Um galo para o ano novo
13 dezembro 2014 às 10h08
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Hélverton Baiano
O galo saçaricava há quase uma semana, pois a galo dado não se mata recente, tem-se de esperar pelo menos sete dias para passá-lo à panela. A sentença do galo estava determinada e chegamos dois dias antes de se cumprir, a ponto de conviver e nos enternercer pelo bichinho. É triste a sina do galo pelo que ele nos brinda com seu canto matutino, que, sozinho, como disse João Cabral de Melo Neto, não tece uma manhã.
Mas o galo canta indiferente a quaisquer perspectivas, apenas pela canora forma de nos agraciar com uma melodia única e inexorável, nos dedicando graciosamente o deleite da manhã que se prenuncia. O galo é o relógio do sertanejo, pontual como o sol que vem e vai no seu habitual, pontuando dias e noites, claro e escuro.
Aquele galo, especificamente, viveu sete dias peado e alimentado com quireras e sobras, correndo e tropeçando atencioso para o que comer, sem saber que logo viraria de-comer. Era um galo interativo e não se fazia de rogado quando lhe dava fome e os de casa se descuidavam. Ia sorrateiro e serelepe à arandela de frutas e verduras e catava de lá uma cebola ou uma banana e a traçava com tanta rapidez e eficiência, que o colocaria em primeiro lugar na olimpíada da gula galinácea.
Por dois dias fui despertado pelo doce cantarolar do galo. Mas no segundo dia me comprazia ao galinho, sabendo que daí a pouco o bichinho viraria pirão pelas mãos hábeis e traquejadas na lida de matar e cozinhar sem pena esses bichos de penas. Deu pena! Ainda mais nestes tempos de exaltação à carne branca.
O galo cantava pela última vez, um canto forte, audacioso, cocoricorando alegrias aos ouvidos da aurora, prenunciando sem querer alegorias ao novo ano que nascia há poucas horas e que fazia de leitões sua algaravia. O galo cantava o entusiasmo da festa, a plenitude de um ano que chegava com abraços e desejos de boas realizações, plenitude, harmonia, prosperidade e paz. Mesmo morrendo, o galo ajudava a sinfonia do ano novo, na verdade cantando e agradecendo pelo que viveu e não pelo futuro. Era o único entre todos a reverenciar o passado, como que a agradecer às divindades galináceas pelo tanto que viveu e cantou galando e engalanando.
Era o autêntico galo caipira que agora ia para o cadafalso da degustação, seguro pelas asas. Vi e participei de inúmeras dessas cenas e, quando menino com pouco mais de dois anos de idade, quis matar o vizinho, Seo Bilisco, como minha vó Angélica fizera com a galinha que alimentou o resguardo de mainha. O galo ia destecer a vida para alegrar nosso ano novo, detestando a máxima de Bilica Caçuador: “Galo bom é galo morto!”
Não quis presenciar nem a depenação do pescoço e muito menos a facada certeira de onde se esvairia a vida do galo cantador. Aquele galo me conquistou pela voz e pelo gosto, horas depois da missa do galo. Acho que nunca em minha vida comi galináceo tão gostoso e perfeito de condimento. Comi com alegria, lembrando-me do lindo cocoricó que pela manhã embalou sono, sonhos e emoções, almejando ao mundo um feliz ano novo.
Hélverton Baiano é escritor e jornalista.