Opção cultural

Por que o herdeiro de uma das maiores fortunas do mundo viria a se interessar por um país subdesenvolvido? Por que ampliaria sua atuação para outras áreas, como a cultural, ao ponto de se tornar um verdadeiro mecenas? É o que procura esclarecer o professor Antonio Pedro Tota em “O Amigo Americano — Nelson Rockefeller e o Brasil”

Fotógrafo brasileiro multipremiado e de renome internacional, Sebastião Salgado revela no livro “Da Minha Terra à Terra” histórias de sua vida pessoal e profissional, colhidas em suas andanças pelo mundo em busca de fotografias

Rigorosamente fundamentada em documentação e no arquivo da família, “La Vita Plurale di Fernando Pessoa”, do espanhol Ángel Crespo, em nova edição italiana com tradução e revisão do crítico Brunello Natale De Cusatis, representa a biografia pessoana mais completa e atualizada já posta em circulação

Hélverton Baiano
O galo saçaricava há quase uma semana, pois a galo dado não se mata recente, tem-se de esperar pelo menos sete dias para passá-lo à panela. A sentença do galo estava determinada e chegamos dois dias antes de se cumprir, a ponto de conviver e nos enternercer pelo bichinho. É triste a sina do galo pelo que ele nos brinda com seu canto matutino, que, sozinho, como disse João Cabral de Melo Neto, não tece uma manhã.
Mas o galo canta indiferente a quaisquer perspectivas, apenas pela canora forma de nos agraciar com uma melodia única e inexorável, nos dedicando graciosamente o deleite da manhã que se prenuncia. O galo é o relógio do sertanejo, pontual como o sol que vem e vai no seu habitual, pontuando dias e noites, claro e escuro.
Aquele galo, especificamente, viveu sete dias peado e alimentado com quireras e sobras, correndo e tropeçando atencioso para o que comer, sem saber que logo viraria de-comer. Era um galo interativo e não se fazia de rogado quando lhe dava fome e os de casa se descuidavam. Ia sorrateiro e serelepe à arandela de frutas e verduras e catava de lá uma cebola ou uma banana e a traçava com tanta rapidez e eficiência, que o colocaria em primeiro lugar na olimpíada da gula galinácea.
Por dois dias fui despertado pelo doce cantarolar do galo. Mas no segundo dia me comprazia ao galinho, sabendo que daí a pouco o bichinho viraria pirão pelas mãos hábeis e traquejadas na lida de matar e cozinhar sem pena esses bichos de penas. Deu pena! Ainda mais nestes tempos de exaltação à carne branca.
O galo cantava pela última vez, um canto forte, audacioso, cocoricorando alegrias aos ouvidos da aurora, prenunciando sem querer alegorias ao novo ano que nascia há poucas horas e que fazia de leitões sua algaravia. O galo cantava o entusiasmo da festa, a plenitude de um ano que chegava com abraços e desejos de boas realizações, plenitude, harmonia, prosperidade e paz. Mesmo morrendo, o galo ajudava a sinfonia do ano novo, na verdade cantando e agradecendo pelo que viveu e não pelo futuro. Era o único entre todos a reverenciar o passado, como que a agradecer às divindades galináceas pelo tanto que viveu e cantou galando e engalanando.
Era o autêntico galo caipira que agora ia para o cadafalso da degustação, seguro pelas asas. Vi e participei de inúmeras dessas cenas e, quando menino com pouco mais de dois anos de idade, quis matar o vizinho, Seo Bilisco, como minha vó Angélica fizera com a galinha que alimentou o resguardo de mainha. O galo ia destecer a vida para alegrar nosso ano novo, detestando a máxima de Bilica Caçuador: “Galo bom é galo morto!”
Não quis presenciar nem a depenação do pescoço e muito menos a facada certeira de onde se esvairia a vida do galo cantador. Aquele galo me conquistou pela voz e pelo gosto, horas depois da missa do galo. Acho que nunca em minha vida comi galináceo tão gostoso e perfeito de condimento. Comi com alegria, lembrando-me do lindo cocoricó que pela manhã embalou sono, sonhos e emoções, almejando ao mundo um feliz ano novo.
Hélverton Baiano é escritor e jornalista.

“Todo Filme É Sobre Cinema”, é a seleta do trabalho autoral de Nei Duclós sobre obras e protagonistas de uma arte voltada para si mesma

Na coletânea “Ter Saudade Era Bom”, Moema Vilela acomoda nas formas breves a densidade criativa das narrativas longas

Cristiano Deveras
Era novamente eu e a estrada. A vastidão do nada à frente e a mesmice do que ficou para trás, os horizontes que atravessavam as janelas do veículo, celerados, assustados e velozes. Não, acho que era eu quem corria demais. O pé direito afundado no acelerador me dava uma vaga suspeita disso.
Tentei lembrar-me o que havia me levado ali: a) um ano dedicado aos estudos e um concurso que no fim das contas, não deu em nada; o que leva invariavelmente a um b), estar tão deslocado no seu próprio eixo, devido ao isolamento para estudo e às profundas meditações transcendentais e sem sentido, que a melhor forma de se recolocar é sair por um tempo e depois voltar, acertadamente ao seu lugar, ou fingindo metodicamente estar.
Então, meu irmão fechou animadamente um negócio com um primo meio trambiqueiro, que mora no extremo norte do Estado. Era para trazer um carro para minha mãe, um Honda Civic 2007, com todos os apetrechos que um carro deste porte deve ter. O transportador seria eu, que iria de ônibus e voltaria guiando. Não me perderei nestes detalhes. Até porque não lembro muito bem de nada depois disso. Fui colocado ou direcionado ao meu assento no banco do ônibus por algum funcionário da viação; como houve um senhor atraso no embarque, passei meu tempo ocioso na lanchonete mais próxima do embarcadouro, cervejas e whiskys falsificados me fazendo companhia. Podem não ser as melhores companhias do mundo, mas te ajudam a passar o tempo. Daí que a ida foi um sono contínuo, uniforme e vomitado. Acredito que ganhei alguma antipatia dos outros passageiros. Talvez tenha tido isso do motorista também, a contar pelo jeito que me empurrou porta afora, quando chegamos na cidade do meu destino. — E que destino! — exclamei.
Sob um calor de no mínimo cento e cinquenta graus, a rua principal esturricava abandonada. Olhei quase no fim dela e vi a garagem de meu primo, ao lado de um agradável botequim, um oásis de calma e beleza rodeado de palmeiras — Melhor pegar o tal carro e me arrancar daqui, ou corria o risco de ganhar raízes profundas.
Cheguei com cara da ressaca encarnada, ainda não havia comido nada, depois de uma noite de solavancos e sonhos entrecortados. Carlos, o parente vendedor de veículos, me deu um abraço mais falso que uma moeda de dois reais:
— Grande Juliano! Como é que tá o cara mais famoso da família Werneck? — Até que vou bem, mas não sou o mais famoso: o primo Alceu é quem tá bombando nas manchetes agora, depois daquele caso de desvio de dinheiro público. — Ah, mas isso é ficha. Em pouco tempo o povo esquece disso, vai por mim. Mas no teu caso, você é um artista, um escritor, daí que não dá para esquecer. — Isso se você escrever. Como não ando escrevendo, dane-se. É este o carro?
Ele fez um sim desconfiado, como uma raposa na porta do galinheiro. Deixei que o desdém do meu olhar demonstrasse que não me animei nada com o escolhido. Olhei em volta e todos os outros automóveis tinham o mesmo ranço estético; vários outros sedans alinhados, juntamente com alguns hatchs econômicos e algumas pick-ups monstruosas. Nenhum conversível, nenhuma motocicleta endiabrada, nenhum escape de duas ou quatro rodas. Foi então que o vi. Parado no canto, me chamando, quase ordenando que o ligasse. Era um carro de sonho. Na verdade, uma lenda. Deixei o escolhido de lado.
— Roda? — O quê, aquele ali? Você deve estar brincando, não é para sua mãe? — É, mas a gente divide o carro. Daí que acho que aquele ali é perfeito. Pega a chave.
Girei o segredo no tambor e senti o motor explodir: aquilo sim, é que era o som verdadeiro de uma engrenagem em movimento, o bom e velho carburador, não aquela coisa insossa da injeção eletrônica. O barulho do motor me impedia de ouvir o que meu primo teimava em gritar ao lado do carro. Ele apontava alguma coisa para dentro do veículo e eu somente acenava a cabeça, sorrindo maquiavelicamente como se entendesse tudo. Por fim, ele se aproximou e disse:
— ... Fora isso, tá tudo beleza. Fiz o motor, o câmbio e a suspensão, o bicho tá tinindo! Mas ainda acho melhor você colocá-lo em uma cegonha ou levá-lo sobre um caminhão. — E perder o melhor da festa? Nem na bala.
Acertei a papelada com Carlos, comi alguma coisa que pedimos diretamente do botequim e comecei o meu retorno para casa. Não via a hora de cortar o espaço com aquela máquina. Atravessei a cidade com controlada ansiedade, louco para chegar na rodovia e começar verdadeiramente a rodar. Quando as rodas de liga leve começaram a desfilar na estrada, vi o brilho do olhar dos fãs de motores chegando a corroer as fortes latarias. Meu ser começou a se integrar com o veículo logo após os oitenta por hora. Senti o volante se tornar uma extensão de minhas mãos e os pedais grudarem-se aos meus pés, o coração correndo em uníssono com o motor e minha força sendo transmitida pela transmissão daquele carro dos sonhos.
Era novamente eu e a estrada. Foi quando percebi o que meu primo tentara desesperadamente me mostrar. O painel de instrumentos, vez por outra perdia o contato, ficando estático, sem fornecer informação nenhuma. Isto me fez gostar ainda mais daquele carro, pois suas falhas em muito se assemelhavam às minhas: sem marcador de RPM, nem ele nem eu sabemos a própria força ou potência; isto geralmente atrapalha muito coisa, seja em um aclive acentuado ou em um relacionamento conturbado; sem o controle do combustível, nunca sabemos até onde teremos gás para podermos ir, seja na estrada ou na vida, mas dane-se, quem perde tempo com isso? Um dia tudo acaba mesmo. A falta do velocímetro me impede de saber a que velocidade estou indo, mas algo dentro de mim me assegura que estou indo no tempo certo, no momento exato, e que em mais ou menos tempo chegarei em algum lugar; já a falta do marcador de temperatura é grave, pois assim como o motor pode fundir devido ao excesso de calor, sua falta na vida nos deixa sem saber se nossas relações estão próximas da ebulição ou em total e completo congelamento.
Todas estas conjecturas ajudam a despertar mais uma companheira de viagem que me acompanha desde muito. Minha velha e conhecida sinusite. A dor que se espalha pela cabeça se assemelha a milhares de pequenas e pontiagudas facas distribuídas pelo crânio, com uma raiz profunda que desce por detrás do olho direito e se esgueira pela orelha, chegando a sussurrar coisas obscenas em meu ouvido; não tomo analgésicos pois eles causam dependência e a pior coisa do mundo é estar dependente (de algo ou de alguém). Por esta razão me apeguei a esta dor como um náufrago a uma tábua.
Mas acho que me enganei. A pior coisa do mundo não é a dependência, mas sim viver frustrado. É pior que morrer duas vezes; uma porque se sabe que ainda vai morrer, outra, porque realmente todo o sentido da vida se esvai com aquela imagem de quem você deveria ter sido. Neste exato momento vejo um eu bem sucedido sentado no banco detrás, rindo amigavelmente para mim, tentando me passar alguma confiança. Foda-se.
Enquanto devoro quilômetros rodas abaixo, com o pensamento solto e livre, tentando decifrar o código secreto da vida, ao lado sempre aparece um ou outro apressadinho tentando apostar corrida comigo; ao adentrar um carro poderoso (ou se destacar de qualquer outra maneira) você sempre verá as pessoas (pelo menos as pessoas mais idiotas) te chamarem para um racha, uma aposta ou uma desafio qualquer. Ao não aceitar, estarão todos te avaliando por questões de valentia ou medo, mas ninguém (salvo raras exceções) perceberá que não procedeu daquela forma justamente para não fazer aquilo que as pessoas esperem que você faça.
Acredito que exatamente por isso que trouxe este maravilhoso Maverick V8, e não o tal Honda... Apesar de meu irmão quase ter enfartado, fico sempre tocado ao saber que minha mãe é, aos quase sessenta anos de idade, a feliz proprietária de um autêntico muscle car. E sinto-me como um garotinho, toda vez que Mamãe, dirigindo seu V-oitão pelas ruas, vai me buscar em mais um sarau de poesia, enquanto vou bebericando meu Jack Daniel´s madrugada afora... A lei seca pode ter me privado de um dos meus passatempos prediletos (direção ébria pós encontro literário), mas ao menos serviu para melhorar meu relacionamento familiar.
Cristiano Deveras é escritor.

A introdução da máquina causou mudanças no modo como as pessoas viviam. Toda uma infraestrutura tecnológica começou a crescer ao redor delas. Isso fez com que alguns historiadores e críticos de arte vissem que não eram só os tempos que estavam mudando em decorrência da tecnologia, mas a nossa própria consciência

[caption id="attachment_22517" align="alignright" width="620"] M. File[/caption]
Eberth Vêncio
Especial para o Jornal Opção
Nem sei por onde começar. Fazer um recall da Big Bang. Disputar o céu com os pássaros usando apenas as minhas asas de cobra. Morrer pela boca num beijo bem velhinho dormindo num dia de domingo e despertar no paraíso com a cabeça repousada no colo da vovó com Deus uma mulher (que surpresa incrível!) a coar o café. Enterrar pessoas só de brincadeirinha única e exclusivamente na areia. Construir castelos na praia sem ter medo da maré.
Voar na maionese: cantar “Blackbird” em dueto com Paul McCartney. Ser o quinto beatle. Caminhar pela zona do baixo meretrício com a autoestima em alta. Apaixonar-me pela prostituta tímida meiga bonita e tirá-la daquele lugar. Casar uma aposta com véu e grinalda. Roubar flores no jardim da minha vizinha rabugenta onde hoje levantam duas torres monumentais com oito apartamentos por andar três vagas na garagem e nenhuma rosa para ser cobiçada. Ser reconhecido como um poeta.
Ficar famoso o suficiente para que todos prestem atenção quando eu disser em rede nacional “Eu preciso de um pouco mais de respeito”. Então pedir que me esqueçam. Me mandar do planeta num foguete para a lua. Flutuar com a consciência tranquila na gravidade zero. Engravidar um grande amor no banco de couro de um Maverick quatro cilindros ao som de “Born to be wild”. Rir de tudo que não tiver a menor graça. Plantar bananeira no meio da rua e semáforos no pomar.
Almoçar em casa todo santo dia. Ir a pé pro trabalho. Acordar no meio de um enorme problema e constatar que tudo não passava de um pesadelo. Ouvir na cama os segredos picantes que os seus grandes lábios têm pra me contar. Morar em casa própria tipo rancho à beira de um lago e ter um monte de filhos com uma pá mecânica. Lavar a minha égua no “Poema Sujo”. Cuspir com classe e estilo do alto da Torre Eiffel. Gritar na Wall Street que dinheiro não traz felicidade. Cavar um túnel até fugir da prisão chegar ao Japão ou fazer calos nas mãos o que acontecer primeiro. Matar a curiosidade: fazer sexo com uma japonesa.
Desvendar os segredos da maçonaria. Descobrir a cura para o câncer da corrupção. Decorar a última parte do Hino Nacional. Beber leite misturado com manga e não enlouquecer. Passar no vestibular da vida. Ter uma árvore. Plantar um livro. Escrever um filho. Investir num consórcio, operar o períneo, fazer uma lipo, levantar os peitinhos e de quebra entender as mulheres. Juntar meu primeiro milhão de amigos. Ganhar na loteria dos pênaltis. Deitar e rolar com você para que os corpos não criem limo.
Acabar com a violência a miséria e as fronteiras entre os países para que o mundo seja finalmente um único quintal. Curar-me do sarcasmo e do cinismo. Sonhar sonhos mais factíveis. Amadurecer o suficiente mas sem cair de maduro. Crescer tornar-me um adulto resolvido e nunca mais querer ser alguém nessa vida além de eu mesmo.
Eberth Vêncio é escritor e médico.
via Revista BulaCom o nome já gravado na história do cinema por uma das trilogias mais tocantes já feitas (“Antes do Amanhecer”, “Antes do Pôr-do-Sol”, “Antes da Meia-Noite”), Richard Linklater vai além em “Boyhood” e filma a vida (dos 7 aos 18 anos) num dos melhores momentos do cinema neste século

Musicista talentoso, o italiano Francesco Manfredini dedicou-se intensamente à música sacra, primeiro como violinista, depois como compositor. Escreveu oratórios e sinfonias, mas se notabilizou pela sua contribuição à música de câmara e, em particular, ao concerto grosso, modelo composicional muito prestigiado na era barroca

Nos 27 contos que enfeixam “Te Pego lá Fora”, distribuídos em seções como se fossem as estações do ano, Rodrigo Ciríaco realiza a gênese de uma guerra sem vencedores

“Cadernos de Sizenando” vem de longe, com anotações tomadas no dia a dia, de um tempo que não pede lamentações, mas o fluir da mais doce alegria, contida em pequenos lembretes, cartas, e-mails, milhares de textos, blogs e grupos de amigos

Graça Taguti
Especial para o Jornal Opção
Está na hora de colocar em pratos limpos tudo o que a gente guarda e esconde em nossa cozinha mental. Fobia é medo, terror, perna bamba, paralisia muscular repentina. E por aí segue lista da diversificada sintomatologia. Pra que negar. Eu sofro de mimfobia e morro de medo dos outros que moram dentro da minha cabeça e cutucam minhas ações e decisões, presentes ou futuras. E você?
Tem pesadelos cinzentos? Sombras que o perseguem pelas calçadas da vida, vozes que o atormentam e ameaçam dizendo: Faça isso ou Não Faça — bem no fundo do seu ouvido direito que, de tanta perseguição e assédio, começa a ficar torto.
Sessão franqueza. Quantos diabos moram em você? A pergunta é exatamente essa. Não adianta se benzer nem tentar se esquivar. Não dá pra mentir agora, viu, e eu confesso já ter me submetido a vários exorcismos e nenhum funcionou.
Papo com terapeuta, lamúrias com amigos, bebedeiras, sexo a esmo, Rivotril aos montes. Selfies compulsivos, esbanjando hiperfelicidade nas redes sociais e disseminando inveja aos borbotões. Nada deu certo. Tenho que estender a mão à palmatória, como diria a minha avó. Eu abrigo uma legião de demônios que se intromete no meu olhar, sorrisos, suspiros, discursos perigosos ou maquiavélicos. Xô. Vade-retro belzebu.
É o Exu dos adiamentos. A hiena das falsidades. As serpentes das manipulações. Os escorpiões dos ataques sinuosos e repentinos. O camaleão dos disfarces. O urubu dos vaticínios. O crocodilo das crocodilagens e ignoro quantos mais se revezam dia e noite, farejando minha alma e alternando ronda sobre minhas vontades ou desvontades.
Nessas horas, saio igual louco de pedra, quebrando tudo que é espelho, esmagando tudo que é réstia de alho, destroçando tudo que é rosário, feito vampiro estressadíssimo do século 21. E sabe por que eu tenho medo? Porque eu já me perdi de mim faz tempo, desde que passei a funcionar em dois universos. O virtual e o chamado Real, dentro e fora das telas de celulares e gadgets aparentados.
A gente hoje vive cercada de preservativos sociais digitais, caras e bocas, avatares, felicidades de mentirinha, junk-pessoas, fast-sexo, sem tempo pra gozar ou respirar. Se eu pudesse, confesso, durante o sono, dava um jeito de escapar do meu umbigo, das minhas egocêntricas preocupações e fugia de mim rapidinho e de soslaio. No dia seguinte, minha empregada iria me encontrar esvaziado, tipo um saco, misturado ao edredom pra ser jogado anonimamente na máquina de lavar. Uma ex-pessoa, compreende?
Tenho medo da minha honestidade. Da minha esperteza. Da minha grandeza e mediocridade simultâneas. Da minha arrogância e humildade. Das minha terna e explícita candura e credibilidade. Das desconfianças e cismas frequentes. De virar uma bomba relógio e destroçar a geografia à minha volta. De morrer antes de me transformar em pomba celestial, com asas lindas de um azul iridescente.
Tenho medo de comer demais e estourar que nem balão de festa infantil. Agarrar-me em uma jaqueira e me casar com ela. Apaixonar-me por um urso e me mudar lá para os confins de uma gelada floresta canadense. Ficar viciada em salmão, naturalmente.
Morro de fobia de lugar cheio. De pessoas previsíveis. De papos desgastados. Falta de imaginação e tesão. Medo de quem não arrisca nada pra sair da sua poltrona. De quem se aventura demais e planta um camping na ponta de um despenhadeiro. Dos ativistas de sofá.
Fobia da compulsão de mandar esse governo espúrio, definitivamente pra puta que o pariu e fazer isso com atitude e coragem. De armas em punho, ladeada por Lampião, Marighela, Lamarca e Che Guevara.
Convidar o amado Fernando Gabeira pra me ajudar nesta empreitada. E chegar por fim à esplanada dos ministérios, cantando músicas de Ney Matogrosso, bem da época dos Secos e Molhados.
Ahhh… Eu tenho medo. E você, você tem medo de quê? Arrepio-me de ansiedade quando imagino embarcar numa expedição dos Médicos sem Fronteiras e me perder nesse mundão carente, deixando largos abraços e água abençoada com muito amor, cobrindo todas as misérias que avisto.
Medo de ser uma pessoa melhor. Ou de piorar de vez, se me entregar aos cantos venenosos das sereias. Pavor de amar demais ou gostar de menos e, imersa na covardia, colocar cadeado nos sentimentos e nos beijos que ainda não nasceram.
Mas nisso tudo, sabe o que é o melhor de sofrer de Mimfobia? A possibilidade de correr atrás da competência. Semear novas atitudes. Abrir os olhos em meio a tempestades de areia. Esticar as antenas, perceber o faro de raposas que passeiam sobre nosso corpo e, então, ganhar consciência dessas paranoias todas.
Penso que é desse jeito que a gente consegue se candidatar ao posto de maestro vitalício da nossa orquestra de confusões, demandas e ideais.
E aí, quem sabe, num gesto de extrema ousadia, a gente até decida invocar aos céus o espírito de Beethoven para compor uma obra virginal: a 10ª sinfonia. Uma sinfonia cujo último movimento expresse uma belíssima ode ao renascimento humano. *Título inspirado em frase de Millôr Fernandes.
Graça Taguti é jornalista e escritora.
via Revista Bula