Com o nome já gravado na história do cinema por uma das trilogias mais tocantes já feitas (“Antes do Amanhecer”, “Antes do Pôr-do-Sol”, “Antes da Meia-Noite”), Richard Linklater vai além em “Boyhood” e filma a vida (dos 7 aos 18 anos) num dos melhores momentos do cinema neste século

Foto: Universal Pictures
Ellar Coltrane, em cena de “Boyhood — Da Infância à Juventude”, dirigido por Richard Linklater | Foto: Universal Pictures

 

Marcelo Costa

É preciso ser muito maluco para planejar uma história que deveria ser filmada durante 12 anos. Além de maluquice, é preciso ser muito organizado a ponto de manter uma linha de raciocínio que não se perca durante os mais de 4.200 dias que irão separar o início das filmagens do último take. E, ainda, é preciso se cercar de um grupo de atores malucos que irá abraçar com você essa ideia, separando alguns dias de todo santo ano para que você filme aquela história danada que você tem na cabeça. O diretor norte-americano Richard Linklater conseguiu tudo isso.

Na verdade, Richard Linklater conseguiu “um pouco mais” com seu novo filme: “Boyhood — Da Infância à Juventude” (2014), é, sem tirar nem por, uma obra-prima. A forma, claro, chama a atenção: o cineasta começou as filmagens em 2002 sem contratos assinados, já que uma lei nos Estados Unidos (De Havilland Law) proíbe contratos que ultrapassem sete anos. Para o papel principal selecionou o garoto Ellar Coltrane, que tinha 7 anos quando a filmagem começou e 18 quando terminou. Os papeis secundários foram preenchidos por Ethan Hawke (pai), Patricia Arquette (mãe) e Lorelei Linklater (irmã).

Ainda que o formato inusitado mereça aplausos por sua dedicação, o que faz de “Boyhood — Da Infância à Juventude” um filme grandioso é que Richard Linklater conseguiu exatamente o que queria quando começou o projeto: acompanhar um garoto durante 12 anos vendo-o passar por todas as fases da infância e adolescência. Não espere guias na tela: Linklater passa de um ano para o outro sem avisar o espectador, que terá que estar atento às migalhas que vão sendo deixadas pelos fotogramas (a mudança dos personagens, a matadora trilha sonora, que pontua cada ano com uma canção em voga na época e outros símbolos de cultura pop).

O resultado final é absolutamente surpreendente. Ao entrar no cinema, o espectador é inserido no mundo de Mason (como observador ou mesmo um vizinho da família) e verá o garoto crescer ano a ano, com todas as dúvidas, certezas, obstáculos e necessidades presentes em cada etapa de sua vida. Linklater propõe observar um ser humano em crescimento, algo que, presos em nossas rotinas diárias, não percebemos com tantos detalhes em nossas famílias (e nas famílias de nossos amigos). Ao término de duas horas e quarenta minutos, Mason passará de um total desconhecido para uma pessoa próxima. E isso surpreende.

O grande mérito do diretor, que também assina o roteiro, é deixar a história fluir sem mascarar temas tabu. Desta forma, sexo, drogas e religião pontuam delicadamente a história sob a ótica de um casal liberal, que, mesmo estando separado, tem uma sinergia de ideias que parece manter os dois filhos num eixo. Mais: o roteiro aprofunda de tal forma esses personagens (pai e mãe) que seus erros e acertos se equivalem na formação da personalidade do filho, um resumo (aparentemente com mais foco) familiar. Ou seja, não há culpados.

Ao final, “Boyhood — Da Infância à Juventude” soa tanto um elogio à família quanto ao destino: por mais que haja confusão em casa, por mais que os pais se dediquem, não há como fugir daquilo que devemos ser, parece assoprar Linklater no ouvido do espectador. Com o nome já gravado na história do cinema por uma das trilogias mais tocantes já feitas (“Antes do Amanhecer”, “Antes do Pôr-do-Sol”, “Antes da Meia-Noite”), Linklater vai além em “Boyhood” e filma… a vida (dos 7 aos 18 anos) num dos melhores momentos do cinema neste século.

Marcelo Costa é jornalista. Editor do Scream & Yell.