A mais atualizada das biografias de Pessoa
13 dezembro 2014 às 10h12
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Rigorosamente fundamentada em documentação e no arquivo da família, “La Vita Plurale di Fernando Pessoa”, do espanhol Ángel Crespo, em nova edição italiana com tradução e revisão do crítico Brunello Natale De Cusatis, representa a biografia pessoana mais completa e atualizada já posta em circulação
Adelto Gonçalves
Especial para o Jornal Opção
A britânica Hermione Lee (1948), professora de Literatura Inglesa na Universidade de Oxford e integrante da British Academy e da Royal Society of Literature, em seu livro “Biography: A Very Short Introduction” (Oxford University, 2009), diz que não há regras para a biografia, já que esta é uma forma incerta, contraditória e variável. Para ela, “talvez a única regra que se mantém é que não existe essa coisa que se chama biografia definitiva”.
Por aqui, não aceitamos com facilidade essa observação talvez porque não sejamos tão rigorosos como os britânicos e usamos a definição “biografia definitiva” ou “biografia completa” mais no sentido hiperbólico, para dar ao leitor a sensação de que, dificilmente, alguém poderá ir tão longe numa pesquisa sobre a vida e a obra de um autor. Mas, obviamente, há sempre a possibilidade de que um investigador venha a superar outro, encontrando documentação e vestígios de um passado até então encoberto.
No caso do poeta Fernando Pessoa (1888-1935), há nas bibliotecas algumas grandes biografias, começando pela pioneira que João Gaspar Simões (1903-1987) publicou em 1950, “Vida e Obra de Fernando Pessoa — História duma Geração”, Vol. I: “Infância e Adolescência”; Vol. II: “Maturidade e Morte”, passando pelos estudos dedicados ao poeta pelo investigador norte-americano radicado em Portugal Richard Zenith (1956), até a mais recente feita pelo advogado pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho (1948), “Fernando Pessoa: Uma Quase Autobiografia” (Rio de Janeiro, Editora Record, 2011), que tem sido muito contestada por outros estudiosos pessoanos.
Entre essas grandes biografias, não se pode deixar de incluir “La Vida Plural de Fernando Pessoa”, do crítico e poeta espanhol Ángel Crespo (1926-1995), que veio à luz em 1988 pela Editorial Seix Barral, de Barcelona, com tradução para o português de José Viale Moutinho que foi publicada em 1990 pela Bertrand Editora. Na Itália, em 1997, saiu uma primeira edição italiana deste livro, traduzido pelo crítico Brunello Natale De Cusatis (1950) e publicado por Antonio Pellicani Editore, de Roma. Em setembro de 2014, saiu pela Edizioni Bietti, de Milão, uma nova tradução, editada e anotada também por De Cusatis.
Trata-se de uma pesquisa aprofundada, que se baseia, especialmente a propósito da vida pessoal do poeta, não só na biografia-gênese de João Gaspar Simões como em: “Fernando Pessoa, Notas a Uma Biografia Romanceada”, de Eduardo Freitas da Costa (Lisboa, Guimarães, 1951); “Fernando Pessoa” (Lisboa, Arcádia, 1960) e “Fernando Pessoa, Vida, Personalidade e Gênio” (Lisboa, Arcádia, 1981), ambos de António Quadros; “Fernando Pessoa na África do Sul”, de Alexandrino Severino (Lisboa, Dom Quixote, 1983); “Os Dois Exílios”, de H. D. Jennings (Porto, Centro de Estudos Pessoanos, 1984); e “Fernando Pessoa, Empregado de Escritório”, de João Rui de Sousa (Lisboa, Sitese, 1985); além de estudos críticos e cartas pessoais cujas citações ocupam sete páginas na seção de nota bibliográfica.
Dessa maneira, todos os grandes (e conhecidos) episódios da vida de Pessoa estão nesta biografia, como a sua infância em Lisboa e os anos na África do Sul (1896-1905), tão bem levantados pelo scholar português Alexandrino Severino (1931-1993), o retorno a Lisboa e sua participação no grupo da revista “Orpheu”, o suicídio do poeta-irmão Mario de Sá-Carneiro (1890-1916), a gênese e a profusão dos heterônimos, a revista “Presença”, a defesa da maçonaria, os poemas em inglês, o “Livro do Desassossego”, de Bernardo Soares, os escritos esotéricos e outros.
Como observa De Cusatis na apresentação que escreveu para a primeira edição italiana deste livro, a biografia preparada por João Gaspar Simões, publicada apenas 15 anos depois da morte do poeta, ainda que monumental (com mais de 700 páginas), carecia de muita pesquisa, até porque, em grande parte, a documentação referente a Pessoa não estava disponível.
Baseado numa interpretação freudiana da personalidade de Pessoa, o trabalho de Gaspar Simões foi acusado injustamente por Eduardo Freitas da Costa, primo em segundo grau de Pessoa, de constituir uma “biografia romanceada” porque fundamentada em “lendas” e “mitos”. Como sempre teve oportunidade de observar De Cusatis — desta vez em palestra proferida durante a Feira do Livro de Porto Alegre, no começo de novembro de 2014 —, esta de Freitas da Costa teria sido uma acusação muito pesada, recusada firmemente por Gaspar Simões por ocasião da publicação da segunda edição da biografia, em 1971. Para De Cusatis, a obra de Gaspar Simões é ainda um texto fundamental e imprescindível a quem tenta se aventurar no universo pessoano.
Escrito 38 anos depois de publicado o trabalho de Gaspar Simões, o texto de Crespo, além de rigorosamente fundamentado em documentação e, em boa parte, no arquivo da família de Pessoa sob guarda a Biblioteca Nacional de Lisboa desde 1979, é de fácil leitura, apesar da complexidade do personagem biografado, como assinala De Cusatis. É de se destacar, no entanto, que Crespo não escreveu uma biografia comercial, de olho em grande público, como certamente o faria se fosse um biógrafo brasileiro, quase sempre pressionado pela conhecida ganância dos editores locais.
“La Vida Plural de Fernando Pessoa” — como observou De Cusatis sempre por ocasião de sua palestra proferida durante a Feira do Livro de Porto Alegre deste ano — “talvez seja, ainda hoje, a biografia pessoana que mais se afasta da maestra (ou seja, da biografia escrita por Gaspar Simões), não só porque Crespo fez de modo a afastar de si a mínima suspeita de extemporaneidade interpretativa, fugindo à chamada historiografia romântica (e portanto, no caso especifico, às “lendas” e aos “mitos” de que falara Freitas da Costa), mas também porque se apoiou em alguns importantes contributos, documentais e críticos, que tinham aparecido de recente”.
Para De Cusatis, tal conduta permitiu a Crespo optar por “uma nova impostação, que apontava a indagar, numa visão insólita, quer alguns dos aspectos mais controversos da vida e da obra de Pessoa, como os que se relacionam com o seu esoterismo e a sua (presumível) homossexualidade, quer a traçar dele — de qualquer forma desmistificando — um percurso vital mais real, mais humano, analisado à luz tanto dos seus medos, indecisões e fraquezas como das suas frequentações, de pessoas e ambientes, sobretudo aquele referente ao seu trabalho”.
Escrita há mais de um quarto de século, obviamente, a biografia feita por Crespo, segundo De Cusatis, necessitava de uma atualização. “Quando falo de atualização, refiro-me a algumas distrações e a várias imprecisões em que caiu Ángel Crespo: mas imprecisões que no seu caso, contrariamente a outros biógrafos e críticos pessoanos, antes e depois dele, são quase todas justificadas, porque devidas ao seu desconhecimento de inéditos importantes do biografado, vindos à luz só anos depois da publicação da sua biografia pessoana e das cartas de Ofélia Queiroz (1900-1991) a Fernando Pessoa, publicadas em 1996, portanto, à distância de oito anos da publicação de “La Vida Plural de Fernando Pessoa” e um ano depois da morte do seu autor”, diz.
Em outras palavras: escrita e publicada em 1988, ou seja, há 26 anos e, portanto, “desatualizada” — considerando a natureza in progress quer da obra de Fernando Pessoa quer das notícias sobre a vida dele —, a biografia elaborada por Crespo teve de ser revista e reescrita em várias partes por De Cusatis. Para fazê-lo, sem deturpar ou “mexer” no texto original de Crespo, tanto quanto isso seja possível em se tratando de uma tradução, De Cusatis teve de produzir para esta segunda edição em italiano um vastíssimo corpus completamente seu, ou seja: 662 notas postas no fim de cada um dos 22 capítulos, duas apresentações (a da primeira edição e a da segunda) e uma nova bibliografia com mais de 50 títulos e atualizada a 31 de dezembro de 2013, além de um índice por nomes. No total, isso equivale a 200 páginas, mais ou menos, do volume todo. Ou seja, é praticamente um livro dentro de outro livro.
Por todo esse trabalho de dimensões ciclópicas de seu tradutor e editor, esta reedição italiana de “La Vida Plural de Fernando Pessoa”, de Ángel Crespo, sem sombra de dúvida, representa atualmente a biografia pessoana mais completa e atualizada já posta em circulação.
Angel Crespo y Perez de Madrid foi professor da Universidade de Porto Rico e atuou como conferencista na América e na Europa. Tradutor em língua espanhola de Fernando Pessoa, Dante Alighieri (1265-1321) e Petrarca (1304-1374), participou da fundação de várias revistas literárias, inclusive a “Revista de Cultura Brasileña”, patrocinada pela Embaixada brasileira em Madri, na qual contou com o apoio do poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto (1920-1999).
Ensaísta, destacou-se também como poeta, especialmente da chamada Geração de 50 da poesia espanhola. Traduziu também poetas brasileiros como João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira (1886-1968) e portugueses como Eugénio de Andrade (1923-2005) e António Osório (1933). Muitas de suas traduções estão reunidas em “Antología de La Nueva Poesía Portuguesa” (Madri, Rialp, 1961). Traduziu ainda os romances “Grande Sertão: Veredas” (1967), do mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967), e “O Que Diz Molero” (1977), do lisboeta Dinis Machado (1930-2008).
Brunello Natale De Cusatis, professor de Literaturas Portuguesa e Brasileira e de Língua Portuguesa da Universidade de Perugia, é articulista com trabalhos publicados em jornais e revistas italianos e no exterior. Estudioso de Fernando Pessoa, publicou em Portugal o ensaio “Esoterismo, Mitogenia e Realismo Político em Fernando Pessoa” (Porto, Caixotim Edições, 2005). Organizou o livro “Studi su Fernando Pessoa” (Perugia, Edizioni dell’Urogallo, 2010), que reúne onze ensaios de especialistas no poeta português, inclusive deste articulista.
Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo.