Nos 27 contos que enfeixam “Te Pego lá Fora”, distribuídos em seções como se fossem as estações do ano, Rodrigo Ciríaco realiza a gênese de uma guerra sem vencedores

Foto: Arquivo Pessoal
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Ronaldo Cagiano
Especial para o Jornal Opção

Nos últimos anos, vem se (a)firmando, com muita pujança e versatilidade a voz da periferia, num movimento permanente de dar vez, voz e espaço às manifestações culturais, por meio das suas diversas linguagens artísticas, que se impõem não apenas como grito de resistência, mas como autêntica e plural ressonância das expressões de uma comunidade.

Nesse diapasão, a música, o teatro, a dança e a literatura vêm ganhando justo e notório espaço, principalmente porque espelham não somente um grito contra uma realidade sócio-econômica excludente, mas também surgem como pulsão de uma energia criativa e estética, tendente a transmitir um viés crítico e uma maneira peculiar de expor as demandas da arte que viceja nesses locais e que, por conta das contingências, por muito tempo viveu seu apartheid e um solene e criminoso silêncio da mídia.

Um dos mais contundentes exemplos dessa realidade cultural multifacética — que se anuncia pelo hip-hop, pelo funk, pelas dicções poéticas e pela ficção — é o trabalho realizado pela Cooperifa. Movimento cultural que há mais de uma década vem revolucionando a arte por meio da participação popular, principalmente, de artistas e escritores excluídos do mercado cultural hegemônico e monopolizado. Ao promover seus saraus, encontros, seminários, apresentações e trocas de experiências criativas, não apenas nos bairros da periferia, mas em importantes espaços e centros culturais da Capital e da grande São Paulo, chamam a atenção para a coerência, vitalidade e responsabilidade de suas propostas.

Dentro dessa atmosfera de criação e envolvimento, várias parcerias e interatividade têm proporcionado o surgimento de um novo momento ou conceito literário — seja na poesia ou na ficção —, em que trabalhos de autores como Ferréz, Sérgio Vaz e Rodrigo Ciríaco vêm despontando no Brasil e no exterior. Tendo a palavra como testemunho existencial e o verbo lúcido como acicate e libelo, transformam em linguagem suas expectativas, reivindicações e demandas, e essa arte por toda a parte, culmina num poderoso instrumento de denúncia, ao mesmo tempo como expansão de um desejo onírico de superação do imenso fosso que separa as tantas cidades que habitam a grande metrópole.

Em seu recente volume de contos “Te Pego lá Fora” (Editora DSOP), o jovem poeta, ficcionista, professor e agitador cultural Rodrigo Ciríaco dá asas a esse imenso caleidoscópio que é a pungente realidade do ensino público, ao retratar, em suas histórias, o quotidiano da sala de aula e os conflitos, dramas, dilemas e enfrentamentos não apenas do professor, mas do aluno, da família e da própria atividade escolar.

Nessas pequenas e incisivas histórias, (re)colhidas pelo seu olhar cirúrgico e percuciente, o autor mapeia um imaginário povoado de tensões em que ensinar é tentar estender uma ponte entre a crueza da vida e a necessidade de extrapolar os gargalos do sistema didático e pedagógico, na esperança de realizar um salto dialético ou uma simbiose entre o impossível e o desejado.

O Rodrigo professor transita pela crueza de vivências amiudadas pelo caos e pelas circunstâncias desagregadoras e desestimulantes e é na pele e na alma do escritor que — entre ficção e realidade — panoramiza esse imenso abismo em que vivem meninos e meninas dentro e fora dos muros da escola. Além do quadro-negro onde as lições são apregoadas, há a o negro quadro que antecede o ingresso do aluno; e é aí que o professor-escritor vai deslindando, com seu faro lírico e com sua inflexão ética, um universo desafiador. Como numa prosa de palimpsestos, cada história vai nos revelando camadas antes invisíveis de uma sociedade esgarçada pelos contrastes e potencializada não apenas pela miséria econômico-financeira, mas pelo declínio moral, pelo veloz e acachapante escalonamento de valores, hierarquizando o medo, a violência, a insegurança, as agressões físicas e psicológicas (como o bullying, a gravidez precoce, o assédio sexual), numa tênue fronteira entre a civilização e a barbárie.

Reverberando em sua literatura esse “mondo cane” de dissolução e de misérias quotidianas, o autor capt(ur)ou, a partir de sua experiência no magistério, lidando com as mais aviltantes situações, a trágica poesia desse tempo marcado pelo temor, pela marginalidade, pela falta de afeto, pela fugacidade das relações familiares e institucionais e por uma escola premida num beco-sem-saídas, em que o docente se transfigura também em pai, confidente, salvador, juiz de conflitos.

LIVRO-internoNos 27 contos que enfeixam “Te Pego lá Fora”, distribuídos em seções como se fossem as estações do ano, Ciríaco realiza a gênese de uma guerra sem vencedores: metaforiza os invernos e outonos de cada um desses seres divididos e mutilados, para acenar, apesar de todos os desenganos e desencantos que cada experiência, individual ou coletiva, possa suscitar, que ainda há espaço para um verão e uma primavera. Para acenar também que é pela educação e pela implementação da leitura, pela transformação da sala de aula em ambiente de reflexão e crítica propositiva e também pela inclusão da família nesse processo, que uma mudança radical que se quer promover possa ser alcançada.

Numa linguagem direta, contundente, seca e às vezes corrosiva, mas real e profundamente humana, Rodrigo Ciríaco preservou uma espécie de sintaxe da opressão quotidiana: a oralidade, o sentimento e a reação de personagens que protagonizam, com suas falas arrevesadas, com suas gírias, seus chistes e maneirismos, esse mundo. Mundo, é bom frisar — costumeiramente tão invisível às autoridades e refratário à própria recepção da crítica literária — esta, tantas vezes reacionária, acadêmica, burguesa e preconceituosa — e que nessa literatura forte, versátil, sem meias palavras ou camuflagens, se mostra sem verniz e com a profundidade semântica e a carga metafórica que as grandes verdades transportam.

Na mesma direção do que afirmou o crítico Marcelo Laier, que na apresentação da obra reconheceu que “o autor executa habilmente a difícil (e raras vezes atingida) transposição da oralidade quotidiana da periferia para uma expressão literária”, o estranhamento da forma com que apresentam os diálogos e a própria narrativa, ressalta a proposta do autor de ser fiel ao conteúdo e à força dessas vidas tão precárias, mas ao mesmo tempo efervescentes na busca de seu lugar numa sociedade que se pretende igualitária, democrática e humanizada.
Sem dúvida, “Te Pego lá Fora” marca a face da literatura brasileira contemporânea com um acento particular, porque subverte a prosa hoje em vigor, sempre o mais do mesmo, para tratar de questões que nos afligem, nos envergonham e nos humilham, sem dourar a pílula.
Rodrigo Ciríaco, que idealizou o Sarau dos Mesquiteiros, outra fonte de resistência à literatura bem comportada que andam fazendo por aí, tem consciência do papel incômodo e catártico que uma literatura deve ter, que deve chacoalhar e subverter o que não contribui para mudar e suas ações como emulador cultural, professor e escritor demonstram o caráter revolucionário de sua ação poético-política, lembrando-nos o que já afirmou Günter Grass, para ele “A literatura só sobreviverá na medida em que continuar sendo subversiva. A periculosidade da literatura, a periculosidade tantas vezes superestimada pelas censuras, é o que a mantém viva. Transformando-se em mero entretenimento, elas seria um enfeite, não seria nada”.

Ronaldo Cagiano é escritor.