Como dão vida a certos substantivos ou adjetivos e fazem dos advérbios contextos eficazes na sua relação com o mundo adulto. Interessante ressaltar que, conforme Drummond já dizia, a criança nasce poeta e carrega,naturalmente, a poesia dentro de si. Um livro em especial nos chama a atenção para esse fato constatado: "Poeminhas pescados numa fala de João", de Manoel de Barros (2001), Efiyora Record. Nesse livro o "eu poético", a voz que ecoa nos versos graficamente arranjados em meio às ilustrações abstratas e lúdicas de Ana Raquel, é a voz de João. Essa voz, brincando o tempo todo, sai do coração, das brincadeiras e suposições de um ser, na infância, já poeta das miudezas e das coisas sem sentido para a racionalidade, mas carregadas de razão para as crianças. Manoel de Barros toca no coração do leitor adulto que não percebe as incoerências das crianças senão como um aceno da pureza interior, mas toca também o leitor criança que melhor do que ninguém, compreende a quietude da "A água dava rasinha de meu pé" ou de "A Noite caiu da árvore ". Um leitor mais aguçado vai se embrenhar por esta noite e encontrará, com certeza, "um rio indo embora de andorinhas..." Capacidade de compreender metáfora tão cheia de simbolismos todos nós temos, mas perseguir um rio de andorinhas creio que poucos terão. Há que libertar a criança presa em cada um de nós e deixá-la solta, às voltas com a imaginação criadora que grande parte dos adultos perdem ou preferem esquecer que existe. Manoel de Barros, grande poeta, fluente na língua dos pássaros e rios, fluente também no idioma infantil. Sua poesia está aí, despojada de alegorias adultecidas para nos lembrar o tempo todo de quem nós somos. Poetas e crianças. Crianças e poetas. Perder de vista a infância é perder nossa melhor aposta para um mundo melhor e sem fronteiras. Um mundo mais justo e mais igual, onde brincar faz parte para lembrar de quem realmente somos: gente com G maiúsculo! Fica a dica, na falta de ter o que fazer ou de como preencher os buracos cada vez mais aprofundados dentro de nós mesmos, preste atenção no que dizem as crianças e talvez você se encontre. Não custa nada tentar.  

Laertesando os processos de (des)construção

                                                                 De Evaldo Pereira de Sousa, estudante da Pós-Graduação em Ensino de Humanidades e Linguagens no Instituto Federal de Brasília (IFB)

O processo de mudança do indivíduo é, certamente, indeterminado, considerando os inúmeros acontecimentos necessários para o alcance da plenitude do ser. Semelhante afirmativa é baseada no documentário Laerte-se, dirigido por Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum. Trata-se de uma obra sobre o cotidiano e a vida de Laerte Coutinho, mulher trans, cartunista e chargista brasileira, de notória importância no Brasil devido aos trabalhos desenvolvidos em grandes editoriais, como as revistas Veja e ISTOÉ e os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. Laerte decidiu assumir sua transição em 2010 — e falar publicamente sobre ela — e, atualmente, tem promovido discurso de representatividade em defesa dos direitos da pessoa trans no Brasil, por meio das mídias e do seu trabalho no campo artístico. O filme é marcado pelo cotidiano da protagonista e o processo de reforma de sua residência, sugerindo os processos de (des)construção pelos quais a artista passa em relação à sua imagem, sua narrativa, aceitação, discursos, vida pessoal, familiar e profissional, bem como aos percalços, aflições e reflexões sobre seu corpo e espaços sociais. Na primeira parte, a artista revela como assumiu para a família a identidade com a qual se identifica. A história é parecida com a de tantas outras pessoas que descobrem a transexualidade na vida adulta, após constituírem família e terem filhos. Quanto a isso, é possível evidenciar os desafios em estabelecerem-se acordos enunciativos entre esses sujeitos. No que tange ao aspecto linguístico — com o marcador de gênero da língua portuguesa (a para o feminino e o para o masculino) —, carece cada vez mais de diálogo entre os agentes do enunciado, já que o tratamento devido nem sempre condiz com a identidade assumida pelas pessoas transexuais, tendo em vista o estranhamento em comparação à identidade praticada pelo indivíduo até a transição. Ainda acerca da linguagem, a protagonista vincula o aprendizado de ser mulher à assimilação de uma nova língua. Em sua experiência, as relações de tal aprendizado pessoal estabelecem-se entre a mente, o corpo natural e suas transformações — marcadas ora pela assunção do vestuário feminino, ora pelo desvestir para o feminino, com a retirada dos pelos corporais, por exemplo —, bem como pela aceitação do sexo biológico, com o marcador genital masculino, convertendo o cotidiano e as relações interpessoais em aprendizagem. O valor simbólico dos traços identitários dos corpos traduzem-se num drama para as pessoas trans. Frequentemente, há cobranças acerca de transformações físicas voltadas para o que acrescentar e/ou tirar. Refletir sobre tais cobranças e assumir os corpos da forma como são também é sinal de resistência dos indivíduos trans, tanto quanto naqueles casos em que há alterações físicas, que incluem intervenção e procedimentos cirúrgicos, como próteses mamárias. Com isso, observa-se uma linha significativa no percurso da artista durante a narrativa do filme. A inquietação da reforma da casa e as modificações geradas no processo de transição refletem uma preocupação profissional. Na visão estética da cartunista, há pontas soltas de suas obras, imperfeições devidas ao processo do qual ela é fruto. Cabe aqui questionar se as inadequações existentes, físicas e profissionais, não decorrem do ser inadequado que Laerte representa no contexto social, subjugado pela alteridade do seu discurso e do seu existir. Isso porque tal forma de existir não é do jeito certo, baseado em modelos binários, como amplamente difundido e aceito, cujas concepções de identidade e de gênero dos seres assentam-se em feminino e masculino. Outra observação é em relação à orientação sexual, que diz respeito à atração física e/ou emocional entre as pessoas. Como mulher trans, heterossexual – isto é, atraída sexualmente por homens —, desde sua juventude, como socialmente homem, Laerte conviveu com a ideia de que seria mais aceito tornar-se mulher para relacionar-se com homem do que ser um homem que se relaciona afetivamente com outro homem. Isso traz a narrativa pessoal e associada exclusivamente à orientação sexual e à identidade de gênero da Laerte. Não deve ser entendido, pois, como o modelo de comportamento de homens homossexuais, por exemplo, uma vez que estes, em virtude de relacionarem-se com pessoas do mesmo sexo (masculino), não necessariamente se identificam físico e mentalmente com pessoas do sexo oposto (feminino). As questões de gênero e de identidade propostas no documentário valem-se da problematização e da visão empática de cada eu-espectador, já que o processo abordado expõe a vivência do outro. Ainda assim, as análises devem ser fomentadas dentro da comunidade, pautadas em métodos de tolerância, solidariedade e aceitação dos envolvidos, vez que as questões de gênero e de identidade são construções sociais, que, muitas vezes, são incapazes de refletir os anseios, os corpos e as narrativas de cada indivíduo. Desse modo, Laerte, que se fez verbo conjugado no nome do documentário, em referência à libertação pessoal, reivindica o direito de ser mulher, tanto quanto o de ser homem. Sendo processo de mudança e constituição física, seu corpo é eternamente inacabado e, dificilmente, estará resolvido.

Estrelas que brilharam atrás das telas

Filme “Mar de Rosas”, dirigido por brasileira durante a ditadura, aborda questões sociopolíticas, psicanálise e rompe com valores da família tradicional