Opção cultural

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Pedro Nava: livros para ler numa ilha deserta

Leitor de vida inteira de Marcel Proust, Pedro Nava, também conhecedor de Henri Bergson, entendeu os mecanismos da memória involuntária. Sua obra é profundamente proustiana, influência que proclamou abertamente. Daí sua fixação obsessiva com a passagem do tempo, como confessava

A versatilidade de Vargas Llosa

A principal característica do Prêmio Nobel de literatura Mario Vargas Llosa é que não perde o rigor de sua narrativa nem tem medo de enveredar por experiências formais

A história de “Widmung”, do compositor Robert Schumann

“Widmung” é uma declaração de amor invulgar, cuja letra foi extraída dos versos do poeta Friedrich Rückert. Tornou-se especialmente famosa entre os cultores da música erudita, sobretudo, por sua popularização crescente como peça fundamental do canto lírico mundial

Martiniano

J.C. Guimarães Especial para o Jornal Opção cul2Martiniano Almeida Rossi, 61 anos: não inventarei um personagem. É este aí mesmo. Militante político, publicitário e engenheiro (gostaria nessa ordem, provavelmente), foi um dos fundadores do nosso partido. Foi também um líder de caráter, idealista e coerente. Faleceu num sábado, 29 de agosto. Um dia antes me ligara: era o último de sua vida — como poderia saber? —, mas estava interessado numa coisa de somenos importância, diante da enormidade do passo seguinte. Queria saber se eu topava pleitear uma vaga na direção municipal. Com a voz estrangulada pela rouquidão, quase não entendi o que falava. Propora indicar o meu nome para a chapa vencedora; se dispôs a defendê-lo como postulante do grupo. Aceitei sua ilusão e respondi-lhe com firmeza, como se travássemos um despreocupado diálogo entre Esculápio e Ganime­des. Foi a última vez que nos falamos. Antes que morresse nos encontramos algumas vezes, em sequência. A quarta vez foi há duas semanas, em sua casa, nas proximidades da Praça Cívica. O motivo, ordinário, era o partido: o partido era o elo que nos unia e nos separava. Marcus Messner, o egoísta, não tinha mais o gosto religioso das confrarias, como seu amigo de outros tempos, que se tornava, gradativamente, uma relíquia histórica. Messner achava insuportável a ideia de viver e morrer em função do grupo, como se o mundo permanecesse dividido entre comunistas e capitalistas: talvez o quiséssemos; talvez fosse insuportável perder o chão, mas a vida não liga. A história é a maior potência da história. Desenraiza-nos, atropela nossas paixões. É invencível. Entre debiques e fumaradas, Mar­tiniano se divertia com reuniões muito mais do que eu — como aliás se divertiu, naquele dia, no início da tarde. Na roda en­contrávamos eu, ele, uma professora do primário, um casal de funcionários públicos, uma em­pre­gada doméstica e um jornaleiro gordo e bonachão, que descia de Nerópolis: Daniel, a erva daninha. Quase nunca dava certo de nos encontrar: éramos poucos e pouca a motivação. Suspeitei, por isso, que a urgência do seu caso foi mais interessante do que o pretexto original: pela primeira vez havia um acordo mútuo, entre nós. Com muito custo nos encontrávamos durante o ano e, agora, num único mês conseguimos articular duas reuniões em sequência: foram o terceiro e o segundo encontros. Se morresse um de nós a cada mês, em breve passaríamos de uma centena. Tentamos trazer outros elementos e a conversa estendeu-se até a uma importante entidade de trabalhadores rurais. Vislumbramos uma terceira reunião com um número dobrado de participantes. Só que não houve a terceira reunião, nem houve mais planos. As adesões não se confirmaram. Fracas­samos pela enésima vez, admiravelmente quixotescos. Na noite seguinte retornei so­zi­nho à casa de Martiniano, a seu pedido, pois ele queria avaliar o quadro. Recolhemo-nos na área dos fundos, de parelha com a cozinha. A empregada trou­xe à mesa pães de queijo assados na hora e um saquinho de soja torrada. Martiniano a­briu uma Bohemia e tomamos juntos. Bem baixinho, ouvi uma valsa de Strauss vindo de seu escritório (por alguma motivo eu me lembrei das músicas incidentais, nos filmes). Não era na verdade uma valsa de Strauss, mas eu não sabia que música era aquela e acreditei que ele poderia gostar de Strauss. Tinha seus refinamentos burgueses, apesar da filiação comunista. Sua casa era enorme e ele possuía um Fritz Dobbert, jazendo solenemente num dos cômodos espaçosos. Uma litografia de Siron, quadros de Antônio Poteiro e de outros artistas de renome enfeitavam as paredes da sala de visitas. Martiniano vivia bem, da forma que se merece, e eu não poderia censurar aquele amigo dos pobres por ter conquistado alguma dignidade. Na estante destacavam-se, ao primeiro golpe de vista, as grossas lombadas vermelhas das biografias de Che, Stálin e Mao, vidas pelas quais nunca me interessei. Enquanto degustávamos os aperitivos, olhei para ele e sugeri: “Vamos esquecer a formação do grupo. Já há muitos partidos no partido, não acha?” Preparei-me para ser duramente altercado, pois ele envolvera-se na causa a ponto de ainda mandar tomar no cu, como fazia todas as vezes em que se sentia contrariado. Era bom sinal que me mandasse tomar no cu, coisa que eu não tinha coragem de mandá-lo fazer. Era bem mais velho do que eu e, apesar de ser liberal e curtidor, uma espécie de respeito se me impunha e eu não conseguia tratá-lo com tanta intimidade. Apesar da doença Martiniano teimava em viver com certa normalidade seus últimos dias, e por isso portava-se como um imaculado. Tentando enganar-se, acho, ele agia como se tudo estivesse sob controle, embora porcaria nenhuma estivesse mais sobre controle. Ainda me ligava com a frequência habitual, passava e-mails, jogava paciência em seu computador, bebia cerveja e interessava-se pelos destinos do grêmio. E continuava fumando um cigarro atrás do outro, mais ansioso do que nunca. Eram expressões de seu interesse pela vida. Como repreendê-lo pela anestésica carteira diária de Carlton? Se tinha medo, não é o que desejava transparecer, irônico ainda, risonho ainda. Um lapso e a certeza: vai se recuperar, por que não? Com tal interesse pela vida, eu poderia jurar que daria a volta por cima e faríamos muitas outras reuniões — quem sabe ainda viraríamos o mundo de pernas pro ar, como ele sonhava! Erámos sete personagens típicos, que lembravam o germe das revoluções inacabadas. Que me lembravam “A Jangada”, de Gericault... De qualquer modo achei sinceramente que seria possível: a vida não é um amontoado de absurdos? Tudo pode mesmo acontecer, se você acredita, se você se empenha. Para minha surpresa, ante a ideia de abortar nossos movimentos, Martiniano apenas olhou para mim e deu um sorriso de aceitação. Isso não fazia parte do script. Tive a impressão de que o sorriso dele flutuara fora do tem­po. Pensamentos terríveis minavam a atenção de Martinia­no, enquanto ele sorvia a cerveja e tragava um cigarro, que o tragava. A intervalos tossia e pigarreava, massageando a garganta enfermiça. O pijama de seda deixava seu aspecto ainda mais lívido e convalescente: quase morto. Não respondeu nada durante alguns minutos, sentado, quieto. Limitou-se a contemplar o que já não cabia em pensamentos. Dado instante, fe­cha­ra os olhos e roçara a testa, a­fo­gando-se para dentro de si. Eu es­tava vendo derreter uma estátuas de cera, como aquelas dos mu­seus. Novo trago. Olhei de novo; novo e discreto sorriso, eloquente de doer (um amigo por perto pode servir de boia no pânico, eu recordaria nas próximas horas). Deixar tudo de lado já não soava uma perda tão importante assim. Dali a pouco eu me despedi com a trivialidade de sempre, sem saber, ignorante, que nunca mais apertaria a sua mão. O último contato e a última palavra entre amigos podem ser de uma banalidade impressionante. Assim aconteceu entre eu e ele. Na segunda-feira, 31, ao chegar ao trabalho, meu diretor me surpreende ao dizer que Martiniano “morreu”. Incrédulo, fui ao jornal do dia, olhei e lá estava ele, Martiniano, estampado sob a nota ruim e inequívoca, despertando-me para a realidade, mais irreal do que o sonho. Era mesmo ele: o homem de chapéu de feltro e barba destruída pela quimioterapia — um líder perdido para a doença. Mas, alegre, continuava sorrindo para nós, como se fosse imune. A alegria que é a maior recusa, o maior protesto. Vá lá o corpo — mas o que são feitos dos sentimentos de uma pessoa, quando ela morre? Caberá mesmo numa cova o coração de um homem? Leio o conteúdo inacreditável, conheço sua agonia e descubro que tinha sido sepultado no dia anterior. Enquanto morria eu traçava planos de futuro, sem nunca imaginar como foi duro o seu final de semana. Hemorragia, parada cardíaca e óbito. Conhecia Martiniano há três anos. Apesar da diferença de idade que nos separava, quis de mim um amigo, desses de sair para o boteco. Fiquei devendo a ele uma rodada, que para sempre teceu um vínculo de afeto entre nós. Nunca lhe perguntei se acreditava na vida após a morte (não sofria a doença da gravidade, como eu). Se ela existe, saberá agora que não resisti de fazer esse conto, com feitio de crônica, em sua homenagem. As palavras me atormentaram e tive de me livrar delas, para sobreviver sem omissão. Na­quela mesma segunda-feira, à noite, eu conferi no celular as chamadas recebidas e lá estava, pela última vez, o seu nome: “Martiniano 28/08/09 15:22”. Fiquei olhando seu nome, o dia e a hora cravada. Deti-me por um momento, perplexo com esses dados, aparentemente insignificantes. Eu estava agora diante do último criptograma, diante já do mistério insondável e surpreendente que nos assusta feito crianças. J.C. Guimarães é escritor e crítico literário.

Eu tento mas a desesperança não morre

A nova legislação dizia bem assim: que cada família se virasse e tomasse tento dos seus doentes mentais, ao invés de atirá-los à clausura, ao abandono, ao esquecimento de um hospício cujos corredores tinham um cheiro de fezes mesclado ao eucalipto dos desinfetantes”

Por que ler Proust?

Proust não foi apenas um analista da alma. Ele viveu o fim de uma era e foi o historiador dessa agonia. Um cronista da decadência que produziu a crônica impiedosa e fiel de uma sociedade moribunda que desaguou na carnificina da primeira Guerra Mundial

A arca de Noé das palavras

Em “Dicionário do Nordeste”, Fred Navarro lança sua rede em várias direções, como que batendo uma foto polaroide do Nordeste, em sua geografia, história, culinária, vestimenta, literatura, gíria, fauna e flora

Lester Bangs, o santo beatnik da crítica

Crítico norte-americano é arquétipo a ser perseguido pelo jornalismo cultural — há tempos relegado aos rodapés dos periódicos e pálido em suas econômicas observações

O preferido do rei

Carlos Trigueiro Untitled-3  

Nos tempos da reconquista do solo ibérico aos muçulmanos, quando pequenos feudos formavam o reino de Leão, as façanhas de Valderico corriam de boca em boca. Cavaleiro descendente de guerreiros celtas e visigodos saía-se vencedor em qualquer tipo de combate ou escaramuça. Os inimigos o temiam. E tremiam ao saber de seus feitos. Granjeava admiração ou inveja de seus aliados.

Ficando a sua bravura pouco aquém do disse-que-disse — a mídia daqueles tempos —, a fama do cavaleiro acabara vazando as fronteiras asturianas. E como cruzar a ponte entre a fama e a lenda era questão de encompridar a língua, disso se encarregavam os bufões palacianos — marqueteiros medievais — sabedores de que a mente humana costuma dar pés ao que vê, e asas ao que imagina.

Enfim, os sarracenos estremeciam ao ver a soberba figura de Valderico senhoreando sua montaria, com o brial de cavaleiro e a armadura reluzente, destroçando tendas, barbacãs ou guaritas, e espalhando mortes a golpes de espada, maça, lança, ou com os próprios punhos. Naquelas liças encarniçadas, nunca um infiel sobrevivera à fúria do guerreiro asturiano. Tal bravura o tornara vassalo preferido do rei.

Mas como tudo neste mundo tem seus prós e contras, a distinção concedida a Valderico nos campos de batalha deixava o monarca pouco confortável na paz do cotidiano: cobria-o de honrarias ou concedia-lhe favores. As honrarias seguiam os ritos das justas medievais. Já os favores tomavam caminhos sinuosos, pessoais, não raro levando o rei a fazer vista grossa aos caprichos sentimentais do cavaleiro. De fato, além de temível nos campos de guerra, Valderico era rastreador compulsivo dos fetiches femininos.

Conhecido o lado glorioso do cavaleiro, forjado e temperado nos campos de batalha, passamos àquelas lides, não menos perigosas, entre as muralhas dos castelos, nem menos inocentes travadas nos redutos acortinados das alcovas, sob a pureza contestável dos lençóis.

Ouviam-se nos corredores, torres, paços, pontes, guaritas, muralhas, em todo o castelo, que raras mulheres da corte conseguiam rechaçar os assédios do herói.

Numa ocasião, havendo o rei se deslocado às terras galegas, não muito longe do que viria a ser o caminho de Santiago, coincidiu na ausência do soberano que o seu vassalo preferido retornasse antecipadamente de vitoriosa missão contra os sarracenos nas fronteiras ao sul. Mal o herói se desvencilhara das parafernálias de combate, irrompeu nos alojamentos da armaria do castelo um mensageiro real.

— Nobre cavaleiro Val­de­rico, trago mensagem de Sua Al­teza, a rainha!

Embora surpreso com a presença tempestiva do mensageiro, Valderico não se alterou. — Com que mensagem me honra Sua Majestade?

— Sua Majestade ordena-lhe comparecer aos seus aposentos reais, amanhã, uma hora antes do pôr do sol.

— Diga à Sua Majestade que o seu fiel vassalo, com grande hon­ra, ali estará na hora aprazada. Já o mensageiro iniciava mesuras para afastar-se, quando ocorreu a Valderico perguntar-lhe.

— Aconteceu alguma coisa fora dos costumes à Sua Majes­tade durante a ausência do rei?Estou pouco informado, pois estava a combater o inimigo infiel além das margens do Douro.

— Nobre cavaleiro, apenas sei que Sua Majestade, a rainha, anda maldisposta nos últimos dias. Agora, se me permite…

— Vá, vá mensageiro, e confirme à rainha o que já lhe transmiti.

No dia seguinte, a natureza cobriu de beijos ensolarados o verde úmido que ainda hoje engalana os montes asturianos. Valderico preparou-se dignamente, e dois pajens deram-lhe banho numa tina adaptada ao enorme guerreiro. Sendo costume somente dois ou três banhos daquele tipo por semestre, talvez por ano, uma visita aos aposentos da rainha requeria sacrifício de imersão e esfregões extras.

O pôr do sol fugia pela encosta dos montes, quando Valderico atravessou garbosamente a ala do castelo que levava aos aposentos da rainha. O brial de cavaleiro cobria-lhe vestes palacianas. Espada curta embainhada na cinta. A guarda real reconhecendo o herói, imediatamente deu-lhe passagem nos corredores sombrios.

O mesmo ocorreu no vestíbulo que antecedia a câmara real, quando cinco aias que guardavam a entrada reconheceram Valderico. Três delas lançaram-lhe olhares tão afiados quanto cimitarras sarracenas. Talvez numa tentativa imaginária de cortar-lhe as tramas do brial, suas vestes, e ver o gigante guerreiro despido. As outras abaixaram a cabeça com reverência desconfiada, mas pensamentos suspeitos. Todas suspiraram quando, na passagem do guerreiro, recendeu o cheiro inconfundível do banho tomado. Mas na cabeça de Val­derico transitou outro gênero de questão, qualquer coisa como a diferença entre montar selas ou saias.

Vencidos corredores, vestíbulos, guardas e aias, Valderico em carne, osso e brial, apresentou-se à Sua Majestade, ajoelhando uma das pernas no chão, como era reverência de praxe nas saudações aos soberanos. Estando a rainha deitada sobre grandes almofadas no leito, o guerreiro achou por bem mencionar preocupação com a sua saúde.

— Vossa Majestade ordenou que estivesse aqui uma hora antes do pôr do sol, pois bem, cá estou, em carne e osso, cavaleiro Valderico de Santullano, Valdedios, Lena, Oviedo, Naranco e Leon…, mas a minha nobre senhora parece não estar bem-disposta…

— Cavaleiro Valderico agradeço-vos a presença, mas antes de qualquer conversa, melhor saberdes que, por minha ordem, entre este pôr do sol e a aurora de amanhã, todos os meus guardas, servos, aias e camareiras vão empenhar-se em tarefas longe da câmara real, de modo que, de agora em diante, tudo o que falarmos, tudo o que aqui ocorrer, tudo o que aqui fizermos, ficará entre estas frias paredes, nós dois, e Deus, talvez. Ordeno-vos juramento à rainha!

— A ordem de Vossa Majes­ta­de será cumprida por este fiel ser­vo mesmo que eu tenha de apressar o pôr do sol ou retardar a au­ro­ra com a espada que trago na cin­ta. Tem meu juramento, nobre Senhora!

— Alça-te! Era o que esperava ouvir do maior herói do reino. Pois, pois, valoroso e fiel Valderico, durante algumas horas, vamos tratar-nos de tu, e guarda a tua espada para outras causas… Sabes tu que, desde menina ouço teus feitos e glórias, e todos falam de ti, e… bem… sempre sonho contigo…

— São exageros majestade, apenas cumpro o meu dever de vassalo preferido do rei… — Tentou argumentar Valderico.

— Ouve Valderico! O rei está ausente, e pode até morrer nos campos de batalha, está ficando velho e fraco, e tu sabes que ainda não entrei na carreira dos trinta. Ora, pois, quero então saciar agora mesmo todos os meus desejos em relação a tua figura de cavaleiro e herói, quero ouvir de viva voz aquilo que mais te dá prazer nos campos de batalha, pois o tempo passa e teus feitos parecem cada vez mais assombrosos, excitam-me a imaginação, caso compreendas um pouco da alma feminina!

Estando os heróis sempre prontos a enfrentar o inusitado, Valderico pareceu não se alterar, e maior foi a dificuldade de mudar o tratamento pronominal ordenado pela rainha do que, naquele momento, apagar do pensamento a figura do rei. Então, reiniciou o discurso com eufemismos logo envolvidos pela excitação.

— Exageram minha nobre rainha, apenas luto com denodo por fidelidade aos meus senhores e à causa cristã. Verdade que herdei de meus ancestrais visigodos desejo insaciável para o combate, principalmente o corpo a corpo. E me apraz nos campos de batalha montar meu cavalo, e com a lança retesada derrubar o inimigo de sua montaria, e… bem, depois sentir o infiel estremecer por inteiro ao trespassar-lhe minha espada! E também…

Valderico falou, falou, e falou. E tanta era a vibração que instilava na voz que gotas de suor lhe escorreram da fronte e se infiltraram nas barbas. Mas como homens de ação são objetivos e não se perdem em elucubrações, logo constatou que tanta vibração não vinha da fala, mas do falo.

Enquanto o herói discursava, a rainha parecia enfeitiçada. Rito estudado, soltou os longos cabelos de ouro, livrou-se de almofadas e lençóis, içou o tronco esbelto e, com movimento estratégico preciso, deixou metade do corpo níveo cruzar as fronteiras do decoro. Em seguida, passou da estratégia à tática, apontando agressivamente na direção de Valderico dois aríetes bicudos e, claro, majestosos. De repente, a boca em arco disparou seta indefensável.

— Ordeno que tolhas o brial de cavaleiro e todas as tuas vestes, para que eu possa ver tuas origens celtas e visigodas, tuas armas naturais.

— Majestade!…

— Jurastes…

— Jurei... minha rainha...

Até então nenhuma cimitarra moura fizera zunido semelhante àquele que Valderico sentiu nos ouvidos. Estratégia por estratégia, tática por tática, fidelidade ao rei por fidelidade à rainha, vendaval de­sarrumou-lhe as ideias por um instante, e como a vida é feita de mo­mentos e, às vezes, há mo­men­tos que valem a vida inteira, a arquitetura celta e visigoda do seu inconsciente desabou com um grito tribal, interior e milenar: “Guerra é guerra!” E mais rápido que o voo do falcão, tolheu o brial e despiu-se .

— Pronto minha rainha! Juramento é juramento, eis-me, em guarda, com as minhas armas naturais.

— Ordeno ao maior herói do reino que suba ao leito, e por merecimento e glória, trave com sua rainha uma contenda amorosa e real!

E foi assim que, lança em riste, sob o lusco-fusco do pôr do sol, numa atmosfera real de um lado e irreal de outro, Valderico travou com a rainha confronto amoroso privativo dos reis. Noite alta e a lua entre sombras, após o calor da luta, dos infindáveis movimentos e golpes de parte a parte, sem vencedor nem vencido, desejos saciados, torpor inevitável anunciou a trégua final. Um silêncio parecia esmagar a ambos, lado a lado. A atmosfera de sonho começou a dissipar-se. E como na vida tanto os gozos fruídos quanto os sonhos a desfrutar têm um preço, um custo, um ônus, ou que nome se queira dar, instalou-se nos amantes o pêndulo da reflexão que logo se transformou em remorso, depois em culpa, finalmente em pecado. A rainha espatifou o silêncio contra o teto.

— Valderico, cometemos tremendo pecado!

— Verdade minha rainha, traímos nosso rei, sob a lei dos homens não teremos perdão, mas eu jurei cumprir tuas ordens… — Achou melhor retornar ao antigo e respeitoso tratamento — aliás, cumpri ordens de Vossa Majestade…

— Jurastes — isso é verdade, mas eu vos provoquei… e nós dois fraquejamos. Porém, ainda po­demos pedir perdão a Deus, o Se­nhor de todas as coisas… só Ele poderá perdoar-nos e aliviar a nos­sa consciência… talvez uma grande penitência, uma clamorosa contrição…, talvez um autoflagelamento…

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— Que pensais Majestade?

— Tão logo amanheça, irei à abadia. Abrirei o coração ao meu abade confessor, e ele me dirá qual penitência terei de cumprir para recuperar minha pureza...

— E eu, que farei? Há anos não me confesso, e jurei que tudo o que acontecesse aqui não o revelaria a ninguém… Ficarei com este remorso o resto dos meus dias?

— Fareis o mesmo, ireis ao abade logo depois de mim. Pedireis perdão a Deus que está acima de qualquer juramento. Obviamente, quando confessardes vossos pecados ao meu padre confessor, ele já saberá o que cometemos — até será melhor — e assim somente uma voz pedirá a Deus por nós…

Valderico deixou a câmara real incógnito, pensamentos sombrios e passadas estreitas. Passadas menos silenciosas do que quanto queria, pois a culpa agrega peso invisível ao espírito. Então, o que é imponderável parece adquirir massa, matéria, peso. E surge uma espécie de incômodo corpo dentro do próprio corpo. Em seu alojamento na torre não conseguiu dormir, assaltado pelo remorso.

O sol nasceu. A luz do dia ajuda a clarear também as sombras do espírito. Valderico observou da janela da torre dois servos carregando a liteira da rainha em direção à capela da abadia. Homem de ação, ele pensou rápido, desceu da torre e dirigiu-se à capela. Ajo­elhou-se atrás de uma coluna e ficou à espera. Viu quando a rainha terminou o ato da confissão e retirou-se para cuidar de sua penitência. Valderico apareceu como um raio diante do abade confessor e pediu-lhe para, também, tomar sua confissão.

— Abre o coração filho!--Disse o abade por trás da treliça de madeira.

— Tenho muitos pecados!

— Abre o coração, filho, todos somos pecadores, confessarás teus pecados a Deus, e se deleste arrependeres, o Senhor de tudo te perdoará.

— Trucidei quatrocentos e oitenta e nove sarracenos!

— Eram infiéis filho, basta fazeres o pelo-sinal e estarás perdoado.

— Afoguei cento e vinte e cinco cristãos-novos!

— Tardaram a converter-se, reza uma ave-maria e estarás perdoado.

— Tirei a vida de oitenta e dois cristãos, homens de armas!

— Jejuarás por dois dias consecutivos.

— Deitei com metade das mulheres da corte!

— Quantas?

— Acho que umas trinta…

— Quantas?

— Talvez quarenta…

— Então, durante quarenta dias não conhecerás nem deitarás com mulher, será tua penitência.

— Ia esquecendo, não reconheci dezesseis filhos bastardos!

— Dezesseis ave-marias será tua penitência.

— Deitei com a rainha no leito real!

— O quê? Pecado gravíssimo, filho! Não só aos olhos de Deus! Cometeste alta traição ao rei, e à própria rainha, mesmo tu, Valderico, sendo o maior herói do reino poderás ser enforcado e esquartejado! E tua pobre alma arderá no Inferno eternamente!

— Mas estou confessando meu pecado, e farei qualquer penitência, até mesmo me autoflagelar!

— Ouve filho, grandes pecados, exigem grandes penitências.

— Então, o que devo de fazer, meu abade confessor?

— Hoje nada farás. Vais e repousa. Mas amanhã, deves tomar um bom banho, com muitos esfregões nas tuas armas naturais. Em seguida vestirás o teu brial de cavaleiro. Ao cair da tarde, virás procurar-me, sem que ninguém perceba, em meus aposentos particulares aqui na abadia. Aliás, será melhor uma hora depois do pôr do sol.

Carlos Trigueiro é escritor

O universo que me perdoe, mas o tempo podia passar mais lento

Vem a vida em sua energia secreta e natural, intraduzível e irrevelada, cozinhando devagar suas transformações de cada dia, em silêncio. Conspirando para fazer o nosso tempo passar mais devagar

Mãos ao alto! Isto é um abraço

Mãos ao alto! Joguem ao chão defesas, sustos, ressentimentos, maledicências. Rejeitem desconfianças de toda a ordem. O amor existe e insiste em lhe entregar uma flor

Nunca consegui sair de Macondo

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Um dos aspectos pouco observados na obra do poeta e compositor Vinicius de Moraes foi o seu humor negro

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“Uma Longa Queda”, adaptação cinematográfica dirigida pelo francês Pascal Chaumeil, surpreende ao retirar o essencial dos três vértices o livro de Nick Hornby: a tentativa quádrupla de suicídio, a relação dessa turma improvável de amigos com a mídia após um pacto e o desfecho piegas