Na coletânea “Ter Saudade Era Bom”, Moema Vilela acomoda nas formas breves a densidade criativa das narrativas longas

Moema Vilela busca uma originalidade narrativa por meio de contos que primam pela complexidade estrutural /Wordpress
Moema Vilela busca uma originalidade narrativa por meio de contos que primam pela complexidade estrutural /Wordpress

Sérgio Tavares
Especial para o Jornal Opção

É inquietante nos darmos conta de que a escritora Alice Munro só começou a tomar presença no imaginário literário brasileiro aos 82 anos. Foi com essa idade que a canadense recebeu o prêmio Nobel de Literatura, fato visto com surpresa pois, em sua bibliografia, constam apenas volumes de contos, um gênero que não desperta preferência nos catálogos das grandes editoras, que o diga as dessa banda do continente.

Mas é o Nobel, a distinção su­pre­ma para um autor, e os livros de Munro começaram a circular com intensidade para recrutar a atenção dos críticos. Entre os olhares atenciosos, somavam-se aqueles que distinguiam a complexidade de sua tessitura literária, capaz de acomodar, na forma breve, a densidade do romance. Contos maiúsculos que extrapolam os limites paginados. E, a essa amplitude narrativa, era comum o lamento de que os títulos de Munro fossem aqui uma luz projetada, e não raios que se espraiavam no tempo real de suas translações.

5Ocorre que os leitores brasileiros têm, agora, a chance de presenciar o surgir de uma aurora na linha que tensiona o nosso horizonte. Essa é a impressão que causa a leitura dos contos de “Ter Saudade Era Bom”, de Moema Vilela. Antes de seguirmos com o texto, porém, é necessário ressaltar que não há qualquer propósito insensato de equivaler as autoras. O que há, de fato, é um contentamento por descobrir uma jovem escritora que, em sua estreia, não busque saídas fáceis para temas batidos ou tenha a parvuleza de se convencer que esteja renovando um gênero. O poder das narrativas de Moema está em suas construções. Na habilidade com que bem elabora o universo dos personagens principais, deixando-o acessível à incidência de outras histórias, de modo a atingir um efeito plurinucleado semelhante ao dos textos de Munro. Tramas que compartimentam tramas.

Permanece a sensação de se caminhar por uma estrada flanqueada por lâminas de uma cerca, cujas frestas possibilitam a visão restrita de outros cenários que carecem da imaginação para se expandir. Na verdade, o leitor parece embarcar numa trama já em curso, que vai desvelando momentos pretéritos e futuros sem esgotá-los ou iluminar suas áreas por completo. Tudo é aberto, multifário e insinuante; o que é fantástico! A começar por ser uma antologia que dispensa a coesão temática, o dever de comunicação entre os contos que a compõem. Não há dever algum, afinal. Seja com o gênero, com a linearidade da prosa, com o efeito linguístico. A literatura basta, para Moema, exercitá-la; é o início, o meio e o fim, livre de ordem.

O mesmo caráter indistinto vale para as influências, que evocam tantos nomes, fazendo bem o resenhista ficar no campo movediço das impressões. Há um quê de Raymond Carver, de Clarice Lispector, de John Cheveer, de Thomas Pynchon, de Alice Munro, de tantos outros. Estão no alicerce, no acabamento, nos cacos de outras histórias, nas menções. Aqui, o autor e o livro são a soma dessas singularidades estéticas, que conformam um mosaico mutável onde coexistem relações familiares, conflitos humanos, tragicomédia, nonsense, relatos factuais.

“Fotografias”, por exemplo, emula uma aliança entre história e ficção, ao rememorar o drama vivido pelos chilenos soterrados no acidente da mina de San José, em 2010. A mesma intenção de esbarrar na realidade embala “Quando você volta?” e “Os de­sa­parecidos de Zhelaniea”, que convoca fantasmas da ditadura militar. Já “Com carinho e sinceridade, muitos beijos e beijinhos”, em sua estrutura simples constituída por trocas de e-mails, evidencia a capacidade da autora de construir e de distinguir personagens apenas pela flexão da linguagem.

No meio do livro, então, está o conto que mais se diferencia do conjunto, ainda que concentre o espírito criativo da antologia. “A reconstrução” é uma ode às narrativas de ficção científica, interligando elementos sensoriais, distopia e fluxos oníricos num estudo da perda e da melancolia. A busca é pelo intangível, um tempo que os dedos tentam arrastar o tecido, porém não se move, pois é espesso demais, complexo. Como afirmou, certa vez, Munro: “A complexidade das coisas — coisas dentro de coisas — simplesmente parece sem fim. Nada é fácil, nada é simples”. E isso não é mau, quando se refere à manufatura das palavras com perícia artística, o domínio técnico em prol de uma literatura original. “Ter Saudade Era Bom” é prova disso, seus contos com densidade romanesca são.

Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Queda da Própria Altura” e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc.