Pedro Nava: livros para ler numa ilha deserta
21 junho 2014 às 12h53
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Leitor de vida inteira de Marcel Proust, Pedro Nava, também conhecedor de Henri Bergson, entendeu os mecanismos da memória involuntária. Sua obra é profundamente proustiana, influência que proclamou abertamente. Daí sua fixação obsessiva com a passagem do tempo, como confessava
Marcelo Franco
Especial para o Jornal Opção
Escrevi sobre a Belo Horizonte dos escritores modernistas e, por isso, muitas pessoas ficaram curiosas em relação a Pedro Nava, pouco conhecido atualmente. Nada de novo no front: Nava, autor de seis magníficos livros de memórias, louvado pelos colegas escritores até, creio, o final da década de 1980, foi depois esquecido pelos intelectuais brasileiros e parece não despertar muito interesse naqueles que poderiam divulgar a sua literatura.
Venho relendo Nava a vida toda e assim não poderia deixar de levá-lo para minha estadia numa ilha deserta. Por isso e para saciar um pouco essa curiosidade de alguns leitores, vamos, portanto, ao Nava (não como crítico literário, que não o sou, mas como “pedro-navista” de carteirinha).
Em junho de 1903, nasceu, na mineira Juiz de Fora, um “pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais”, como ele escreveu no primeiro livro de suas memórias, “Baú de Ossos”, usando uma fórmula de Eça de Queirós (“Eu sou um pobre homem da Póvoa do Varzim”), depois também utilizada por Otto Lara Resende (“Eu sou um pobre menino do Matola, de São João del Rei”) — aliás, como a inveja é o pecado dos escritores frustrados, eu gostaria de poder dizer que sou um pobre homem de São Sebastião do Alemão (Palmeiras de Goiás, cidade da minha família materna), ou que sou um pobre homem de Itaberahy (Itaberaí, claro, onde nasceu meu pai), mas fico apenas na vontade não realizada, pois nasci nesta mui nobre, mui leal, benemérita, heroica, invicta e boa cidade de Goiânia.
Juiz de Fora, a meio caminho entre Belo Horizonte e o Rio de Janeiro, moldaria as hesitações geográfico-existenciais de Nava (algo assim como os caminhos de Swann e Guermantes?). É ele quem conta: “(…) Nasci nessa rua, no número 179, em frente à Mecânica, no sobrado onde reinava minha avó materna. E nas duas direções apontadas por essa que é hoje a Avenida Rio Branco hesitou a minha vida. A direção de Milheiros e Mariano Procópio. A da Rua do Espírito Santo e do Alto dos Passos. A primeira direção é o rumo do mato dentro, da subida da Mantiqueira, da garganta de João Aires, dos profetas carbonizados nos céus em fogo, das cidades decrépitas, das toponímias de angústia, ameaça e dúvida — Além Paraíba, Abre Campo, Brumado, Turvo, Inficionado, Encruzilhada, Caracol, Tremendal, Ribeirão do Carmo, Rio das Mortes, Sumidouro. Do Belo Horizonte (não esse, mas o outro, que só vive na dimensão do tempo). E do bojo de Minas. De Minas toda de ferro pesando na cabeça, vergando os ombros e dobrando os joelhos dos seus filhos. A segunda é a direção do oceano afora, serra do Mar abaixo, das saídas e das fugas por rias e restingas, angras, barras, bancos, recifes, ilhas — singraduras de vento e sal, pelágicas e genealógicas — que vão ao Ceará, ao Maranhão, aos Açores, a Portugal e ao encontro das derrotas latinas do mar Mediterrâneo”.
(Ler esse trecho na primeira página do primeiro volume — “Baú de Ossos” — faz com que nos perguntemos logo de início: como é que pode, seu Nava, alguém escrever assim?)
Nosso homem em Juiz de Fora acabou, depois de alguma peregrinação (inclusive pelo famoso Colégio Pedro II no Rio), estudando medicina em Belo Horizonte (foi colega de JK na faculdade). Dessa época é a sua amizade com Drummond, Emílio Moura, Cyro dos Anjos, Abgar Renault e toda a turma da primeira geração modernista belo-horizontina. Formado, exerceu a profissão por mais de cinquenta anos e foi professor universitário e integrante de associações científicas brasileiras e estrangeiras. Era, também, médico de muitos dos seus amigos escritores. Ou seja, ele foi produto de um meio em que, apesar das dificuldades econômicas, o estudo era motivo de orgulho para as famílias (sim, houve esse tempo): falava várias línguas, viajou o mundo, possuía cultura sólida, desenhava e foi médico respeitadíssimo, inclusive no exterior, na sua especialidade, a reumatologia, que ajudou a implantar no Brasil. Mas é o Nava literato que nos interessa.
Desde jovem, Nava se juntou a escritores. Foi integrante de primeira hora do chamado Grupo do Café Estrela, que publicou “A Revista”, na qual os jovens mineiros cometiam os seus modernismos. Por toda a vida, apesar da carreira médica, continuou convivendo com a turma das letras. Também era tido como poeta bissexto de alto quilate (como comprova “O Defunto”, esse grande memento mori da literatura brasileira.
Então, com quase 70 anos, começou a publicar as suas memórias. Foi ajudado por sua memória hipermnésica, mas parece também que se preparou a vida inteira, talvez de modo inconsciente, para a obra que o imortalizaria: há notícia de que recolhia documentos e objetos de família e de que coletava desde jovem dados dos antepassados.
São seis volumes (suicidou-se quando estava no início do sétimo): “Baú de Ossos”, “Balão Cativo”, “Chão de Ferro”, “Beira-Mar”, “Galo-das-Trevas” e “O Círio Perfeito”. É uma estranha obra: no início, biografia de antepassados; depois, memória da infância e juventude; por fim, mistura de realidade e ficção.
Leitor de vida inteira de Marcel Proust, Nava, também conhecedor de Henri Bergson, entendeu os mecanismos da memória involuntária. Sua obra é profundamente proustiana, influência que proclamou abertamente. Daí sua fixação obsessiva com a passagem do tempo, como confessava. É, aliás, curioso que não haja mecanismos desse tipo nas memórias que o amigo de vida toda de Nava, Afonso Arinos, publicou a partir de 1961. Seus livros, bem escritos e elegantes, são mais lineares, o que talvez diga muito sobre as diferenças entre um e outro: Nava, mais atormentado, é assaltado por lembranças involuntárias; Arinos, consciente de seu lugar no mundo, segue uma rota fixa na evocação do seu passado.
Uma consequência natural dessa fixação com a passagem do tempo é certa obsessão com os antepassados; por isso, sobre ser escritor, Nava fez-se ainda genealogista amador e seus livros nos contam a vida de seus pais, avós, bisavós, trisavós, tios, primos. Novamente o trecho é do primeiro volume, “Baú de Ossos”: “Esse retrato é que ficou como documento comemorativo, como ancestral tablet chinesa, para veneração do deus lar que continuará a envultar a família enquanto o tempo não tiver aniquilado sua lembrança e enquanto esta chegue aos seus, de envolta com crenças atávicas, complexos animistas e pânicos metempsicósicos. Sem reencarnação integral, mas aparecendo no fim de certos risos, no remate de dados gestos, na possibilidade das mesmas doenças, na probabilidade de morte idêntica — reconhecemos o Avô, o antepassado, o manitô, o totem presente nas cinco gerações que dele defluíram e de que nenhum membro ainda se perdeu de vista, e de que todos se olham com a simpatia, a solidariedade e a compaixão que fazem de nós um forte clã. Não pela superioridade, porque não há famílias superiores nem inferiores — que todas são frágeis na carne provisória e indefectíveis na podridão final. Eu disse forte clã — pela nossa consciência de diferenciação tribal. É por ser neto do retrato que sou periodicamente atuado pela necessidade de ir a São Luís do Maranhão”.
Lemos Pedro Nava para saber como é a vida do seu ponto de vista. Mas, como mencionei Proust, devo dizer que seus livros são também uma espécie de madeleine para mim. Eles me trazem de volta a Palmeiras da minha família materna, aquela Itaberaí dos meus ancestrais paternos e a Campininha dos meus tios. As casas de sonho dos meus avós e tios-avôs com sua profusão de cômodos onde eu podia me perder dos adultos e ser um explorador do Velho Oeste. A partir daí, é uma avalanche de recordações: o cheiro de talco das tias velhas; a lenha queimando todos os dias no fogão desde cedo; a paçoca comida com muito feijão às seis horas da tarde; “Winnetou” lido em estado febril na rede; as histórias de família contadas em noites sem energia elétrica; as discussões políticas da parentada com seu arraigado udenismo; o estranhamento de ver homens fantasiados para as Cavalhadas, cujo significado ninguém me explicara; os livros, velhos de quarenta anos, com as histórias do Tarzan; o tio caçador trazendo pacas vivas de uma viagem que fizera para destino desconhecido; o retrato — a presença — do tio morto que não conheci; o gosto de todos pelas coisas ínfimas ditas de modo grandioso; as mulheres práticas e os homens sonhadores; os restos da farmácia desmontada de meu avô; os armários com os livros de Chernoviz, hoje aqui em casa, em que, para meu espanto, havia propaganda de cocaína em pastilhas (doze pastilhas por dia para laringites!). Mais, muito mais: a deusa loira de oito anos que eu só conseguia impressionar empurrando na lama; o meu paciente avô com sua leitura vagarosa de livros de História; as longas noites iluminadas por lampiões numa fazenda cuja sede não tinha energia; a avó matando uma cobra no quintal dessa fazenda; as jabuticabas comidas no pé; o cemitério familiar, com túmulos do século 19, à beira da estrada (“Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate”); as ariranhas entrevistas num córrego; as assombrações que eu nunca via; os velórios nos quais se servia arroz com frango no almoço; minha bisavó centenária comandando toda a família de uma cadeira de balanço; meu tio quarentão, com síndrome de Down, vestido de Zorro. Minha vida tão recente que tudo era espanto e alumbramento (“o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome”, escreveu aquele colombiano que virou cubano).
Sic transit é a regra. Assim, se o tempo é a matéria dos livros de Nava, é natural, então, que ele seja igualmente dominado pelas ideias de velhice e morte. É de “Galo-das-Trevas” este trecho mórbido: “Chegando ao banheiro, antes do espelho, vou. Tomo posição e verto longamente. Satisfatório: jato forte, grosso, quantidade abundante, boa trajetória. Penso regalado — nenhum estreitamento, por enquanto nada na próstata. Lembro não sei mais que tratado francês: Le prostatique pisse sur ses piedes. Passo então à inspeção. O vidro me manda a cara espessa dum velho onde já não descubro o longo pescoço do adolescente e moço que fui, nem seus cabelos tão densos que pareciam dois fios nascidos de cada bulbo. (…) Hoje o pescoço encurtou, como se a massa dos ombros tivesse subido por ele como cheia em torno de pilastra de ponte. Cabelos brancos tão rarefeitos que o crânio aparece dentro da transparência que eles fazem. E afinaram. Meu moreno ficou fosco e baço. Olhos avermelhados, escleróticas sujas. Sua expressão dentro do empapuçamento e sob o cenho fechado é de tristeza e tem um quê da máscara de choro do teatro. (…) Par de sulcos fundos saem dos lados das ventas arreganhadas e seguem com as bochechas caídas até o contorno da cara. A boca também despenhou e tem mais ou menos a forma de um V muito aberto. Dolorosamente encaro o velho que tomou conta de mim e vejo que ele foi configurado à custa de uma espécie de desbarrancamento, avalanche, desmonte — queda dos traços e das partes moles deslizando sobre o esqueleto permanente. Erosão. (…) As bochechas desabaram, parecem coisa não minha, pospostas, colocadas depois como as camadas sucessivas que o escultor vai aplicando num busto de barro. (…) Médico, não posso enganar a mim mesmo e sei que já estou contado, pesado e medido. Mas consola-me pensar que nós só somos em função do nosso princípio vital. Só somos enquanto vivos. Não temos absolutamente nada com nosso corpo morto. Nosso? Nem nosso porque já não somos nem existimos. Nós acabamos no último instante de vida. E sofremos tanto, à ideia da morte, porque emprestamos ao cadáver que continua nossa forma as ideias que temos sobre a morte, o enterro, a decomposição. Nada disso é nós”.
E, conhecedor da ligação entre Eros e Tânatos, Pedro Nava não poderia deixar de sempre voltar ao tema da sexualidade, outro que o atormentava. Vejam esta passagem de “Beira-Mar”: “Tudo ali. Os intestinos colhendo para o fígado, esse dando ao sangue, o sangue como um Nilo fecundo fazendo nascer calor, vida, pensamento do cérebro e nutrição dos pulmões que separam o oxigênio para dá-lo ao mesmo sangue. Tudo para o movimento dos músculos, a fome, a força, o sexo. Olhava-os. Os das mulheres como pelancas às vezes deixando escapar corrimentos, os dos homens com a incongruência de trombas moles pendendo. Tudo aquilo — então turgente — se encontrava em vida para a fabricação incessante das putinhas rosadas e dos bandidozinhos tenros que no futuro continuariam putas e bandidos só que não tenros que não mais rosados”.
Dono de apurado manejo da língua portuguesa, Nava transforma essa pletora de temas numa sinfonia da qual é o maestro. Ao longo dos seis volumes, viajamos pelo Brasil, sua cultura, sua história, sua geografia — ele não ordena o caos para nós, mas o explica como se fosse o depositário único da própria brasilidade. E percebemos que o extraordinário conhecimento do ser humano que Nava tinha com certeza o ajudou a ser o grande médico que foi, e ser um grande médico o ajudou a ser o excepcional escritor que se tornou.
Sua escrita aos poucos vai mudando; no decorrer dos livros, ele passa a criar neologismos e, muitas vezes, deixa de lado as vírgulas. (Sobre a capacidade de inventar palavras, ele, modesto, inveja Drummond em “Balão Cativo”: “Ai! candera sereu que tivesse achado o poliedro ‘solunar’, o gel ‘mundominas’ e a pulverulência licopódica ‘milavós’ — caídos das mãos alquimistas de Carlos Drummond de Andrade”.) Ah, Marcelo, candera sereu que tivesse descrito esta visita ao Pão de Açúcar, que está em “Chão de Ferro”, com tantos usos subversivos para a inculta e bela última flor: “Subimos depois para o pôr do sol e o acender das luzes da cidade nas alturas do Pão de Açúcar dos ventos uivantes. (…) Jamais reencontrei coisa igual (…). Estavam presentes todas as cores e cambiantes que vão do verde e do glauco aos confins do espetro, ao violeta, ao roxo. Azul. Marazul. Azurescências, azurinos, azuis de todos os tons e entrando por todos os sentidos. Azuis doces como o mascavo, como o vinho do Porto, secos como lápis-lazúli, a lazulite e o vindo da Madeira, azul gustativo e saboroso como o dos frutos cianocarpos. Duro como o da ardósia e mole como os dos agáricos. Tinha-se a sensação de estar preso numa Grota Azzurra mais gigantesca ou dentro do cheiro de flores imensas íris desmesurados nuvens de miosótis hortênsias — só que tudo recendendo ao cravo — flor que tem de cerúleo o perfume musical de Sonata ao Luar. Malvarosa quando vira rosazul… Aos nossos pés junto à areia de prata das reentrâncias do Cara-de-Cão, ou do cinábrio da Praia Vermelha, o mar profundo abria as asas do azulão de Ovale e clivava chapas da safira que era ver as águas das costas da Bahia. Escuro como o anilíndigo do pano da roupa que me humilhava nos tempos do Anglo-Mineiro. Mas olhava-se para os lados de Copacabana e das orlas fronteiras além de Santa-Cruz e o metileno marinho se adoçava azul Picasso, genciana, vinca-pervinca. As ilhas surgiam com cintilações tornassóis e viviam em azuis fosforescentes e animais como o da cauda seabrindo pavão, do rabo-do-peixe barbo, dos alerões das borboletas capitão-do-mato da floresta da Tijuca. Olhos para longe, mais lonjainda — e horizontes agora Portinari, virando num natiê quase cinza, brando, quase branco se rebatendo para as mais altas das alturas celestes azul celeste azur só possível devido a um sol de bebedeira derretendo os contornos as formas e virando tudo no desmaio turquesa e ouro e laranja dos mais alucinados Monets Degas Manets Sisleys Pissarros. Mas súbito veio o negro da noite acabando a tarde impressionista. As luzes se acenderam em toda a cidade mais vivas na fímbria orlando o oceano furioso. Eu nem lembro como vim rolando Pão de Açúcar abaixo aos trancos e barrancos daquele dia vinho branco…”
Nava nos surpreende a cada página. Contam-se às dezenas ou mesmo às centenas as passagens antológicas: suas análises do caráter mineiro e do catolicismo praticado em Minas; retratos de amigos e de professores do Ginásio Anglo-Mineiro e do Colégio Pedro II; a narrativa da fase boêmia em BH; os passeios pelo Rio; suas aulas de anatomia; as passagens filosóficas sobre o tempo que se esvai; as descrições de comida (no que era, como Proust, especialmente talentoso: “Filosófica, a feijoada completa pelo luto de sua cor e pelos restos mortais que são seus ingredientes é também memento. Depois dela, como depois da orgia, a carne é triste. Não a do prato, a nossa, a pecadora”; “(…) as maiores, as melhores, as mais suntuosas empadinhas que já comi no mundo. Eram pulverulentas apesar de gordurosas, tostadas na tampa, moles do seu recheio farto de galinha ou camarão. Desfaziam-se na boca. Difundiam-se no sangue”). A leitura de Nava difunde-se no nosso sangue e, depois de lê-lo, a carne é triste. E suas lembranças são pulverulentas: espraiam-se pelos nossos sentidos.
Sendo um aficionado, possuo várias edições de seus livros; a da leitura diária é toda sublinhada e anotada. Tenho, claro, as minhas passagens preferidas, como esta descrição, em “Beira-Mar”, de um casal dançando tango: “(…) Ambos na atitude que convém adotar quando se oficia a dança portenha. El hombre malo, com as clássicas costeletas de bas-fonds, empunhava a companheira de modo ao mesmo tempo apaixonado e arrogante, alternando esboços de gestos brutais e olhares de ríspida ternura — a traduzirem a superioridade e o predomínio do cafetão de quem pode vir um beso apaixoando, um bofeton em la raca o puñazo en el mate. Ela com flexuosidades de cobra e a sensualidade elétrica dos roçados de gata medrosa — era uma entrega total de su cuerpo, su potien — dando tudo, até su pasto si fuera necessário. Toda sua mímica era a do medo de pancada, de submissão incondicional — que não excluíam o ar inspirado e a face pré-orgástica que convém exibir enquanto se desliza no andamento moderado, no binário e na figuração rítmica do compasso colcheia pontuada e semicolcheia del gotan. Raramente hablaran e quando o faziam deveria sê-lo en las palabras de vesre del lunfardo — que é o argô dos malandros, ladrões, meretrizes, rufiões, marginais e compadrons de la orilla de Buenos Aires — lama de que brotara incomparável a florazul do tango. Azul, sim, porque essa é sua cor noturna vizul e mais seu cheiro e seu som. (…) A música parecia não ter fim, a Nicoleta e o Francis não paravam de tanguear, não saíam daquele êxtase que é a um tempo dançar, cantar, llorar, sufrir zelos, tener ganas de matar o desear murir de placer, de placer…” Ou esta, quando ele descreve em “Balão Cativo” suas aulas com professores ingleses no Ginásio Anglo-Mineiro, mesclando inglês e português e criando mais prosa de alto nível: “A aula era dada em inglês, por um livrinho inglês e, assim brincando, iam entrando em nós um pouco de matemática e regras de conversação. Fazíamos caixinhas. (…) Make a model of a crayon box with divisions for the crayons just as in the figure five of your book. Are you all there? All right, go ahead and pay attention: the partition must be made of separate strips of paper with long flaps at the bottom and small flaps at the ends. Dedicávamos toda atenção. Cortávamos os papelões, às vezes os dedos e o colorido vermelho já não era só do papel de seda, mas do sangue das nossas mãos. Fazíamos as caixinhas divididas. As simples. Outras, with a lid, de madeira, papelão, de dois materiais in combined wood and cardboard. Mark the cardboard deeply with the knife where it is to be bent. Lá ia o cardboard, o pano da calça, a pele da coxa and more blood. Passávamos aos modelos mais complicados de uma casa, of a table, do teacher’s desk, de match-stands e letters-racks. Precisava atenção, um silêncio enorme — principalmente quando pulávamos para a figura humana. Measure your friend beside you. How many inches is he high? How many steps does he take do go across the room? Medíamos, calculávamos, sempre num silêncio enorme only broken by the cricking of the knives on the wood in strips, enquanto lá fora até o vento calava e a serra do Curral abria, gigantically, suas asas de albatroz”.
(Nava, Nava, a thing of beauty is a joy forever.) Toda essa riqueza está disponível nos livros de Nava, facilmente encontráveis. Mas para se chegar a ela pressupõe-se que haja capacidade de concentração para leituras longas, interesse pela vida de pessoas que não ficaram famosas — os antepassados de Nava —, gosto pelo Brasil, vontade de passar o tempo com algo que não seja mero entretenimento, abertura para entender uma época em que reinavam Édipo e Dom Juan e não Narciso. Nosso repertório crítico pós-moderno talvez não seja suficiente para a tarefa.
Nava matou-se em 1984. Muito se discutiu à época a motivação do suicídio — ele teria recebido um telefonema chantageador pouco antes de atirar em si mesmo nas proximidades da Igreja da Glória. Ora, seja lá qual tenha sido o motivo imediato da sua decisão, o fato é que ele, como já dissera a amigos, sempre fora um “suicidável”. A leitura dos seus livros mostra com clareza por vezes sufocante que tudo aquilo, todo aquele remexer no passado não poderia terminar bem (como ele mesmo escreveu sobre uma paixão que tentava manter escondida: “Mal sabia que todo eu era um cartaz, uma fachada iluminada, um estandarte, um letreiro neon, um anúncio, proclamação, mensagem, revelação, indício, pregão, bando, recado, um berro, um grito — do que sentia”). Tendo se proposto a nos mostrar o que sabia da vida, Nava, nos derradeiros volumes das “Memórias”, acusa as rasteiras que sofreu dos seus semelhantes. A amargura vai num crescendo e, a partir do quinto volume, ele, crítico de tudo e de todos, passa a narrar as suas memórias como se fossem a vida de um alter ego, José Egon Barros da Cunha, talvez para amenizar a contundência do uso da primeira pessoa (mas às vezes ele se trai e, mesmo falando de Egon, troca a terceira pessoa pela primeira). No sexto volume, Egon continua em cena e o rancor atinge níveis difíceis de aturar, prejudicando mesmo a qualidade do texto (também nesse volume toma forma um personagem estranho, o Comendador, com características do próprio Nava e de outros conhecidos seus). Já as poucas páginas que deixou do que seria o sétimo volume, “Cera das Almas”, dão a impressão de terem sido escritas por um Nava que não estava em seu juízo perfeito ou que, no mínimo, sofria de depressão profunda. Lendo-o, sabemos: esse cara tem que se matar, ele vai se matar — e se matou. Seus livros são uma longa carta de suicida e uma verdadeira crônica do suicídio anunciado.
Por tudo isso, espanta-me que ele não seja objeto de estudos, biografias, seminários. Conheço apenas três análises da sua obra: “A Solidão Povoada”, de Monique Le Moing (Nova Fronteira, 1996), “Espaços da Memória”, de Joaquim Alves de Aguiar (Edusp, 1998), e “Memórias Videntes do Brasil”, de José Maria Cançado (UFMG, 2003). Mas uma busca na internet mostra que não há muitas mais. Se é que os códigos politicamente corretos ainda dominam a academia, imagino que Nava seja tido como biógrafo e historiador de um Brasil elitista (logo ele, que insultou o “burguês-níquel”!) — essa turma não consegue nem mesmo entender mal de modo correto os autores dos quais desgosta. Espanto-me, mas não desanimo. Por causa de tudo que recebi de Nava — um equipamento melhorado para tomar a vida nas costas e seguir adiante —, apresento-o sempre a novos leitores. É a dívida que assumi com ele. E nunca deixa de ocorrer o esperado: todos se encantam. Tampouco perco o sestro: em apuros, muitos procuram a Bíblia, mas eu, assim como Vinícius de Moraes, busco o Nava (“Preciso muito falar-lhe/Antes que chegue amanhã:/Pedro Nava, meu amigo,/desceu o Leviatã!”).
Enfim, o fim. Como sou cada vez mais um amontoado de páginas lidas, sinto-me, com os livros de Nava, como o Doutor Juvenal Urbino depois de ler a carta que seu amigo Jeremiah de Saint-Amour lhe deixara antes de se matar (“El Amor en los Tiempos del Cólera”, de García Márquez) — “Jeremiah de Saint-Amour (…) se había puesto a salvo de los tormentos de la memória con un sahumerio de cianuro de oro”. Pois o Doutor Urbino leu a carta de seu amigo e se transformou: “(…) leyó con el aliento agitado, volviendo atrás en varias páginas para retomar el hilo perdido, y cuando terminó parecía regresar de muy lejos y de mucho tiempo”. Também eu, depois de ler e reler os livros que o meu velho conhecido Pedro Nava deixou para mim antes de ter se colocado a salvo dos tormentos da memória, sinto que regresso de muito longe e de muito tempo atrás. E penso comigo: se o mundo mudou e ninguém mais liga para essas coisas, não tem importância — elas vivem em mim.
Assim, para minha ilha deserta levo, portanto, as memórias de Pedro Nava, esse lancinante cante hondo sobre a vida e a morte.
Marcelo Franco é promotor de Justiça e pedro-navista.
via Revista Bula