O cinema se enxerga
06 dezembro 2014 às 13h52
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“Todo Filme É Sobre Cinema”, é a seleta do trabalho autoral de Nei Duclós sobre obras e protagonistas de uma arte voltada para si mesma
Carlos Willian leite
Foucault partiu de Borges para contrariar “as familiaridades do pensamento” no livro “As Palavras e as Coisas”. Seu texto sobre o quadro “Las Meninas”, de Velásquez, e as joias de Roland Barthes em “Metamorfoses”, impulsionam os ensaios de “Todo Filme é Sobre Cinema” (Editora Unisinos, Coleção Aldus, 136 pgs, 2014), de Nei Duclós, que reúne a ponta de um iceberg: o trabalho quase diário de abordagens sobre o cinema ao longo de mais de dez anos. O livro é um síntese dos vários textos que pontuam as redes sociais desde 2003, dos quais muitos já foram publicados aqui no Jornal Opção.
Trata-se de uma ousadia autoral. Cansado da mesmice das resenhas cinematográficas, que costumam oscilar entre as curiosidades e os interesses do marketing, de um lado, e a pompa seletiva dos exageros retóricos cevados em academia, de outro, o escritor e jornalista decidiu encontrar sua própria forma de enxergar o cinema. Apoiado em sua formação escolar (cursou História pela USP), que o ensinou a ler um documento pelo que mostra e não pelo que imaginamos, e a vivência (vê filmes desde os cinco anos de idade — atualmente tem 66), Duclós encontrou um tipo ideal para decifrar as obras da sétima arte: a de que ela é voltada para si mesma e se basta.
Como diz Jean-Luc Godard na epígrafe do livro: “Como a estrela do mar que se abre e fecha , os filmes mais belos sabem como oferecer e esconder o segredo de um mundo em que eles são os únicos e fascinantes depositários de reflexão. A verdade é a sua verdade . Eles se carregam profundamente dentro deles mesmo, e ainda assim a tela rasga cada plano para semear ao vento. Dizer que são os mais belos filmes , diz tudo. Por quê? Porque é assim. E esse raciocínio infantil, só o cinema sozinho pode dar ao luxo de usá-lo sem sentir vergonha. Por quê? Porque é o cinema . E o cinema está contido em si próprio”.
Ou o próprio Nei Duclós em ensaio publicado no Jornal Opção em 2012: “Toda vez que a câmara aponta para o alvo obedecendo a um roteiro, uma edição, a uma narrativa, está enfocando a arte em si mesma, no caso, o cinema. Pode ser filme de qualquer gênero, dimensão ou época, sempre haverá esse foco direcionado. Não para um suposto conteúdo, como drama, memória, guerra ou poesia, mas sempre o cinema cumprindo sua função. Pois não se trata de impérios, cidades, heróis ou vilões, mas a maneira como foi criada a solução audiovisual para chegar ao espectador”.
É um viés teórico passível de crítica, mas como todo tipo ideal, ajuda a decifrar o objeto, que sempre é inacessível em sua totalidade. Podemos nos aproximar dele na medida em que encontramos pistas de sua coerência. Longe do lugar comum, o cinema que se vê é a chave para entendermos o trabalho de cineastas, roteiristas e intérpretes.
Como é dito no início do livro, “todo filme tem autoconsciência sobre a arte a qual pertence e volta-se para ela de maneira recorrente e obsessiva. E a linguagem que usa é sempre identificável como pertencente a essa arte, jamais se confundindo com as representações sugeridas em cada fragmento. Há, portanto, uma coerência confirmada que cruza o tempo, apesar da enorme diversidade de autores e obras. Esse enfoque afasta este lançamento dos guias cinematográficos ou das resenhas tradicionais, que ficam a reboque dos argumentos e roteiros. Aqui o texto manda e o filme, com ou sem juízo, obedece. Porque não se trata de cinema, mas de palavra. Isto não é um festival, é apenas a eleição autoral de filmes que conquistaram o direito de serem abordados fora dos parâmetros conhecidos, apesar de o autor ter se formado na leitura decana dos especialistas mais importantes. É um exercício de liberdade, que usa os recursos da literatura e do ensaio”.
O jornalista Wagner Carelli, em crítica publicada no blog do autor, mostrou alguns destaques do livro, como “a abundância de temas do cinema e de modos de vê-lo; o tratamento narrativo, mais que crítico, desses temas, que obedece a todas as ‘Seis Propostas Para o Próximo Milênio’ (este milênio, já), de Italo Calvino: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e a sexta, que ele não chegou a desenvolver, consistência (aliás, esses teus ensaios críticos estão para o ensaísmo como, por exemplo, ‘Cidades Invisíveis’ está para a ficção); as caixinhas de texto-jade, claras e brilhantes, todas do mesmo e preciso tamanho, todas igualmente lapidadas com paixão cuidadosa, em que vêm embalados os ensaios críticos, e a fidelidade rigorosa, sempre observada, com que você se atém ao teu coração ao construir essas caixinhas, que não quer ver transformadas em bibelôs, mas nas respostas únicas que só podem dar o coração de cada um ao verter de um filme sobre ele”.
Este é o primeiro livro de ensaios de Nei Duclós, que começou sua carreira literária com a poesia e depois partiu para o romance, o conto e a crônica. Com textos publicados nos mais importantes veículos do país, como “Veja”, “IstoÉ”, “Folha de S. Paulo”, “Estado de S. Paulo”, além de várias incursões na imprensa especializada e alternativa desde os anos 1970, o jornalista e escritor se insere entre os inconformados com os rumos do jornalismo brasileiro e por isso usa as mídias digitais para expressar sua diversidade de abordagens. Trata-se de um autor onívoro, que trafega em muitos gêneros e tem, entre seus 17 livros publicados, impressos e e-books, uma amplidão autoral que exige atenção e análise. A seguir, alguns textos do livro.
Em busca das origens
Todo filme é sobre cinema. “Um Longo Caminho (2005), dirigido por Zhang Yimou e com Ken Takakura e um elenco de atores amadores, não foge à regra. A morte, nessa obra, é representada pela ausência da indústria audiovisual na vida dos personagens. O velho, que depois de perder a mulher se recolhe a uma aldeia de pescadores, não tem sequer televisão. Sua tela, a natureza, que atrai sua atenção durante horas, é a extrema solidão de um mundo sem cinema. Ele só existe porque está sendo filmado por Yimou, cineasta deslumbrante de vários sucessos.
O personagem Takata, que ao se recolher exclui o filho do seu convívio, quer resgatar essa relação familiar tarde demais. O filho, que sofre de doença terminal, nem aparece, portanto está praticamente morto. Subsiste sua memória, um vídeo sobre sua paixão pelas óperas chinesas. E estas, recolhidas numa aldeia distante e no presídio, só existirão no momento em que forem filmadas.
A história é sobre o longo percurso do protagonista para conseguir filmar uma ópera prometida pelo cantor. Como ele conseguirá seu objetivo? Por meio do cinema. Só quando ele grava um depoimento para o diretor da prisão, sobre sua necessidade de focar a ópera com determinado intérprete, que está preso, é que as portas se abrem. Mas a operação se complica. O cantor, por sua vez, precisa ver o filho, de cinco anos, que nem chegou a conhecer.
Takata então vai até a aldeia e fotografa o menino, para mostrar ao pai. O velho precisava da ópera para resgatar uma relação perdida. Como acontece o desenlace (a doença terminal enfim vence a batalha) no meio da viagem, seu intento perde o sentido. O que resta é apenas mostrar as fotos do garoto para o pai presidiário.
A responsabilidade de filmar escapa assim do indivíduo e é empalmada pela coletividade, pois agora todos os que se envolveram com a história do velho querem que ele consuma sua intenção. Ele cede diante das pressões e o que vemos então é a ópera filmada. Mas filmada por quem? Pelo protagonista, sim, mas principalmente por Yimou. O cineasta assume o papel da coletividade e faz do seu cinema uma arte coletiva.
Yimou busca as origens do cinema, seu sentido. Para que fazer filmes? Para que a coletividade se enxergue e assim não morra. Para que serve um cineasta? Para instrumentar a sociedade com essa arte completa, o cinema, e assim garantir a identidade, a herança. Já que a relação entre pai e filho se esgarçou, já que a família se perdeu, já que não somos mais nações, mas amontoados de gente em luta pela sobrevivência a qualquer custo, resta ao cinema recuperar esse convívio e isso só se consegue por meio da imagem e do som, por meio da sétima arte. (Nei Duclós)
Hatari, a narrativa de cristal
Implico com a crítica de cinema que tenta devorar a obra de arte como se fosse um chocolate no armário, um bibelô de açúcar na estante, um objeto de consumo pessoal. Não é. Costuma ser tratada como tal. Chega-se até a enfeitá-la para adquirir mais valor, especialmente o intelectual, a pose de sabedoria em relação ao que foi feito com maestria. O que conta não é a posse sobre qualquer objeto que contenha a obra, a exibição de conhecimentos eruditos ou rasteiros, mas o resgate feito pela memória e a criação.
Um filme nos acompanha como um anjo da guarda, e se transforma em algo completamente diverso do que vemos escrito sobre ele. Sorte que vivemos na época do Google, em que tudo pode ser pesquisado. É fácil saber o que disseram François Truffaut ou Rogério Sganzerla sobre “Hatari!”, de Howard Hawks. Eu prefiro vê-lo do meu jeito. Sua estrutura narrativa pode ser comparada a um cristal dividido em gomos luminosos, que confluem para o mesmo ponto. Cada gomo é um capítulo da aventura narrada e o ponto comum (e final) é o amor que se concretiza entre seres desenraizados.
As palavras não trazem o filme de volta, nem fazem justiça ao que ele é (a obra como foi concebida e realizada). Podemos apenas lembrá-lo com nosso verbo escasso, depois de vê-lo, sem cansar, mais de um milhão de vezes. A captura de animais selvagens na África é uma frase que nada diz sobre “Hatari!”. É algo diverso. É a composição musical de uma saga, em que o alvo (o animal que precisa ser agarrado para o zoológico) impõe o ritmo e o perfil da narrativa. Assim, o filme torna-se veloz quando os caçadores tentam pegar o felino, perigoso quando o jipe provoca o rinoceronte, cômico quando se trata de enredar dezenas de macacos com a ajuda de um especialista em fogos de artifício (Red Buttons, como Pockets, antológico). Cada captura (o gomo do cristal) é um primor de estratégia. E as relações humanas (um grupo de homens que vê-se surpreendido pela fotógrafa vinda de longe) rolam num acúmulo permanente de algo que não tem lugar naquele safári, os sentimentos (há apenas camaradagem, inevitável quando qualquer grupo enfrenta o perigo).
O amor se manifesta sem ser convocado e usa a chantagem para se consumar. A sequência final, em que todos os animais se soltam, pode ser vista como a representação dessa manada de emoções guardadas dentro dos personagens, que diante da perda desandam como avalanche. (Nei Duclós)
War Horse: a memória enxerga
A cena mais importante do filme de Steven Spielberg, “War Horse” (2011), é quando o soldado, de olhos vendados por ter se ferido com o gás da I Grande Guerra, identifica seu cavalo por alguns sinais particulares, que ele tem de memória. Esses sinais — quatro patas brancas e uma mancha da mesma cor na testa — estavam ocultos pela lama e o sangue, já que o animal fora resgatado de uma armadilha de arame farpado no território de onde ninguém saía vivo, o que fica entre duas trincheiras inimigas.
A memória do soldado provisoriamente cego (sem o sentido fundamental do cinema, portanto) salva o cavalo do extermínio, pois seria sacrificado por estar com a perna ferida com ameaça de tétano. Ter encontrado quem o criou no interior da América sensibiliza os matadores, a equipe médica no front. A memória substitui os olhos: esse é o filme que passa dentro de nós. É o que conta.
Por sua vez, o filme é uma antologia memorável do cinema. Nele estão representados obras inesquecíveis de grandes cineastas, desde David Lean — o paradigma de Spielberg desde sua adolescência, quando viu “Lawrence da Arábia” e decidiu ser cineasta — passando por Tony Richardson que filmou em 1968 “A Carga da Brigada Ligeira” (episódio que é uma das âncoras de “War Horse”) até chegar ao Chaplin de “Ombro, Armas”. E há o desfecho fundado no paradigma das imagens borradas do crepúsculo de “E o Vento Levou”, de Victor Fleming e na cena da volta à casa, totalmente fundada em “The Searchers”, de John Ford.
Steven não apenas cita, incorpora. Encarna a linhagem maior da cultura cinematográfica e nos traz à tona a importância da memória como fundamento de ideias e princípios, como paz, honra, nação, família e glória. (Nei Duclós)
Glauber, a profecia no deserto
Glauber Rocha é o tempo presente amaldiçoado pela história. Sua pregação é feita no deserto (rural em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964, urbano em “Terra em Transe”, de 1967) porque o deserto, pela ausência, destaca o humano entregue ao horror das contradições. Nele, a palavra incorpora o futuro quando é murmurada pela fúria, e elimina a esperança para repor a verdade. Não há, no cinema mundial, nada que se compare ao maremoto dessa criação sem limites, que nos abate em ondas toda vez que vemos a imagens que produziu, como se o delírio fosse nossa única realidade e a guerra nosso destino. Glauber assume o que há de pior na cordialidade brasileira, esse comportamento ciclotímico ditado pelo coração. Ele colocou a vontade no cérebro cozinhado pelo fogo e nos encara com o gênio do seu carisma.
Glauber nos tortura com o longo assassinato de uma criança nas mãos do beato negro e nos coloca sob a capa horripilante de Antonio das Mortes. Qual a profecia desse cinema? A de que estamos condenados pelo que somos e morreremos na guerra que nosso ódio e nossa vergonha produziu. Glauber nos desperta pelo susto e corta nossas cabeças. Seu inferno é o Brasil, país que tenta decifrar filmando seu avesso. Estávamos ainda embalados pelas alegres comédias da Atlântida quando o sol tomou conta da tela e havia sangue nela. Os tiros fajutos do faroeste americano sumiram quando Glauber engatilhou o rifle de sua saga. Jamais haveria Sam Peckinpah com seus massacres em câmara lenta se antes Glauber não tivesse destruído as soluções bem comportadas da violência.
Glauber bebeu em fontes diversas para compor sua trama. Reproduziu os planos das procissões de “A Fonte da Donzela”, de Ingmar Bergman, e do “La Strada”, de Fellini. Bebeu em “A Árvore dos Enforcados”, de Delmer Daves. Nesse filme, Glauber retirou o visual do seu Antonio das Mortes (a capa até o chão, o chapéu, a arma), inspirado no mendigo encarnado por George C. Scott (visual que foi chupado até o osso, não de Daves, mas de Glauber, por Sergio Leone). Glauber tinha bebido em “Terra Trema”, de Visconti para filmar seu “Barravento”.
Foi morto pela indiferença dos contemporâneos, pois tudo Glauber poderia aguentar, menos a espera ansiosa dos outros pela sua morte prematura. Então foi-se, carregado pela sua mensagem. (Nei Duclós)