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A viagem ao inferno de Bruno Ribeiro

“Febre de enxofre” propõe um jogo de espelhos, no qual obra e criador se fundem Sérgio Tavares Especial para o Jornal Opção O mito do homem que sela um pacto com o diabo ganha uma releitura vertiginosa em “Febre de enxofre”, de Bruno Ribeiro. Tomando o clássico “Fausto”, de Johann Wolfgang von Goethe, como tábua de comparação, a estreia no romance do escritor mineiro radicado na Paraíba revisita algumas das composições que dão norte ao texto trágico do autor alemão: a procura desbragada por um sentido na vida, os excessos, a rivalidade entre o mundano e o etéreo, o desejo que se torna a contundência do amor. A única diferença está na recompensa. Não se trata de aprisionar a alma, mas o corpo, a matéria viva, esse invólucro de pele, carne, ossos e excreções. A história tem início com uma despedida. Yuri Quirino, um poeta celebrado por seu primeiro livro, observa a namorada Luciana embarcar num avião com destino ao Rio de Janeiro, onde passará uma longa temporada. Ainda no aeroporto, abalado pelo frescor da separação, o personagem é abordado por um indivíduo estranho — “cabelos longos e negros, olhos e lábios finos, porcelana em forma de gente” — que se apresenta como Manuel di Paula, um fã, e afirma ter uma proposta de trabalho: escrever sua biografia. Para tanto, Quirino deveria se mudar para Buenos Aires, cidade natal do biografado, cuja mansão serviria de hospedagem. O trato também envolveria acerto financeiro. “Não tenho tempo. Tem sim. Acho que não. O seu tempo é eterno, Yuri. Não te apresses. Não te apegues. O tempo caminha na sua direção”, altercam. Apesar da insistência do desconhecido, o poeta decide voltar para Campina Grande, onde afoga suas mágoas na esbórnia, varando a madrugada entre a fauna local constituída por prostitutas, travestis, adictos e artistas. Num momento, está num cabaré; num outro, num lançamento de livro. Neste último, reencontra Malena, uma ex-amante, que agora namora um playboy dublê de poeta. Quirino transa com ela, transa com prostitutas, transa poesia e com travestis. Passa os dias bebendo com amigos, queimando o dinheiro que tem, enquanto não cola o rosto na tela do computador, chorando a saudade de Luciana em conversas via Skype. Durante essa aventura hedonista, a figura misteriosa de di Paula é sempre uma sombra. Parece estar em todos os lugares, singrando o espaço-tempo, a fim de que o poeta o biografe. Chega, inclusive, a assediar Luciana, no Rio de Janeiro. Quirino continua o rechaçando o quanto pode, escorado na solidez complacente do pai. No entanto, quando a extravagância se revela uma jornada (quase fatal) de autodestruição, ele aceita o serviço e toma o avião rumo à Argentina. A contextura dessa primeira parte se dá por meio de uma narrativa ágil, por vezes frenética, que muito lembra a carpintaria de autores como Luís Antônio Giron e, especialmente, Reinaldo Moraes. Blocos textuais que se conformam a partir de um vernáculo de transgressões e obscenidades, cujos significados transcendem o enredo. Neste caso, um exame sardônico da poesia contemporânea brasileira (“com a pós-modernidade, tudo é poesia) e da mercadização de autores de redes sociais que, na verdade, não passam de “paredes em branco”. Ribeiro desconstrói a forma, encavalando prosa linear e diálogos, abrindo apêndices, num ritmo que repercute a psiquê de seu protagonista. Achando um termo adequado na fala do próprio personagem, algo como “Beethoven dopado de LSD”. Daí tem início a segunda metade, e o romance parece girar uma chave de contenção. Assim como acontece na parte dois de “Fausto”, a trama vai se enchendo de um clima mais velado, reduzindo o compasso e indicando outras intenções. O passado de di Paula (e, por conseguinte, o da sua família) vai sendo descoberto, tal uma história dentro da história (ou um fantasma dentro de um fantasma), na qual o autor propõe uma analogia entre não pertencimento e vampirismo. As referências também mudam: vão de Edgar Allan Poe (“A queda da casa de Usher”) a Julio Cortázar (“Casa tomada”). Ribeiro constrói uma viagem ao inferno, que é uma viagem pelo sentido identitário, pela literatura que avança contra a própria literatura para consumi-la e fazer, do seu livro, uma experiência anônima. Com isso, o que se tem, afinal, é um jogo de espelhos confrontados cujos aços refletem o próprio autor. A quebra da barreira entre obra e criador, mostrando que a escrita nem sempre é uma maneira de expurgar demônios, mas também a chance de se fazer um pacto com o diabo. Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc Leia trechos do romance de Bruno Ribeiro: TRECHO 1 ¿O que há em minha boca sem dente? ¿Só abismo? Um labirinto de espelhos e dentro de cada reflexo uma luz contendo as Américas, milhões de olhos derretendo, as mulheres da nossa, minha vida, pedaços de cigarros, engrenagens rodando e violentando colossos, três milhões e quatrocentos e quatorze padres loucos invocando Lúcifer para destruírem o totalitarismo do filho Jesus Cristo, desertos equiláteros deslizando pelas gengivas pútridas, longos cabelos negros tornando-se uma só química capilar, nervos de aço, um tumor no cu, cancro mole, pai comendo vinte e duas garçonetes da cidade natal que não lembro mais o nome, a menina que disse que me esperava, ela nos espera, um redemoinho de poetas, um dinossauro em decomposição, sombras me perseguindo, a pobreza em forma concreta: é um mar sem água, e finalmente vi, vimos, minha, nossa morte; no rosto dele, em meu rosto, poeta, coagulam tripa e picos na veia, eu sou aquilo que todos conhecem e temem, admiram e odeiam, dentro das galáxias reproduzem meu nome, na minha boca eu gargarejo escritores e cuspo gênios, eu sou os pingos da chuva que deslizam pelo corpo humano, a projeção do passado, a metafísica do cão, a máquina sem capital, a luz branca do inferno, o deslizar de todas as fezes do mundo: você. ¿O que você fez? Perguntei. Ele tirou a campânula do meu peito, uma fumaça subiu, ele disse: você está pronto. ¿Pronto? Sim, você está pronto para escrever a biografia de Manuel di Paula, poeta. Sentia uma vertigem sem fim, tombava dentro da minha própria constituição humana: perdido. Amanhã começamos. Beatriz o levará até seu quarto. Fui para o meu quarto em ziguezague. Beatriz sorriu, escreveu em um papel buenas nochese saiu. Dormi. Dia seguinte, respirei e fui conhecer essa cidade que não era uma cidade, era uma hecatombe de mim mesmo. De nós. Não havia mais retorno. TRECHO 2 ¿Sabe o que ela disse para mim antes de partir para o Rio de Janeiro? Estávamos no aeroporto, sozinhos, de mãos dadas. Minutos depois eu conheceria este puto do Manuel di Paula, mas neste momento, lhe juro, eu sabia que suas palavras eram verdadeiras, sabia. Yuri, ela disse e sua voz era firme, ¿você parou pra pensar em sua fraqueza? Eu parei para pensar na minha. Não importa, mas sou instável, oscilante, sei que você odeia isso, ¿mas sabe por que você odeia? Porque você tem medo do futuro. Você calcula cada passo, pois tem medo de cair, você teme as feridas e para isso criou uma carranca de certezas; você clama por aí que é cheio de cortes e que são elas que fazem você ser o escritor celebridade underground que é; falácia. O escritor em você nasceu do medo. Você teme tanto que escreve, difere sombras no papel, reproduz um grito seco que nunca poderia ter saído de ti, mas transborda da caneta; ¿sabe por que te amo? Porque você é um homem cheio de medos e são eles que fazem de você tão cheio de paixão e vontade; pois um homem com medo é um homem que não perde tempo, é alguém que precisa planejar tudo antes que seja tarde, é intenso por vida; você vive como se sempre fosse tarde, estou atrasado é seu dizer favorito, mesmo que não esteja; a pulsação no seu peito passa para o meu e aqui estamos; minha oscilação e dúvida nada mais são do que uma defesa contra sua loucura. Sem meus cuidados, nós estaríamos mortos, Yuri. Minha tensão, pilha, voz grave, nervosismo, ansiedade, não chegam perto do que passa no seu corpo, no interior de ti; a curvatura do seu demônio-bicho toma o aeroporto, toma João Pessoa, toma é tudo, é tão forte que um dia vai ganhar vida, vai comer gente ao redor, universo, galáxia, mastigar o próprio Deus e Diabo; eu conheço esse bicho, Yuri, nunca o vi, mas conheço. Eu não tenho medo dele, posso senti-lo com sua boca de eco, posso escutá-lo e não tema, pois estamos juntos, é sua loucura que me incentiva a ser forte e é minha ansiedade que o incentiva a ser um protetor e é seu medo que me incentiva a ser dura e é minha paralisação que o torna ativo; eu vejo você, Yuri. Eu poderia ter voltado de diversas maneiras para a Paraíba, amorosa, romanticazinha, mimada, mas não temos tempo para isso, algo maior do que nós está pairando no ar: o seu bicho, Yuri, é dele que tô falando. E é dele que você precisa cuidar. Agora saiba: eu quero você e estarei do seu lado; você pode ver meu bicho também, ¿não pode? Por isso que nunca seremos capazes de nos esquecermos... E você imaginou que eu voltaria como relâmpago, daqueles kamikazes que se imortalizam no céu na forma de cicatriz. Não. Eu retornei tormenta, daquelas que puxam tudo para o ralo, inundando qualquer rastro de rua. TRECHO 3 ¿E é amor? Aquela arma apontada no peito. ¿E é dor? Interrompo a traveco e em meio a gritos enlouquecidos, eu digo: nunca rime amor com dor, caralho. Já disse, ¿não disse? Disse menino, oxe, fique calmo. É difícil ter inspiração, a gente não somo artista não. ¿Calmo? ¿Vocês pensam com o intestino? ¿E a novinha? ¿Não veio hoje? As duas travecos ficam caladas. Nós três estávamos em uma das casinhas barrocas que ficam na frente da rodoviária velha. Locais que são tomados de conta por velhinhas rugosas que cobram dez reais a hora em um quarto. Cafetinas antigas, daquelas que pariam menino como se cagassem. O quarto fedia a estragado; cama de casal no chão e uma mesa de centro. Papéis e jornais enfeitavam o espaço; nós sentávamos na cama e escrevíamos com as canetas que eu trazia de casa. Elas arregalaram os olhos e começaram a me escutar. Poesia, queridas, fiquei de pé, é se perder em território linguístico. Já diria o infeliz Octavio Paz, “somos filhos do romantismo alemão”, filhos dessa ideia da inspiração, da luz no poeta, o abençoado das palavras, ora não, não existe essa abominação. Antes os verdadeiros pioneiros do século XIX, o simbolismo, a decadência, somos nós; Rimbaud, Mallarmé e Baudelaire, antes este último nome, o primeiro dos malditos e modernos. Aqui para vocês, uma cópia de Flores do Mal... Leiam e, na próxima classe, digam o que acharam. Digam da maneira de vocês, mas digam. Já diria Baudelaire, “ser sempre poeta, incluso na prosa”, atrevo a dizer, agora citando Yuri Quirino - eu próprio, caso não saibam - ser sempre poeta incluso na vida. E vocês, assim como eu, são poetas na vida. A ruptura é um retorno às origens e o dia-a-dia de vocês é pura ruptura. Vocês têm o que, mas não tem o como. Mas ter o que é mais importante do que o como. O que há de estudantes de literatura preenchidos pelo como não há como contabilizar, são bilhões, trilhões, e nenhum deles tem o que, o que, o que, ¿o que vou contar? Nada. Baudelaire vivia atrás do que, bebendo putas e comendo vinhos. Rimbaud abandonou tudo, ainda ninfeto, para virar traficante na África. ¿E Artaud? ¿Que viveu sua própria obra transgressiva, respirando utopia e vomitando manifestos dilacerados e falidos? Eles tinham vida, amores, cheios de que, atravessados pelo como, resultando a mistura em dinamite lapidada. ¿O que deve morrer para a escrita surgir? Matar amores, gente, cotidiano, trabalho, algo deve tombar. Dissecar a linguagem e jogá-la em cima do cadáver, só assim a poesia pura renascerá. Repitam comigo: ¿O que deve morrer para a escrita surgir? As duas ficam sem jeito. Começo a pular e grito: repitam. Elas repetem: ¿O que deve morrer para a escrita surgir? Você, eu aponto para a travesti de peruca loira, escreva uma poesia agora, sem pensar em métrica ou rima, assassine o soneto: escreva algo envolvendo morte, isso mesmo, quero algo com efeito poético e que carregue finitude. Ela pisca os olhos freneticamente, empolgada, pega a caneta, pensa por alguns segundos e começa a escrever. TRECHO 4 A depressão vinha. Luciana não foi exclusividade, com Malena também teve distância no relacionamento. Desde pequeno, em Minas Gerais, após mudanças e mais mudanças de cidades, eu lutei contra a dor do adeus. Sinto-me feito aqueles soldados traumatizados do Vietnã, ao invés de crises sobre cadáveres, tenho crises de amor. Não há como produzir dessa maneira, sabendo que a mulher que você tanto quer está em outro lugar. Nunca consegui concretizar um relacionamento normal, sempre teve barreiras em forma de bueiros, longos e negros, tão afastados das minhas mãos que nem conseguiria medir quilometragem. Fecho o notebook e não respondo o recado de Luciana. Preso em Campina Grande, sem trabalho, sem escrever, sem nada. Meu pai é um bom homem, vem até minha casa e diz que pagará o aluguel, mas que não rola de ser assim para sempre. Sei que você é poeta, filho, ele diz, sei que você ganhou prêmios, mas porra, vai trabalhar, cacete. E eu abaixo a cabeça. Observo a varanda, três andares, no máximo conseguiria ficar aleijado. Tentar se matar e fracassar é uma das coisas mais patéticas do universo, a outra são as coisas que dizemos quando estamos amando. Ou seja, eu estava próximo de ser o maior patético do universo. Crise de gente branca é deplorável. Decido dar uma volta pelo meu bairro, Catolé, e vejo o quanto cresceu. Agora tem prédios onde havia barro, tudo desenvolve, cresce dentro do ecossistema das moradias humanas, prolifera feito barata e não existe remédio que as extermine. Agora é obra diariamente, gritos de pedreiro, assovios, movimento, tudo indo para frente. Agora é imobiliária, martelo, trator, pastilhas, argamassa, base, mão, capacete, madeira, capital, investimento, e só sei que tudo mudou. As coisas evoluem, os corpos não. Movimento é vida. TRECHO 5 O idoso disse que quando o pai foi encontrado morto, a cidade passou por um momento de horror. A filha do prefeito estava grávida e, quando foi parir, teve uma criança sem cabeça e braço. O bebê nasceu vivo, chorava, ria, vivia: ninguém sabia como, mas era possível escutar seu choro reverberando por toda a cidade; os médicos tentaram encontrar os membros dentro da vagina da mulher, mas não havia nada, literalmente nada; o bebê sem cabeça e braço chorava sem parar, assombrando a todos da cidade. Até que o marido da mulher matou o filho e foi preso. Cinco dias depois, o marido foi encontrado em sua cela transformado em um bode vermelho: os policiais o mataram e jogaram a carcaça do animal no rio; dois dias depois, o rio estava vermelho; as plantações deixaram de crescer; os alimentos apodreceram; chovia pregos diariamente; a maioria da população se mudou para a capital, e os que ficaram tiveram que passar por uma temporada terrível e escassa de comida, pois tudo apodrecia. Os moradores das cabanas enlouqueceram e muitos se mataram e outros imploravam ajuda a Deus. Todos os bebês nascidos neste período vinham com alguma deficiência, a maioria nascia com demência ou com alguma parte do corpo faltando. Bebês decapitados e insanos foram se infestando pela cidade de Tigre; maridos bodes, mulheres perdendo os dentes e se tornando ninfomaníacas, bandidos se transformando em ratos, chuvas ácidas toda quinta-feira e eventuais terremotos e trovões de sangue; a maldição cessou quando a mansão caiu no Delta do Rio Paraná; o idoso não sabe a data em que isso aconteceu, perguntei o ano ao menos, mas ele virou as costas e pediu para eu esquecer essas coisas: a família di Paula viveu em todos os séculos, dias, anos, não tem um dia para isso, só há esquecimento e é o que se deve fazer, ele disse em castelhano e fechou a porta envelhecida da sua casa. Manuel di Paula carrega séculos de trevas em suas costas, uma maldição familiar, uma herança que o aterroriza até hoje. E também aterroriza a todos nós que aqui resistimos e escrevemos o que restou do todo.

Raduan Nassar obriga o leitor a subir o Aconcágua depois de escalar o Everest. É estressante

O escritor deve deixar o pobre do narrador respirar de vez em quando. É preciso deixá-lo esticar as pernas, tomar um gole d’água, ir à cozinha beliscar um pedaço de queijo

“Um prefeito precisa do governo estadual todos os dias de sua administração”

Reeleito para mais um mandato à frente de Hidrolândia, o novo presidente da AGM diz que é preciso haver forte mobilização em Brasília por parte dos gestores municipais para conseguir mudar o quadro desfavorável

Apesar de ainda ser supervalorizado, Concretismo não passou de um fiasco

Buscando reagir à “perda de qualidade” na poesia brasileira, observável na passagem da geração de 1930 para a geração de 1945, o Concretismo revelou-se um movimento catastrófico

Tradução inédita de Herbert Spencer revive “Filosofia do estilo”, um clássico esquecido

Com tradução de Irapuan Costa Junior, publicada pela Cânone Editorial em 2016, o público brasileiro tem agora acesso a uma das reflexões mais importantes sobre a linguagem, elaborada pelo filósofo Herbert Spencer

Carson McCullers e a arte de amar os excluídos

Em 19 de janeiro de 2017, comemora-se cem anos do nascimento de Carson McCullers , a escritora estadunidense que retratou a solidão humana com tragicidade, compaixão e senso de humor

A possessão demoníaca, o cinema e a navalha de Occam

Não é de espantar que o movimento Holliness e o surgimento de seitas pentecostais, bem como seu correlato católico, a Renovação Carismática, promovam espetaculares sessões de cura e libertação e forneçam os modelos culturais seja do entusiasmo divino, seja do furor diabólico [caption id="attachment_87361" align="alignleft" width="620"] Detalhe do quadro "Sabá das Bruxas" (1746), de Francisco Goya[/caption] Philippe Sartin Especial para o Jornal Opção Tendo os demônios saído do homem, entraram nos porcos, e a manada precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do lago, e se afogou. (Lucas, 8: 33) 1. A possessão pelo demônio no mundo Ocidental (sobretudo nos meios católicos), tal como hoje a conhecemos, é uma formação cultural típica dos séculos XVI e XVII – a época da “caça às bruxas” –, período no qual o número de casos reportados (seja de indivíduos atormentados, seja de possessões coletivas) foi inaudito. Mais que um fenômeno quantitativo, todavia, as feições que adquiriu em meio a crises confessionais, acusações de bruxaria, neuroses sexuais em conventos e psicopatologias reais tornaram-no o símbolo de um mundo controvertido: a carne convulsiva das endemoninhadas (na expressão de Michel Foucault), desdenhada pelos iluministas como tola superstição e desencantada, já no século XIX, pelo racionalismo psiquiátrico (e psicanalítico), teima em oferecer-se aos olhos da modernidade no escuro dos porões de igreja, ou das salas de cinema. O mundo das reformas e revoluções – que, afinal, é o nosso mundo – não pode ainda prescindir deste fenômeno misterioso, relutante e incompreendido, que insistimos, tolamente, em chamar de “medieval”. [caption id="attachment_87368" align="alignleft" width="300"] "Jesus exorciza geraseno" | Iluminura medieval[/caption] Presentes em diversas culturas espalhadas pelo mundo todo, e ao longo da História, os fenômenos de possessão enraizaram-se na cristandade desde os seus primórdios: os Evangelhos contêm descrições memoráveis dos embates, geralmente fulminantes, entre Jesus e os espíritos malignos. Talvez o mais significativo seja o dos demônios de Gerasa: possuído por uma legião e apartado da vida em sociedade, um homem dilapidava-se aos gritos entre as sepulturas, até que Cristo – num gesto apocalíptico, anunciando a chegada do Reino – libertou-o de seus tormentos, e a miríade demoníaca tomou posse de uma vara de porcos, lançando-a no mar. Muito embora tais narrativas forneçam os contornos do fenômeno, é preciso notar que a sua violência e negatividade são características peculiares de uma interpretação cristã de mundo, calcada no conceito de Diabo e que entende a tomada do corpo e o eclipse da consciência como uma forma de desordem. Em muitas culturas, todavia, outras formas de possessão (que nada tem de demoníacas) exercem importantes papéis culturais, sendo encorajadas e cultuadas. Mas fiquemos com o Ocidente, que é o que nos interessa. Durante o período medieval os relatos desenvolvem-se lentamente. Presentes nalgumas crônicas e, sobretudo, nas vidas dos santos, a possessão e o exorcismo cumpriam uma função pouco mais que retórica: eram símbolos da luta travada entre o cristianismo e as superstições, a partir da qual a magia era substituída pelas devoções sacramentais e os feiticeiros pelos sacerdotes (ou pelos santos). Foi apenas no “outono da Idade Média” (na expressão do grande historiador Johan Huizinga), quando uma espiritualidade mística extrapolou os muros conventuais e atingiu o coração dos leigos, e quando, igualmente, iniciou-se o terrível capítulo da caça às bruxas, que as possessões demoníacas adquiriram maior notoriedade. Este novo ambiente forneceria os elementos para o seu enredo típico: o indivíduo – geralmente mulher – que por meio de seus próprios pecados (geralmente sexuais) ou por um ataque de terceiros (sob a forma do malefício) percebe-se tolhido em seus pensamentos e ações por uma presença cega e obscura; os sacerdotes que modulam o seu sofrimento em termos religiosos, tornando-o operativo enquanto possessão, pronta para se dissolver nos extenuantes exorcismos; por fim, após disputas e controvérsias, propaganda (do clero) e edificação (dos ouvintes), a crise que amaina, a possuída que se vê livre e reconciliada com o grêmio dos cristãos. Segundo historiadores como Brian Levack (The devil within. Possession and exorcism in Christian West, 2013, Yale University Press, 346 pp.) foi na Época Moderna, quando católicos e protestantes se anatematizavam, fogueiras ardiam em praça pública e, por outro lado, a ciência de Galileu e Newton dava seus importantes passos, que os sintomas mais comuns da possessão se fixaram: seja os fisiológicos (convulsões, dores, rigidez dos membros, ou flexibilidade muscular e contorsões, força sobre-humana, levitação, inchaço em algumas partes do corpo, vômitos, perda de funções corporais, perda de apetite), seja os comportamentais (falar línguas estranhas, usar de vozes incomuns, transe, clarevidência, blasfêmia, aversão a objetos sagrados e uma conduta imoral). Foi igualmente neste período que o rito do exorcismo adquiriu os contornos com que hoje o identificamos: bençãos, ladainhas, deprecações e conjurações. Com efeito, o primeiro ritual oficial da Igreja surgiu apenas em 1614. Com o passar dos anos, todavia, o fenômeno foi pouco a pouco perdendo a credibilidade: cenários extravagantes como o da possessão coletiva das freiras ursulinas em Loudun, a descoberta de fraudes, os avanços do pensamento científico e, por fim, as realizações da medicina mergulharam as possessões, já no século XIX, numa aura de desencanto e decadência, até transformá-las num objeto de curiosidade, espécie de símbolo do fanatismo do passado. Estudos como os de Charcot, Janet e Freud revelaram mecanismos psíquicos desencadeantes de fenômenos semelhantes à possessão, definindo-a ora como neurose, ora como histeria. Foi no campo das artes, já no século XX, que a possessão demoníaca recobrou suas forças e tornou-se novamente relevante para a cultura ocidental: após sucessos literárias como os de Georges Bernanos (Sous le soleil de Satan, 1926) e Aldous Huxley (The devils of Loudun, 1952), seria a vez do cinema trazer o diabo à tona. 2. O cinema da segunda metade do século XX foi pródigo em realizações sobre o tema da possessão. Gostaria de destacar as principais: Matka Joanna od Aniołów, de Jerzy Kawalerowicz (1961) vencedor do Prêmio Especial do Júri, em Cannes, e baseado na famosa possessão de Loudun; The Devils, de Ken Russel (1971), sobre o mesmo evento, com destaque para as atuações de Oliver Reed e Vanessa Redgrave; The Exorcist, de William Friedkin (1973), que recebeu nada menos que dez indicações ao Oscar (vencendo como Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Mixagem de Som) e sete ao Globo de Ouro (vencendo em quatro categorias); Sous le soleil de Satan, de Maurice Pialat (1987), vencedor da Palma de Ouro, e com seis nomeações ao César. [caption id="attachment_87365" align="alignleft" width="620"] "O exorcista" ("The Exorcist"), 1973. Direção: William Friedkin[/caption] A partir dos anos 2000, uma explosão de películas caça-níqueis tomou conta das salas de cinema, desde filmes relacionados a O exorcista (Exorcist: The Begining, de Renny Harlin, em 2004, e Dominion: Prequel to the Exorcist, de Paul Schraber, em 2005), buscando redimir as péssimas sequências de décadas anteriores (Exorcist II: The Heretic, de John Boorman, em 1977 e The Exorcist III, dirigido pelo proprio W. P. Blatty, em 1990) – e falhando miseravelmente, diga-se de passagem – até produções puramente formulaicas, como The Possession, de Ole Bornedal (2012), The devil inside, de William Brent Bell (2012) e o sofrível The Vatican Tapes, de Mark Neveldine (2015). Destacam-se filmes regulares como The Last Exorcism, de Daniel Stamm (2010) (com um final, todavia, decepcionante) e The rite, de  Mikael Håfström (2011) que, se não trazem nada de novo, são um entretenimento honesto. As produções mais relevantes, todavia – pela abordagem, e boas atuações – são The Exorcism of Emily Rose, de Scott Derrickson (2005), Requiem, de  Hans-Christian Schmid (2006), que deu a Sandra Hüller um Urso de Prata – ambos sobre o caso Kinglenberg (1976) – e, por fim, După dealuri (2012), que em Cannes rendeu a Cristian Mungiu o prêmio de Melhor Roteiro e a Cristina Flutur e Cosmina Stratan o de Melhor Atriz. Paralelo ao avanço “demonológico” no cinema, os casos de possessão aumentaram significativamente na segunda metade do século XX. Hoje são milhares os exorcismos realizados todos os anos em diversas dioceses mundo afora – seja nos países católicos da Europa e da América Latina, seja nos Estados Unidos – onde a busca por consolo espiritual – ante males geralmente bem mundanos – convive com um renovado interesse nos aspectos extraordinários da vida religiosa. Não é de espantar que o movimento Holliness e o surgimento de seitas pentecostais, bem como seu correlato católico, a Renovação Carismática, promovam espetaculares sessões de cura e libertação e forneçam os modelos culturais seja do entusiasmo divino – visível nas explosões teatrais da glossolalia – seja do furor diabólico. Soma-se a tais fenômenos a crescente divulgação da pastoral exorcística por figuras icônicas como o eufórico passionista padre Gabriele Amorth, responsável pelo revigoramento do ritual no coração de Roma, fazendo-se presente com inúmeras publicações, aparições televisivas e um famoso programa de rádio. [caption id="attachment_87366" align="alignleft" width="300"] A jovem estudante alemã, Anneliese Michel, morta após sessões de exorcismo, em 1976[/caption] O contemporâneo interesse pela demonologia, pela possessão e pelos exorcismos, oferece a ocasião de um raciocínio no qual o historiador, acostumado à navalha de Occam, frequentemente se compraz: seria a publicidade do fenômeno a responsável pelo incremento nos casos de possessão? Me lembro de ter mencionado, não há muito, um certo “caso Kinglenberg”: trata-se da dolorosa possessão de uma jovem estudante alemã, Anneliese Michel, e das catastróficas sessões de exorcismo que, em 1976, culminaram na sua morte. O episódio suscitou animosas reações da opinião pública e de setores liberais da Igreja (não havia muito que uma teologia avessa ao tradicional conceito do Diabo se afirmara entre os teólogos de língua alemã). Pensou-se que uma crença equivocada nos poderes diabólicos – como a da própria Anneliese e de sua família, bem como dos exorcistas envolvidos – desse azo a situações descontroladas com consequências muitas vezes fatais. Por trás da possessão e de suas críticas palpitava o estrondoso sucesso de Friedkin. Teria a narrativa de Reagan e Pazuzu extrapolado o nível do entretenimento e suscitado possessões verdadeiras, no mundo real? Ou, ao contrário, seria o retorno destas práticas a ocasião de que se beneficiara o filme, para popularizar-se como nenhuma película de terror até então? É certo que, de modo diverso do que as cenas isoladas – hoje mesmo ridículas – dos malabarismos da garota podem levar a crer, o mérito de O exorcista foi atingir, ao meu ver, um reservatório íntimo de emoções e crenças que o visual gore e os jumpscares dos filmes atuais não conseguem senão arranhar. Talvez, como na Época Moderna, quando o paradigma da possessão esteve em pleno funcionamento, a materialidade e a paranóia do terror de Friedkin tenham posto o público ocidental em contato com aspectos da própria cultura que jaziam candidamente adormecidos. O filme toca nos caracteres centrais dos sintomas de possessão: em seu terror crescente, claustrofóbico e angustiante, a eficaz intensidade da religião transparece como uma possibilidade real de autocompreensão e transformação. Os ateus dificilmente são possuídos. 3. Estabelecer uma relação de causalidade entre o filme de 1973 e os sintomas de ataque diabólico, hoje em dia corriqueiros no Ocidente cristão, parece-me um exercício de futilidade. Uma simples correlação, todavia, é muito mais que plausível, embora coloque questões de difícil resolução. Permito-me uma pequena digressão à grande obra de Carlo Ginzburg, Storia Notturna, de 1989 (História noturna, tradução de Nilson Louzada, Cia. De Bolso, 2012, 479 pp.). Decifrar o sabá – a misteriosa reunião das bruxas com o Demônio, um mito que gerou pânicos persecutórios na Época Moderna – significou uma série de escolhas de caráter teórico e metodológico: era preciso separar, nos relatos compilados pelos inquisidores, os lugares comuns repetidos pela pressão dos interrogatórios (muitas vezes sob tortura) das informações fornecidas pelas supostas bruxas que contrastavam com os saberes demonológicos. Numa palavra, tratava-se de rastrear as origens dos diversos elementos narrativos, numa pesquisa guiada por pistas aparentemente irrelevantes e comparações em grande escala, que consagrou justamente o já célebre historiador italiano. [relacionadas artigos=" 99959 "] Entre as complexas conclusões de Ginzburg, uma é preciso reter para o que nos interessa: a viagem noturna, o contato com o mundo dos mortos – elementos folclóricos deslindados por sua análise do estereótipo da bruxaria – não implica tão somente a fatídica pergunta “quem vem primeiro, o relato ou o fato?”. Ela ilumina a raiz da própria idéia de narrativa: ter estado e retornar para dar notícia. É, por assim dizer, uma espécie de pré-condição. Todavia, a narrativa não se cria ex nihilo, mas resulta de um aprendizado, donde a importância do relato. Ora, podemos transpor suas indagações para o universo, igualmente misterioso, das possessões. A pergunta a ser feita, a partir destes problemas é: o que possibilita a narrativa silenciosa que um indivíduo no século XXI, sentindo-se possuído, recita a si mesmo, no âmago de sua intimidade? Não penso que seja possível ignorar o papel desempenhado pelas narrativas cinematográficas nestas questões. Penso que seja o meio mais eficaz de difusão de tais modelos – com maior alcance, inclusive, que as obras literárias que lhes deram origem. Donde uma segunda pergunta: o que torna estes filmes tão bem aceitos entre uma larga parcela da população? Penso que podemos aprender muito a partir destas duas questões. Philippe Sartin é doutorando em História pela Universidade de São Paulo (USP)

O ritual da queda: as traduções de “L’Albatros” de Baudelaire

O dândi vê-se acorrentado a uma sociedade pútrida que o aparta do Ideal. Não mais versando o sublime, deve-se voltar ao baixo, ao cotidiano, onde a vida, como diria João Cabral, fala com palavras agudas [caption id="attachment_87215" align="alignnone" width="620"] "I Shot the Albatross". Detalhe de uma das ilustração de Gustav Doré para o livro "The Rime of the Ancient Mariner", de Samuel Taylor Coleridge[/caption] Pedro Mohallem Especial para o Jornal Opção Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers, Qui suivent, indolents compagnons de voyage, Le navire glissant sur les gouffres amers. À peine les ont-ils déposés sur les planches, Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux, Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches Comme des avirons traîner à côté d'eux. Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule! Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid! L'un agace son bec avec un brûle-gueule, L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait! Le Poète est semblable au prince des nuées Qui hante la tempête et se rit de l'archer; Exilé sur le sol au milieu des huées, Ses ailes de géant l'empêchent de marcher. (“L’Albatros”, Charles Baudelaire ) Quando falamos da poética de Charles Baudelaire, logo nos vem à mente um apanhado de características marcantes: o requinte formal com ares de ruína, o simbolismo carregado de liturgia e revolta, o olhar de camarote à miséria humana e a coexistência do mármore e da carniça. Pode-se dizer que esse conjunto de elementos contraditórios compõe seu principal motivo: a expressão da modernidade, contraditória por excelência. Mas o que se entende por modernidade e moderno no contexto de Baudelaire? Decerto todas as mudanças que as unidades social, econômica e política enfrentavam, com a decadência da monarquia e ascensão da burguesia e da classe operária, com o progresso industrial, que transformava as pequenas vilas em núcleos de calor e burburinho, e com um nova compreensão de sociedade: um coletivo de homens de morais díspares, guiados por propósitos individuais. Aos olhos daqueles que primavam pelo Belo e pelo Sublime, a modernidade era uma ameaça à pureza moral do homem e de suas ideias. Dessa aversão ao progresso, hastearam-se as bandeiras de escolas literárias como o Romantismo, que buscara a fuga sobretudo no exótico e no onírico, e o Parnasianismo, que propunha uma regressão ao passado e à harmonia grega. Baudelaire hasteara sua bandeira justamente contra esses ideais. [caption id="attachment_87218" align="alignleft" width="300"] Charles Baudelaire (1821-1867)[/caption] Les Fleurs du Mal, seu maior legado, representa um marco na literatura, na poesia e na compreensão do homem moderno; não à toa, Otto Maria Carpeaux chama o poeta de “fundador da poesia lírica moderna”. “L’Albatros”, dentre os inaugurais do livro, é um poema emblemático tanto para a obra do francês quanto para toda uma geração decadentista que se levantava no ocidente contra a mesmice e a monotonia que se tornaram o Romantismo e o Parnasianismo (excetuando-se, claro, os grandes autores dessas escolas, que, a despeito das divergências ideológicas, permaneceriam exemplares ao gosto moderno). Escrito em alexandrinos franceses, seus quatro quartetos descrevem o sadismo de uma tripulação que captura albatrozes no alto-mar, torturando-os e rindo de seu desajeito; ao fim, tem-se a comparação que sela as imagens do poema: o poeta é como o albatroz que, exilado no chão, não pode andar devido à inconveniência das asas gigantescas. Bem mais que um símbolo, esse poema é uma alegoria. O albatroz exilado no solo sangra a cada passo desferido contra o chão de pedra em meio ao caos da multidão latente – e assim é o poeta moderno que se afoga no escarcéu das cidades: perdida a capacidade de voar, perde também seu posto como príncipe das alturas. Semelhante argumento em símiles bem parecidos é apresentado no poema anterior, “Bênção”, no qual acerca do poeta lemos, pela tradução de Ivan Junqueira (As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 131), que: Às nuvens ele fala, aos ventos desafia E a via-sacra entre canções percorre em festa; O Espírito que o segue em sua romaria Chora ao vê-lo feliz como ave da floresta. Os que ele quer amar o observam com receio, Ou então, por desprezo à sua estranha paz, Buscam quem saiba acometê-lo em pleno seio, E empenham-se em sangrar a fera que ele traz. Além de abordar alguns dos principais motivos dAs Flores do Mal, i.e., o Exílio, a Queda, a Multidão, o Spleen e o Sublime, “L’Albatros” prenuncia a nova identidade do Poeta ante a modernização do final do século: o dândi acorrentado a uma sociedade pútrida que o aparta do Ideal. Não mais versando o sublime, deve-se voltar ao baixo, ao cotidiano, onde a vida, como diria João Cabral, fala com palavras agudas. Há que se perceber o avanço dessas ideias: como dito anteriormente, o que reinava no ocidente então era a ideologia emancipatória de românticos e parnasianos. Aqueles, fugindo ao progresso, voltavam-se ao exótico e ao esotérico; estes, inspirados pelo passado remoto da Grécia e pelos ícones artificiais que a representavam, promoviam o autoexílio na Beleza e a arte com o fim em si própria, sem interesse no engajamento social. De um, Baudelaire herdou o catolicismo e o satanismo; de outro, a mitologia e a perfeição formal. No entanto, se nele reencontramos a questão do Exílio, esta já é tratada de maneira completamente diversa: o poeta que se trancava em seu gabinete (a famosa torre de mármore), abrindo seus braços para o Etéreo e os ouvidos para a voz de Deus, é agora um transeunte privado desse posto de xamã. Sobre o tema do exílio em “L’Albatros”, diz Ivan Junqueira (Baudelaire, Eliot, Dylan Thomas: três visões da modernidade. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 71): "[...] encontra, ao menos para nós, sua mais alta expressão poética na insólita imagem desse pássaro privado do espaço, dessa ave que se arrasta, “ridícula e sublime”, entre as vicissitudes de um mundo que não é o seu. Poder-se-ia conceber imagem mais tangível e tramática da Queda, da expulsão do Paraíso, do que a desse majestoso e todavia impotente albatroz lançado às tábuas de um convés?" Desde o pecado original, o homem vive alheio aos desígnios divinos, e o poeta era o eleito dentre os homens para promover a correspondência entre o mundo visível e o mundo ideal; entretanto, não há mais consonância entre o que acontece no plano visível e no plano etéreo: o progresso e o ideal nunca se reencontrariam. No Brasil, sabe-se que o Romantismo e o Parnasianismo (o segundo mais que o primeiro) por muito tempo ofuscaram o que viria a ser o Simbolismo de um Cruz e Souza, de um Alphonsus de Guimaraens e de um Pedro Kilkerry, o satanismo de um Teófilo Dias e de um Carvalho Júnior. O parnaso se instalou e sobreviveu por aqui mais que em qualquer outro lugar, de forma que tais poetas só seriam resgatados pelos modernistas e pós-modernistas. Esses autores, por muitas décadas marginalizados, foram os principais responsáveis pela chegada de Baudelaire à terra da santa cruz. Quanto a “L’Albatros”, ou “O Albatroz”, como o chamaríamos, tem-se uma contradição bastante curiosa: o poema-escudo de Olavo Bilac e emblema do Parnasianismo brasileiro, o soneto “Longe do estéril turbilhão” da rua seria publicado somente em 1919, mais de sessenta anos após Les Fleurs Du Mal perfurarem a Literatura com seus espinhos retorcidos. Se custou para que o poeta decadente caísse ao gosto do público francês (sabe-se que, na época de sua publicação, fora duramente reprimido), ainda mais custou para que o príncipe da altura tombasse definitivamente ao turbilhão da rua, sobretudo em nossa pátria de vanguardas tardias. Entretanto, quase que paradoxalmente, temos para o português diversas traduções de “O Albatroz” – o poema, creio, mais traduzido de Baudelaire. Algumas datam antes mesmo do soneto de Bilac. Guilherme de Almeida (1944), Ivan Junqueira (Op.Cit.), Teófilo Dias (1878), Felix Pacheco(1932), Onestaldo de Pennafort (1931), Jamil Almansur Haddad (1958), entre outros, divulgaram por aqui a palavra do poeta-profeta francês. Pretendo ater-me às traduções aqui mencionadas e pôr um jugo analítico sobre algumas escolhas desses autores. Algo já se conclui das primeiras leituras: dentre as selecionadas, a tradução de Guilherme de Almeida é uma das mais fluentes, ao passo que a tradução de Teófilo Dias apresenta os maiores arcaísmos; salvo por Felix Pacheco, todas traduzem des albatros, no plural, por um albatroz, no singular; algumas reprimem a liberdade transcriativa, outras lançam-lhe mão a bel prazer; todas, enfim, dão um sabor tropical ao oceano navegado. Formalmente, todos os poetas mencionados mantiveram a correspondência métrica, traduzindo o alexandrino francês como alexandrino português, ambos com doze sílabas poéticas. Junqueira é o único que apresenta ocasionalmente versos sem a cesura na sexta sílaba do alexandrino clássico. Nenhum manteve o esquema rímico francês de oxítonas e paroxítonas alternadas, visto que se trata de um recurso idiomático que não caberia preservar em nossa língua. Comparando os resultados, percebemos muitas consonâncias, versos quase cristalizados e imutáveis por terem talvez atingido o ideal da tradução poética, como é o caso do último: Ses ailes de géant l'empêchent de marcher. “Impedem-no de — andar — as asas de gigante!” (Teófilo Dias) “As asas de gigante o impedem de marchar!” (Felix Pacheco) “As asas de gigante impedem-no de andar.” (Ivan Junqueira, Guilherme de Almeida e Jamil Almansur Haddad) “suas asas de gigante impedem-no de andar.” (Onestaldo de Pennafort) O mesmo não se percebe em momentos mais narrativos, como o da primeira estrofe: Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers, Qui suivent, indolents compagnons de voyage, Le navire glissant sur les gouffres amers. “O nauta, muita vez, por diversão, costuma Apanhar o albatroz, águia dos mares largos, Que segue desdenhoso a esteira de áurea espuma Da nau que talha a onda em vórtices amargos.” (Teófilo Dias) “Muita vez, por brinquedo, os homens da equipagem Deitam mão, no alto oceano, a albatrozes ousados, que, num voo indolente, acompanhando a viagem, seguem a nau que fende os abismos salgados.” (Felix Pacheco) “Às vezes, por prazer, os homens da equipagem Pegam um albatroz, imensa ave dos mares, Que acompanha, indolente parceiro de viagem, O navio a singrar por glaucos patamares.” (Ivan Junqueira) Perceba-se que Teófilo Dias recorre a um descritivismo inexistente no original ao mencionar uma “esteira de áurea espuma” (trecho cuja sonoridade atinge alto nível poético: os ditongos e encontros consonantais chegam a sugerir o oscilante voo da ave e até mesmo a ideia do navio cortando a esteira marinha). A propósito, dos que tomamos para análise, ele é o único que não traduz les hommes d’équipage por “os homens da equipagem”. Cada um pinta a figura dos gouffres amers de um jeito diferente: “vórtices amargos”, “abismos salgados”, “glaucos patamares”. Este último substitui a amargura pelo tom esverdeado, dando outro sentido ao verso. Entretanto, com mares-patamares Ivan mantém o jogo de palavras entre mers-amers, em que a segunda palavra engloba a primeira. Pour s’amuser apresenta soluções muito interessantes, sendo “por prazer” (Guilherme de Almeida, Ivan Junqueira) a mais próxima semântica e sonoramente; ademais, nos deparamos com “por brinquedo” (Felix Pacheco), “por diversão” (Teófilo Dias), “em recreio” (Onestaldo de Pennafort), “por folgar” (Jamil Almansur Haddad). É importante notar como o poema trabalha com contraposições imagéticas do começo ao fim: primeiro, os marinheiros no chão e o albatroz no céu; em seguida, as tábuas do convés (rude, forjado) e as asas brancas (suave, natural); após, a lembrança de uma ave bela e o encontro de uma ave arruinada; por fim, o sumo da queda e o sumo do exílio no nefelibata. Os tradutores logram trabalhar de maneira própria esses contrastes: “E por sobre o convés, mal estendido apenas, O imperador do azul, canhestro e envergonhado, Asas que enchem de dó, grandes e de alvas penas, Eis que deixa arrastar como remos ao lado” (Jamil A. Haddad) “Esse alado viajor, como é grotesco andando! Ei-lo horrível e inerme, ele que antes pairava! Um chega-lhe o cachimbo ao bico, e outro, coxeando, arremeda no andar o pobre que voava!” (Onestaldo de Pennafort) “Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas, Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado, Deixa doridamente as grandes e alvas asas Como remos cair e arrastar-se a seu lado.” (Guilherme de Almeida) Alguns acréscimos e alterações visam somente a manutenção da métrica e da rima, como vemos em limbo-cachimbo, nimbo-cachimbo, costuma-espuma, ousados-salgados. Contudo, antes de criticá-las como afastamentos do poema original, devemos analisar se no conjunto final são alterações pífias, ou se realmente possuem significância, pois, como percebemos no “esteira de áurea espuma” de Teófilo dias, essa alteração representou um ganho sonoro para o poema. A meu ver, em todos esses casos, as alterações são válidas, pois não prejudicam a compreensão do original, e as traduções não se afastam formalmente do mesmo. No fim, são leituras condicionadas por pensamentos de épocas diversas. Temos, atualmente, projetos de tradução ainda mais ousados, como o de Mário Laranjeira, que traduziu As Flores do Mal com rimas toantes, e o de Álvaro Faleiros, que procura em seu projeto de tradução resgatar o prosaísmo baudelaireano em detrimento da perfeição dos alexandrinos e das rimas. Entretanto, se a ideia é selecionar dentre as estudadas uma versão em que a proximidade ao conteúdo original se faz mais explícita, eu escolheria a de Guilherme de Almeida. Embora não atinja a todo momento os melhores resultados (perde-se, por exemplo, a caracterização dos abismos no quarto verso), ela apresenta uma unidade muito próxima do original, uma tentativa de recuperar ao máximo os recursos e vocábulos franceses sem transbordar de sentimentos próprios do tradutor. Após esta breve análise que visava à exaltação do poema de Baudelaire e do ato tradutório executado por alguns de seus maiores seguidores, apresento minha tradução do poema, que não é nada mais que uma leitura pessoal de versos que tanto admiro, e para a qual busquei resultados diferentes dos apresentados aqui. Formalmente, mantive os versos alexandrinos com cesura na sexta sílaba e segui o mesmo esquema de rimas cruzadas do original. Como os demais, não logrei a transposição regular do esquema rímico francês. Só me ocorreu fazê-lo na última estrofe. Concedi-me alguma liberdade na construção das sentenças, prezando sempre pela manutenção do sentido e das imagens; alguns termos, somente, foram acrescentados, suprimidos e alterados para fins métricos e sonoros, como é o caso sobretudo de “prince des nuées” tornado “nobre superno”, e “au milieu des huées” tornado “preso ao mundano inferno”. Essa última, eu creio que seja a transposição que mais se afasta do original, mas não acuso nela perda de sentido, tendo em mente a concepção de multidão na obra de Baudelaire como apontamos neste ensaio. Enfim, todas essas releituras foram pensadas tanto para o afastamento de minha tradução das demais quanto para não me tornar um fidus interpres da obra original, dando um pouco de mim ao poema na medida do inofensivo. Tradução autoral O ALBATROZ No tédio, é bem comum que os marinheiros peguem À força do alto-mar imensos albatrozes Que, indolentes, a nau acompanhando, seguem A deslizar por sobre os pélagos atrozes. E basta que ao convés arremessados sejam Para que os reis do azul, acanhados e mancos, Deixem tombar consigo as vastas mãos que adejam Qual se fossem um par de longos remos brancos. Pobre alado viajor, como é canhestra e lassa Sua figura outrora altiva e ora tão feia! Um, tomando um cachimbo, irrita-o com a fumaça, Outro, a zombar do enfermo órfão do céu, coxeia! O Poeta é semelhante a esse nobre superno Que, acima, ri do arqueiro e afronta os vendavais: Exilado no chão, preso ao mundano inferno, Vacila rastejando as asas colossais. Traduções estudadas Teófilo Dias (1854-1889) O ALBATROZ A Arthur de Oliveira O nauta, muita vez, por diversão, costuma Apanhar o albatroz, águia dos mares largos, Que segue desdenhoso a esteira de áurea espuma Da nau que talha a onda em vórtices amargos. Mal se expõe do convés ás gargalhadas francas, O herói, que aos céus vingava os páramos extremos, Deixa piedosamente as grandes asas brancas Colherem-se nos pés, como esquecidos remos. Como a envergura audaz comicamente agita, Sem o garbo, o primor, que altívolo ostentava! Um, metendo-lhe ao bico um ferro em brasa, o irrita; Outro — inválido — apupa o enfermo que voava! O poeta é como o rei do etéreo azul profundo, Que ama os tufões, e fita, em face, o sol radiante: Da turba exposto ao rir no exílio deste mundo, Impedem-no de — andar — as asas de gigante! Felix Pacheco (1879-1935) O ALBATROZ Muita vez, por brinquedo, os homens da equipagem Deitam mão, no alto oceano, a albatrozes ousados, que, num voo indolente, acompanhando a viagem, seguem a nau que fende os abismos salgados. E, mal no tombadilho assim os vão pousando, como esses reis do azul se aviltam logo, esquerdos, As asas sem medida e brancas semelhando Dous remos laterais que se arrestassem lerdos! Tão belo, não faz muito, e, ora, que cousa ignava! O nauta audaz dos céus, como parece à toa! Qual com um cachimbo aceso o bico lhe irritava, E outro zomba, a coxear, do enfermo que não voa. A seta e o raio entanto olhara com denodo, E o Poeta é em tudo igual a esse príncipe do ar: Exilado na terra, em meio a vaia e o apodo, As asas de gigante o impedem de marchar! Guilherme de Almeida (1890-1969) O ALBATROZ Às vezes, por prazer, os homens de equipagem Pegam um albatroz, enorme ave marinha, Que segue, companheiro indolente de viagem, O navio que sobre os abismos caminha. Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas, Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado, Deixa doridamente as grandes e alvas asas Como remos cair e arrastar-se a seu lado. Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo! Ave tão bela, como está cômica e feia! Um o irrita chegando ao seu bico um cachimbo, Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia! O poeta é semelhante ao príncipe da altura Que busca a tempestade e ri da flecha no ar; Exilado no chão, em meio à corja impura, As asas de gigante impedem-no de andar. Onestaldo de Pennafort (1902-1987) O ALBATROZ Às vezes, em recreio, os homens da equipagem pegam um albatroz, enorme ave marinha que segue, companheiro indolente de viagem, o navio que sobre o atro abismo caminha. Mal no convés se vê, todo desconjuntado, logo esse rei do azul, em passos desiguais, como dois remos, põe-se a arrastar a seu lado, desajeitadamente, as asas colossais. Esse alado viajor, como é grotesco andando! Ei-lo horrível e inerme, ele que antes pairava! Um chega-lhe o cachimbo ao bico, e outro, coxeando, arremeda no andar o pobre que voava! O poeta é o albatroz que nas nuvens se espraia, que ri dos vendavais e afronta as setas, no ar; exilado no solo, em meio ao riso e à vaia, suas asas de gigante impedem-no de andar. Jamil Almansur Haddad (1914-1988) O ALBATROZ Às vezes, por folgar, os homens da equipagem Pegam de um albatroz, enorme ave do mar, Que segue — companheiro indolente de viagem — O navio no abismo amargo a deslizar. E por sobre o convés, mal estendido apenas, O imperador do azul, canhestro e envergonhado, Asas que enchem de dó, grandes e de alvas penas, Eis que deixa arrastar como remos ao lado. O alado viajor tomba como num limbo! Hoje é cômico e feio, ontem tanto agradava! Um ao seu bico leva o irritante cachimbo, Outro imita a coxear o enfermo que voava! O Poeta é semelhante ao príncipe do céu Que do arqueiro se ri e da tormenta no ar; Exilado na terra e em meio do escarcéu, As asas de gigante impedem-no de andar. Ivan Junqueira (1934-2014) O ALBATROZ Às vezes, por prazer, os homens da equipagem Pegam um albatroz, imensa ave dos mares, Que acompanha, indolente parceiro de viagem, O navio a singrar por glaucos patamares. Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés, O monarca do azul, canhestro e envergonhado, Deixa pender, qual par de remos junto aos pés, As asas em que fulge um branco imaculado. Antes tão belo, como é feio na desgraça Esse viajante agora flácido e acanhado! Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça, Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado! O Poeta se compara ao príncipe da altura Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar; Exilado no chão, em meio à turba obscura, As asas de gigante impedem-no de andar. Pedro Mohallem é graduado em Letras Português-Inglês pela Universidade de São Paulo (USP)  

“Acidente com o Césio é tratado como tabu e ninguém o insere na história da cidade”

Gore e trash, obra dos goianos rememora, com muito terror ficcional, um dos episódios mais trágicos da história de Goiás

“Até você saber quem é”: a travessia de um escritor

O primeiro romance de Diogo Rosas G. nos dá a nítida certeza de que estamos diante de um estreante de peso que deverá surpreender-nos com outras boas criações no futuro

“ZUT”: uma aventura da linguagem

Wilmar Silva, sob o pseudônimo de Djami Sezostre, experimenta múltiplas possibilidades de artesanato literário

Personagens como Willy Wonka e Matilda mostram a necessidade de dar atenção a crianças superdotadas

Crianças com Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD) só podem alcançar seu potencial completo se acompanhadas, visto que necessitam de atenção especial de aprendizado [caption id="attachment_86602" align="alignleft" width="300"] Willy Wonka, uma das maiores mentes da ficção, tinha alta habilidade criativa, mas pouca aptidão acadêmica e, por isso, foi muitas vezes menosprezado | Foto: Reprodução[/caption] Johnatan Willow Especial para o Jornal Opção Willy Wonka é considerado, na ficção, o melhor chocolateiro e inventor de delícias do mundo. Os atributos de sua criatividade e inventividade na arte das guloseimas são tão extraordinários que temos a sensação de serem ilimitados. Em sua fábrica de chocolates, Wonka fazia tanto sucesso que acabou causando a falência de seus concorrentes. Alguns destes, por sua vez, ao invés de se reinventarem, foram buscar na espionagem industrial o segredo para tanto sucesso dos produtos Wonka. Temendo que suas receitas fabulosas fossem copiadas (afinal, um dos meios de se proteger uma propriedade intelectual, além da Patente, é por meio do segredo industrial) o inventor decide fechar a fábrica e demitir todos os empregados (todos suspeitos). Por isso, a fábrica ficou fechada, só reabrindo depois de 15 anos, quando ocorreram os eventos já conhecidos pelos filmes e, principalmente, pela obra-prima da língua inglesa “Charlie and the Chocolate Factory” (1964). O livro do escritor galês Roald Dahl tem caráter moralista e pretende trazer uma crítica à criação paterna pautada pela falta de limites ao comportamento e outros defeitos que causariam o mau comportamento e a má criação das crianças, exceto Charlie, o garoto idealista e cheio de sonhos, filho de operários desempregados. Este é um clássico infantil que, desde sua publicação, nos Estados Unidos, já vendeu mais de 13 milhões de cópias em todo o mundo, além de ter sido traduzido para 32 idiomas e adaptado para o cinema americano um par de vezes. Roald Dahl (1916-1990) publicou uma continuação em 1972: "Charlie and the Great Glass Elevator". Entretanto, decepcionado com a primeira adaptação aos cinemas (o primeiro, de 1971, com o falecido Gene Wilder), ele não permitiu que a continuação fosse filmada. No entanto, no segundo filme (feito por Tim Burton, em 2005, com Jhonny Depp), detalhes do segundo texto foram incluídos, já por cima do cadáver do escritor – o que ajuda a explicar o porquê de fazer duas adaptações da mesma obra infantil. Para Dahl, o foco da primeira adaptação para o cinema deveria estar no pequeno Charlie (que nomeia seu conto) e não no Sr. Wonka. Isto explica as poucas informações, no texto, da infância, educação e escolaridade do chocolateiro na obra escrita ou na primeira adaptação. Contudo, é possível inferir, pela sua exuberante produtividade inventiva, que o chocolateiro possui habilidades cognitivas acima da média, assim como Matilda, outra personagem de Dahl. [caption id="attachment_86605" align="alignnone" width="620"] Matilda era uma criança com alta habilidade acadêmica, mas que, embora autodidata, precisava de acompanhamento. Afinal, era uma criança | Foto: Reprodução[/caption] "Matilda" (1988) era uma garota de cinco anos, autodidata e fascinada pela leitura. Ela tinha uma personalidade calma e intelectualmente fabulosa. Entretanto, ela tinha pais que a desprezavam, deixando-a sempre sozinha à própria sorte. “Aos três anos, Matilda já tinha aprendido a ler, sozinha, observando os jornais e revistas que encontrava pela casa. Com quatro anos já conseguia ler rápida e corretamente e começou, naturalmente, a se interessar avidamente por livros”. No texto, os pais da garota deixam de notar sua condição acima da média e até de se responsabilizar pela menina e por suas necessidades de aprendizagem e acompanhamento educacional. Eles passam a viver dirigindo sua atenção para a TV ou para atividades de caráter duvidoso. Um professor minimamente qualificado e instruído é capaz de perceber e indicar sinais específicos da existência de AH/SD (Altas Habilidades/Superdotação) nos dois personagens. O conceito de AH/SD é usado para entender e identificar indivíduos que apresentam notável desempenho e elevada potencialidade em aspectos isolados ou combinados das seguintes habilidades: capacidade intelectual geral, aptidão acadêmica específica, pensamento criador ou produtivo, capacidade de liderança, talento especial para as artes e capacidade psicomotora. Logo, o indivíduo superdotado é aquele que expressa alto nível de inteligência e indica desenvolvimento acelerado das funções cognitivas. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), de três a cinco por cento de qualquer população nacional possui altas habilidades. Na prática, significa dizer que, dada uma empresa de 100 funcionários, cinco teriam AH/SD, numa escola de mil alunos, 50 teriam AH/SD. Isto é muita gente! E, tal montante, tem gerado preocupação em pesquisadores sobre o que é e como se dá a inteligência, produzindo teorias que foram enriquecidas nos anos 1980 e 1990 com aprimoramentos epistemológicos nas áreas de psicologia, neurociência, entre outras. A partir destas considerações, é possível inferir que os personagens Willy Wonka e Matilda seriam, na ficção, exemplos de indivíduos que possuem, em algum grau, as Altas Habilidades para alguma área específica ou geral. O primeiro tipo de AH/SD, bastante valorizado nas escolas, é o tipo acadêmico, encontrado em Matilda e em inúmeras crianças e adultos e voltado para a busca de conhecimento. Não é raro, por exemplo, encontrar escolas e cursos pré-vestibulares oferecendo bolsas de estudo a estes indivíduos (que podem possuir, ou não, o laudo de indicação de AH/SD) com a contrapartida de estampar os rostos pintados destes garotos e garotas ostentando dez, 15 sucessos em vestibulares de Medicina.  O outro, bastante problemático para muitos professores e pais, é o tipo criativo/produtivo. O Sr. Wonka demonstra claramente este ramo das eficiências em toda a sua produção e criação. Problemático porque este talento muitas vezes vem combinado (ou confundido) com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade — o TDAH — por serem crianças desinteressadas na forma padrão de aprendizagem, porém interessadíssimas em outros assuntos ou práticas de conhecimento. Observamos que, diferente de um sujeito como Matilda (garota com AH/SD para a área acadêmica e que, por isso, tinha paixão pela leitura, pela escola, e era adorada pela Srta. Mel, sua professora), aquele sujeito do tipo criativo/produtivo tem grandes dificuldades com o ambiente escolar e com a forma de organização e ensino do conhecimento do modo padronizado, que não leva em conta suas peculiaridades como um jovem com AH/SD. Logo, o grande erro das escolas (públicas e privadas) é aplicar uma padronização do ensino supondo que haverá, por tal prática, a esperada aprendizagem igualada, padronizada, eliminadora de desigualdades; ou seja, que produzirá, como efeito, o tão sonhado "ensino de qualidade", que muitos não sabem o que significa, nem como traduzir para a prática. A concepção de inteligência, com o passar do tempo, foi se ampliando trazendo implicações e desafios importantes para o modelo educacional, para os agentes da educação (professores, diretores, pais e tomadores de decisão política) e para a prática pedagógica. Hoje em dia, os modelos americanos do Círculo dos Três Anéis, de Joseph Renzulli (1980 em diante), a Teoria Triádica do Desenvolvimento Humano, de Robert Sternberg (1985 em diante), e a Teoria das Inteligências Múltiplas, de Howard Gardner (1980 em diante), são os mais conhecidos e utilizados nas escolas que trabalham com inclusão no Brasil. Gardner, por exemplo, é um pesquisador interessado na manifestação das várias inteligências de um indivíduo, buscando enfatizar a capacidade de resolver problemas e de elaborar produtos. Para ele, o ser humano é dotado de inteligências múltiplas que incluem as dimensões linguística, lógico-matemática, espacial, musical, cinestésico-corporal, naturalista, interpessoal, e intrapessoal. Já o Modelo WICS (Wisdom, Intelligence, and Creativity Synthesized) da Teoria Triádica do Desenvolvimento Humano, de Sternberg, veio para suprimir os testes de QI, que não davam mais conta de explicar, delimitar ou quantificar algo fluido como a inteligência. Para ele, a inteligência (chamada de Inteligência exitosa) era uma habilidade intencional para adaptar-se a diferentes ambientes, configurá-los e selecioná-los. Não obstante, os indivíduos com esta inteligência conhecem suas próprias forças e compensam suas fraquezas. Por fim, segundo a teoria do Círculo dos Três Anéis, do psicólogo Joseph Renzulli, um dos maiores especialistas no mundo nesta área, defende um modelo segundo o qual os indivíduos com altas habilidades/superdotação são os que apresentam habilidades acima da média em relação aos seus pares, em uma ou mais áreas de inteligência; apresentam elevado nível de envolvimento com a tarefa, ou seja, são bastante motivados e comprometidos e, finalmente, possuem criatividade elevada. Para Renzulli, a AH/SD é relativa ao tempo, às pessoas e às circunstâncias, isto é, os comportamentos superdotados aparecem em determinadas pessoas, em determinados momentos e em determinadas circunstâncias. A partir destas teorias que foram surgindo no final do século XX e início do século XXI, tomou-se consciência da importância de se tirar estes indivíduos da invisibilidade institucional (as políticas públicas e ações sociais) em que estes indivíduos se encontravam. Por isso, atualmente, as pessoas com altas habilidades são indivíduos com necessidades educacionais especiais, com direitos garantidos pela legislações brasileira e internacional. Em outras palavras, altas habilidades, por lei, é considerada parte da chamada educação inclusiva, pois é uma espécie de necessidade especial, como a deficiência também é. Porém, as iniciativas para o seu apoio ainda são insuficientes na sociedade brasileira. Acrescenta-se também que o Alto Habilidoso necessita de estímulos educacionais diferenciados, já que é imprescindível o aprofundamento nas matérias de interesse, nas quais possui alta habilidade, e o equilíbrio nas demais, nas quais provavelmente apresentará deficiência, já que praticamente se interessará apenas pela área da qual gosta. Afinal, crianças com AH/SD não constituem um grupo homogêneo, variando tanto em habilidades cognitivas quanto em nível de desempenho e personalidade. Dessa maneira, percebemos que Matilda e Willy Wonka possuem diversos traços comuns dos alto habilidosos, dos quais podemos enumerar os principais: alto grau de curiosidade, independência, autonomia, criatividade, imaginação, iniciativa, preferência por situações/objetos novos e originalidade para resolver problemas. Entretanto, como mostram conclusões de vários estudos e teorias, quando estas habilidades surgem numa determinada criança, ela precisa ser identificada pelos professores e pais, que devem unir forças para potencializar e suplementar suas habilidades, acompanhando o sujeito rumo ao seu sucesso escolar, profissional e pessoal como é direito dela. Do contrário, habilidades extraordinárias em determinado saber ou prática (como Geografia, Física, representação teatral, escrita criativa ou... um mestre chocolateiro) podem se perder, ou pior: serem aliciadas para o (à primeira vista, interessante, porém malévolo) mundo do crime, pelas organizações criminosas e terroristas — basta observar a complexidade de ação de certos criminosos e terroristas ao redor do mundo (e até no Brasil) para constatar ali um “gênio do crime”, que poderia ter sido um gênio em qualquer-coisa. Portanto, é preciso lutar por uma escola inclusiva que busque ter um projeto pedagógico que responda às necessidades específicas de cada aluno ou grupos de alunos. Ensino de qualidade significa propor atendimento suplementar para o aprofundamento e/ou enriquecimento curricular ao aluno com altas habilidades, flexibilizando e adaptando os currículos, as metodologias de ensino, os recursos didáticos e os processos de avaliação, tornando-os adequados ao aluno com altas habilidades, de acordo com o projeto pedagógico da escola. É direito legal deste aluno, por seu status de inclusão, ter apoio pedagógico especializado tanto na classe comum, quanto na sala de recursos. Os nossos tomadores de decisão política precisam dar todas as condições para que, cada vez mais escolas da rede regular de ensino em Goiás, através do Núcleo de Atividades de Altas Habilidades Super Dotação (NAAH/S), possam prever e prover serviços de apoio pedagógico especializado em salas de recursos para estes alunos. Para finalizar, sabemos que nem toda criança tem a sorte de Matilda, de ser adotada por uma professora amorosa e apta para ajudá-la a cumprir seu maior sonho: ter livros em casa para ler e ser acompanhada (e respeitada) no seu próprio progresso escolar. Eu sempre me perguntei o que teria acontecido à garota se tivesse continuado naquele ambiente familiar e escolar nocivo, sem ter feito nada para mudar a própria situação. Por isso, é essencial que pais e professores de crianças com AH/SD (seja ela do tipo Willy Wonka ou do tipo Matilda) deem às crianças a chance de se desenvolver em seu próprio ritmo, aproveitando ao máximo suas potencialidades e competências. Ou seja, sem exigir além da conta, sem transformá-la num showzinho de aberrações de circo do tipo “quanto é a raiz de 49?”; sem forçar as habilidades da criança para algo que ela não tem inclinação ou sonho; sem esquecer que, apesar do telencéfalo barbaramente desenvolvido para a idade, ela ainda continua sendo uma criança que precisa se sentir segura, protegida e amada; que ela ainda erra; que é inteligente para algumas coisas e totalmente tola, sensível e ingênua para outras (e isso não é defeito). Por outro lado, é preciso observar que há conteúdos curriculares que a criança já domina e que, se ela não for estimulada a construir novos conhecimentos — aliados à necessidade de observância às regras de convivência social e ser respeitada por seus parceiros da mesma faixa etária em sua diferença —, muito pouco servirá para o sucesso escolar e na vida, ter uma capacidade mental lendária, digna de ser citada na literatura universal. Pelo contrário, isto só produzirá aborrecimento com a escola e os colegas, desmotivação para alcançar o sucesso escolar e a liberdade incontida para desenvolver comportamentos indesejáveis e frustrantes ao longo da vida. Johnatan Willow Dias de Andrade é professor formado em Letras pela UFG e escritor ficcionista

A realidade é uma criação da palavra

A ficção científica envereda pelas possibilidades e fantasias e, por isso, é possível que a língua de uma raça alienígena os faça ver o futuro antes do presente. Aí está o motivo de o filme “A Chegada” ser tão interessante Anderson Fonseca Especial para o Jornal Opção Em 1988, o cosmólogo Stephen W. Hawking, na obra “Uma breve história do tempo”, afirmou que nosso “senso objetivo de direção do tempo, a seta psicológica do tempo, é determinado dentro do nosso cérebro pela seta termodinâmica do tempo”. Isto significa que, à medida que a desordem aumenta, o tempo é medido na mesma direção. É por esta razão que somos capazes de lembrar o passado, mas não perceber o futuro. Lembramos as coisas “na ordem em que a entropia aumenta”. A seta do tempo aponta para o futuro. Se você pudesse visualizar minha escrivaninha, antes de eu sentar para escrever este artigo, a veria organizada; infelizmente, para o azar de minha esposa, ela agora encontra-se repleta de livros, papeis e canetas. Sou capaz de lembrar como estava antes, refazer o caminho no tempo da memória e visualizar mentalmente a mesa organizada até o instante presente, porque meu cérebro processa as informações do ambiente, segundo as leis da termodinâmica. Se o cérebro não obedecesse às leis da termodinâmica, é possível que sua percepção do tempo fosse bastante diferente. Talvez fossemos capazes de ver o futuro antes do passado. A casualidade, portanto, seria rompida. [relacionadas artigos="86119"] Os efeitos conhecidos antes mesmo da causa implicariam em uma profunda revisão do conceito de livre-arbítrio. Mas não temos esta sorte. O universo se expande há 15 bilhões de anos em uma única direção (do passado ao futuro) e é em torno desta realidade que a vida se organiza. Nosso pensamento sucede-se, justamente, no tempo, e a estrutura da linguagem reproduz tal direção. A sintaxe, por exemplo, na língua portuguesa, é construída da esquerda para a direita, isto é, do passado ao futuro, porque nossa percepção do espaço e do tempo é linguisticamente equivalente. Quando uma criança elabora a sentença, “Eu comi o biscoito”, a colocação do verbo é à esquerda do objeto que se situa como um projeto futuro da ação. A intenção da criança era comer o biscoito e a ação encontra-se no futuro da intencionalidade, onde o objeto é visado. No momento em que o objeto é alcançado, a ordem dos eventos é estruturada de acordo com a percepção e a intencionalidade, ou seja, a ação antecede o objeto, logo, no passado (situado à esquerda no espaço) e o objeto em seu futuro (à direita). Portanto, a sintaxe é estruturada reproduzindo a seta psicológica do tempo no espaço. Qual a causa desta organização? Para alguns psicólogos, linguistas e neurocientistas, a resposta está no idioma. Não seria efeito somente da entropia, mas a língua teria um papel fundamental na percepção e ordem dos eventos no tempo. A grande questão envolvida na língua é saber se ela é um espelho da realidade ou participa de sua criação. Entre 1920 e 1930, os linguistas Edward Sapir e Benjamim Lee Whorf defenderam que o vocabulário e a estrutura da língua influencia o pensamento. Tal posição ficou conhecida como hipótese de Sapir-Whorf. O que motivou Whorf foi seu interesse na língua dos índios Hopi, da América do Norte, ao perceber, ainda que de forma errônea, que ela não continha marcadores temporais, levando à existência de uma visão atemporal do mundo. Mesmo errado, Whorf elaborou uma hipótese que mais tarde foi comprovada. Chama a atenção, contudo, o fato dele ter sido motivado pela busca em entender a relação entre a língua e a percepção do tempo. Hoje, sabe-se que os signos linguísticos exercem influência sobre as estruturas mentais e visão de mundo. O psicólogo Stephen C. Levinson, do Instituto Max-Planck, demonstrou como a língua afeta a orientação espacial. Uma comunidade aborígene do norte da Austrália chamada Pormpuraaw não faz uso de termos usados ao espaço como direita e esquerda, mas dos pontos cardeais (norte, sul, leste, oeste). Digamos que você esteja a conversar com um falante da língua kuuk thaayorre e você pergunta: “Em que direção está o vaso sobre a mesa?”. Ele, dependendo de sua própria posição no espaço, irá responder: “Ao meu norte”, enquanto você diria “À minha esquerda”. Devido à sua criação na língua portuguesa, você, leitor, descreve o tempo como “adiante” ou “para trás”, enquanto o kuuk thaayorre descreve a partir dos pontos cardeais. Assim, a maneira como pensamos o espaço influencia como descrevemos o tempo. O filólogo Ludwig Jäger, da escola técnica de Aacher, afirmou, em artigo publicado na Scientific American Brasil, de 2005, intitulado “A palavra cria o mundo”, que a materialidade da língua (isto é, os conceitos) exercem influência sobre a estrutura mental. A cientista cognitiva Lera Boroditsky defende que a língua influencia o modo como lembramos os fatos. Ambos estabelecem correlação entre cognição e linguagem. Porém, a língua também modifica a cultura, assim como por ela é transformada, chegando a alterar a forma como uma sociedade descreve o tempo. Em 1999, o antropólogo Kevin K. Birth publicou um livro abordando a consciência temporal na cidade de Trinidad, e afirmou haver uma diferença entre a forma de pensar o tempo no cotidiano de sua concepção cultural. Um grupo de agricultores, por exemplo, não entenderam frases como “tempo é dinheiro”, enquanto alfaiates entenderam o conceito. Da mesma forma, um falante da língua portuguesa, nascido e criado em Minas Gerais, terá uma visão do tempo diferente da minha, nascido e criado no Rio de Janeiro. Os mulçumanos têm o passado vivo no presente. Nossa própria visão do tempo é colonizada, herança dos portugueses, e, portanto, herança ocidental, de uma cultura cristã voltada para o futuro (o retorno do messias, por isso, tempo messiânico). Mas esta ótica é consequência do idioma. Não podemos de forma alguma conceber o tempo sem levar em consideração a influência da linguagem. Mesmo que nossa seta psicológica do tempo seja um efeito das leis da termodinâmica, às quais nosso cérebro obedece na organização das informações, é inegável que a subjetividade interfira nessa mesma estrutura, modificando nossa cognição. A tribo Pirahã, do Amazonas, descoberta pelo missionário e linguista Dan Everett, não possui termos para designar quantidades e números, mas palavras como “tudo”, “muito”, “pouco”. Além disso, não tem adjetivos específicos para cores nem tempos verbais precisos. Everett tentou educá-los na cultura ocidental, mas fracassou, porque a língua dos Pirahã afetou sua cognição. Já a tribo Himba, da Namíbia, estudada pelo psicólogo Jules Davidoff, da Universidade de Londres, não possui em sua língua uma palavra para a cor azul, embora tenha um número maior que o inglês de termos para a cor verde. Em um experimento realizado com alguns membros da tribo para identificar em um círculo com 11 quadrados verdes e um azul, o quadrado diferente, poucos conseguiram identificar e isso levou bastante tempo. A razão para eles não identificarem de imediato deve-se à falta de um nome, em sua língua, para a cor azul. Davidoff defende que sem uma palavra para a cor, se torna difícil perceber nela algo que a torne única. O estudo levou à descoberta de que a nomeação de algo altera a forma como o percebemos. Para o físico Michio Kaku, da Universidade de Nova York, a consciência humana é uma forma específica de consciência que simula o futuro, a partir de um modelo criado do mundo ao longo do tempo. Sua teoria surge da ideia de o cérebro obedecer às leis da termodinâmica. Juntando tijolos e cimento, posso afirmar que a linguagem humana é estruturada dentro de um modelo do espaço e tempo, simultaneamente reproduzindo e afetando a própria estrutura. Isso tudo nos leva à pergunta: E se uma sociedade alienígena não percebesse a seta psicológica do tempo da mesma forma que a humana? E se o seu idioma reproduzisse esta percepção? Essas indagações estão presentes no filme “A Chegada”, do diretor Denis Villeneuve, indicado a oito categorias do Oscar. A resposta à pergunta é: A seta psicológica do tempo é uma consequência da expansão do universo. Não importa, então, em que planeta surja vida inteligente, ela perceberá o tempo da mesma forma que o homem. Se houver uma diferença, estará na descrição e na cultura. Quando aprendemos uma nova língua nossa visão de mundo é também afetada, como ocorreu com Dan Everett que, após seu contato com a tribo Pirahã, tornou-se ateu. Ao aprender, portanto uma nova língua, nossa construção do real é transformada. Se, de um lado, a seta psicológica do tempo não muda, do outro, nossa forma de descrevê-lo, sim. Neste caso específico, a doutora Louise Banks (personagem interpretada pela atriz Amy Adams), sofreria influência da língua alienígena na sua concepção do tempo e espaço. A não ser, hipoteticamente, que a raça viesse de um universo taquiônico (táquions são partículas hipotéticas que se movem mais rápido que a luz), seria, sim, possível que esta raça conhecesse o futuro antes do passado. Ou, se a realidade for não-local e todo o universo, desde o Big Bang até este instante em que escrevo, fosse entrelaçado quanticamente de modo a não haver diferença entre passado e futuro, seria possível que fosse dotada da habilidade de vidência. A consequência seria uma linguagem estruturada em sentenças inteiras e não em uma sucessão de palavras como ocorre em nossa língua. Como a distinção entre passado e futuro é nula, eles perceberiam o tempo não como uma seta, mas como um círculo ou um mosaico. Mas isso é apenas uma hipótese. A ficção científica envereda pelas possibilidades e fantasias. Se uma delas for provável, será maravilhoso. Aí está o motivo de o filme “A Chegada” ser tão interessante. Anderson Fonseca é escritor

Deputados petistas dizem que PMDB deve provar rombo e começar a trabalhar

Humberto Aidar e Adriana Accorsi lembraram que até agora Iris não apresentou relatórios oficiais e tampouco começou a cumprir promessas de campanha

De “Predador” a “De olhos bem fechados”: uma análise lacaniana da presença da angústia no cinema

Sentimos angústia quando o mundo simbólico que nos sustenta é ameaçado. Vemos isso, por exemplo, nas presenças invisíveis mas ameaçadoras do Predador e do Alien  [caption id="attachment_86245" align="aligncenter" width="620"] Major Alan Dutch (Arnold Schwarzenegger) é surpreendido ao ver o sargento Billy (Sonny Landham) paralisado na floresta. Mesmo sem ver, Billy sabia que ali estava uma ameaça e sentia-se angustiado | Foto: Reprodução - "O Predador"[/caption] Cristiano Pimenta Especial para o Jornal Opção A angústia, na psicanálise¹, se define inicialmente em sua relação com o fenômeno do “estranho”, ao qual Freud (1919) dedicou um importante artigo. Para falar do estranho tal como ele aparece no cinema, gostaria de me valer de uma breve passagem de um filme infinitas vezes reprisado na TV: “O Predador” (1987). Logo no início, quando a equipe do “Major Alan Dutch” (Arnold Schwarzenegger) atravessa a densa floresta da América Central, o “sargento Billy” (Sonny Landham) fica paralisado diante de uma paisagem composta apenas por árvores. Ninguém da pequena tropa de elite fazia ideia do perigo que todos corriam. Assustado, o Major se aproxima e pergunta ao Billy o que ele vê. Ele não vê nada e, de fato, nada aparece. Mas ele pressente algo. Apalpando um amuleto místico que traz em seu colar, Billy lhe responde: “Tem algo ali, Major”. De fato, o predador alienígena, invisível em sua camuflagem, os espreita, os investiga e aguarda o melhor momento para aniquilar todos, um por um. Digamos que os objetos que são vistos na cena, a vegetação, a paisagem, etc., são aqueles que podem ser objetivados, catalogados, medidos, estudados. Já o Predador, ausente do campo visual, é o que escapa à objetivação do olhar, mas, ainda assim, está presente em seu caráter ameaçador e mortífero. Na verdade, o predador invisível é o que é realmente necessário ver na cena aparentemente banal, para ao menos poder lutar pela própria vida. Todavia, para vê-lo é preciso, por assim dizer, fechar os olhos para o visível, para o que pode ser objetivado e abri-los para o invisível, para o que não se deixa objetivar. Ou seja, é preciso apelar para outra forma de ver. É o que Billy tenta fazer. Essa situação não seria típica daquelas em que podemos apenas intuir que “há algo de errado”? No entanto, a presença invisível do predador certamente produz algumas alterações sutis que permitem concluir que “tem algo ali”. Digamos que ocorre um silêncio anormal, os animais se retiram, tal como os momentos que antecedem um tsunami devastador, segundo relatos daqueles que presenciaram sua chegada. Essas alterações sutis perturbam a normalidade da cena, dão a esta um caráter de estranhamento. Freud (1919) observou que o fenômeno do estranho, “unheimlich, ocorre justamente quando vivenciamos uma situação que nos é familiar, “heimlich”. Diante do que nos parece ser normal, familiar, pressentimos a presença de um elemento perturbador, estrangeiro, estranho, difuso e, por vezes, profundamente ameaçador. É justamente aí que encontramos a essência do fenômeno da angústia, tal como ela é descrita na psicanálise freudiana e também lacaniana. Nós nos angustiamos quando o que nos ameaça é uma presença que não pode ser discernida e nem capturada por nossa compreensão, por nossas palavras, nem mesmo por nossos conceitos, em suma, pelo significante que viria apaziguar a situação. Trata-se da presença de um objeto paradoxal, chamado por Lacan de objeto a. Quando um telefone toca na madrugada e ainda não sabemos o motivo, nesse intervalo de não saber, podemos apenas pressentir o de que se trata. Nesse contexto, o termo “pressentimento” deve ser entendido, mais precisamente, como “pré-sentimento”, ou seja, “aquilo que experimentamos antes do nascimento de um sentimento” (Lacan; 2005), e que na psicanálise chamamos de angústia. É diferente do medo, que se caracteriza por um elemento ameaçador perfeitamente discernível. O elemento estranho, por seu lado, é um objeto paradoxal que escapa à própria definição clássica de objeto, daí que sua aparição, ou sua intromissão, no campo da objetividade é geradora de angústia, pois ela produz uma deformação desse campo. Podemos afirmar que, na medida em que o campo da objetividade se mantém estável ele está sendo governado pelo “princípio de prazer” (Freud). Como exemplo, basta imaginar uma bela praia da Indonésia repleta de gente feliz, se divertindo. Eis uma cena dominada pelo princípio de prazer. Mas se de repente o nível da água do mar recuar drasticamente antecipando um tsunami, teremos uma perturbação angustiante da cena.

A beleza de Lolita e as aparências que não enganam
Sendo assim, se nos fiássemos apenas nos objetos familiares, apreensíveis, que compõem a cena, nós seríamos enganados ou mesmo iludidos. Podemos observar também que quando a visão dos objetos visíveis prevalece, quando a cena é dominada pelo princípio de prazer, é aí que a beleza desses objetos tende a se impor e ofuscar tudo que é da ordem do feio. Ora, a beleza possui afinidades com o prazer e com o familiar, já o feio, por seu lado, possui afinidades com o desprazer e com o estranho. Digamos, então, que a beleza ofuscante tende sempre a encobrir o elemento estranho, tal como a pinta negra de Marilyn Monroe quase desaparecia em meio à brancura de seu belo rosto. A beleza tende a apaziguar o olho que olha. Já o feio tende causar perturbação. É claro que nem sempre a beleza serve para encobrir o ponto negro, feio e perturbador. Nas obras de arte contemporâneas, só para dar um exemplo, é comum encontrarmos uma beleza que, de algum modo, inclui em si o feio e não o faz desaparecer. Trata-se aqui de uma beleza que apazigua e perturba ao mesmo tempo. Quanto à beleza que faz desaparecer o elemento estranho do campo visual, podemos encontrar um exemplo paradigmático no filme de Stanley Kubrick, “Lolita” (1962). Neste vemos Humbert (James Mason), um professor de meia idade, recém-chegado da Europa, à procura de uma pensão para se hospedar. Ele estava decidido a não ficar na casa de Charlotte Haze (Shelley Winters), uma mulher também de meia idade, chata, e desesperada por um marido. Mas, ao ver sua filha Lolita (Sue Lyon) de biquíni, tomando sol no “jardim” da casa, Humbert fica fascinado e instantaneamente capturado. Neste caso, ao contrário do que vemos em “O predador”, a beleza estupefante de Lolita, adornada pela beleza da paisagem, do jardim, esconde e oculta completamente o elemento estranho e angustiante. Capturado, Humbert investirá toda sua vida em Lolita. Para ficar próximo dessa jovem que deseja intensamente, ele se casa com sua mãe. Chega a tramar o assassinato desta, que acaba morrendo num acidente. Por fim, se passando por seu pai, mantém um relacionamento clandestino com Lolita. No entanto, Humbert nada sabe e nem quer saber da verdade que se escondia por detrás de tanta beleza. Desde o início, Lolita já amava outro homem, Clare Quilty (Peter Sellers), com quem jamais deixou de se encontrar. Humbert não percebeu que Lolita, para atingir seus objetivos, o enganou desde o início. Quilty, por sua vez, através de disfarces de ator, bigodes postiços, sempre se escondendo na penumbra, construía personagens persecutórios e manipuladores. Quilty foi um autêntico predador que perseguiu e angustiou Humbert até o final. Não poderíamos dizer que Humbert não viu o que só poderia aparecer de forma sutil e quase imperceptível através do elemento estranho? Ele não percebeu que Quilty, esse predador que nunca se deixava ver na cena, era parte essencial do mundo de Lolita, era, por assim dizer, a pinta negra no belo rosto dessa mocinha ardilosa. Humbert estava decidido a amar cegamente Lolita e a mantê-la como objeto agalmático, precioso, e por isso não teve olhos para os perigos que corria. Aqui é possível corrigir o dito popular segundo o qual “as aparências enganam”. Na verdade, as aparências não enganam jamais, desde que estejamos abertos, como Billy, para a presença do estranho na cena.
Angústia no Word Trade Center e o supereu em Lacan
Assim, nos valendo da elaboração de Jacques Lacan (2006), percebemos que, em relação ao objeto estranho, maléfico e ameaçador, os objetos apreensíveis ou visíveis são, por assim dizer, falsos, são “semblantes”, ficcionais e evanescentes. Já o objeto angustiante é real. Quem nunca ouviu, numa situação de perigo angustiante, aquela voz reconfortante: “não se preocupe, não há de ser nada, volte a dormir tranquilamente”, ou mesmo “contemple essa bela paisagem.”. Encontramos relatos dos momentos vividos no atentado de 11 de setembro ao Word Trade Center, em que logo após o choque do primeiro avião, certos responsáveis em organizar a evacuação do prédio diziam às pessoas que estava tudo bem e que não havia o que temer. Ora, a angústia, ao contrário, nos alerta, nos dá o “sinal” de que há um real ameaçador que não pode ser ignorado. De modo geral, a angústia é o que sentimos quando o mundo simbólico que nos sustenta é ameaçado de vir abaixo. Por isso Lacan diz que a angústia é o único afeto que não engana. A certa altura do nosso filme de ação, o predador se torna visível, analisável, ou seja, passa a fazer parte dos objetos perceptíveis. A partir desse momento, por mais ameaçador que seja, ele não gera mais angústia, pois ele já não olha mais lá de onde não é visto, ele não mais presentifica seu olhar angustiante, olhar que não pode ser visto por aquele que é olhado. Freud chamou de “supereu” — essa instância psíquica que nos vigia, nos olha, nos avalia, nos critica, sempre para nos rebaixar e nos condenar, não importando o quanto não mereçamos tal condenação — se manifesta justamente por meio de um “olhar” ou de uma “voz” que, tal como o Predador, não aparece nem é escutada no campo perceptivo. Para Lacan (2006), o “supereu” é uma das formas do objeto angustiante, o objeto a. A voz e o olhar em Lacan, são objetos paradoxais que escapam à própria definição clássica de objeto, por isso, sua aparição no campo da objetividade é geradora de angústia, pois ela produz uma deformação desse campo.
Sobre o que o psicanalista deve falar
Voltando ao filme, vemos que é somente depois que o Predador passa a fazer parte do campo perceptivo, quando deixa de ser objeto angustiante, que o Major Dutch monta suas armadilhas e tornando, assim, o caçador. Mas, vale dizer, essas armadilhas são feitas para capturar objetos perceptíveis, são como as chamadas “pesquisas de opinião”, que podem capturar informações interessantes sobre o que as pessoas querem, sobre em quem elas vão votar, etc., mas, se não são muito confiáveis, se tantas vezes fracassam, é justamente porque essas pesquisas não lidam com o que há de não sabido, de inconsciente, no próprio querer das pessoas. Digamos que, mais além do que elas revelam pode estar justamente o mais importante. Daí que, quando alguém que se diz psicanalista vem a público dizer algo baseado fundamentalmente em pesquisa de opinião, ele pode estar fazendo uma interessante contribuição psicológica ou sociológica, mas não psicanalítica. Penso que o psicanalista que vem a público deve, na medida do possível, “dar notícias” a respeito desse mais além angustiante, desse real, com o qual cada paciente seu está às voltas no seu consultório. Isso implica em dizer algo a respeito do que é singular, do que não está ao acesso de qualquer pesquisa de opinião.
O oitavo passageiro e o mal que vem de dentro
[caption id="attachment_86244" align="aligncenter" width="620"] A ameaça invisível de Alien causa no espectador a angústia | Foto: Reprodução - "Alien, o oitavo passageiro"[/caption] A estrutura da angústia está presente também em um filme infinitas vezes superior ao que acabamos de comentar. Trata-se de outro filme sobre alienígenas: “Alien, o oitavo passageiro” (1979). Poderíamos dedicar todo esse texto somente a ele, o primeiro da franquia, cuja estrutura é feita para gerar angústia não somente nos ocupantes da espaçonave — sugestivamente chamada de “Mãe” — mas, sobretudo, em quem assiste a ele. Poderíamos sublinhar o fato de que aqui o objeto angustiante, o Alien, embora venha de outro planeta, de fora, se aloja dentro do corpo das pessoas e, de modo surpreendente, faz sua irrupção traumática e destruidora. Eis aí uma bela representação de uma das dimensões do sexual que há em nós, a “pulsão de morte”, tal como Freud a postula em “O mal estar da civilização”. “A civilização”, diz Freud, “é construída [...] pela opressão e repressão de pulsões poderosas”. Nesse sentido, a pulsão é o elemento destruidor, antissocial, ameaçador e angustiante, que deve ser recalcado para que haja vida social. Ela provém de dentro, tem sua fonte no interior do corpo e é de tal modo premente que o seu recalque tem sempre um preço — a saber, sua transformação em um monstro que irrompe de forma indesejada e destrutiva. Restringirei meu comentário sobre “Alien, o oitavo passageiro” a um fator que nos permite observar outro aspecto do funcionamento da angústia. Os episódios que sucedem o primeiro e fazem a série jamais conseguem produzir no espectador o mesmo nível de angústia. Ao contrário, são cada vez menos angustiantes, e neles prevalece a ação, a batalha, a luta pela sobrevivência, os efeitos especiais etc. Chega-se ao ponto de vermos os dois alienígenas que protagonizaram aqui nosso texto duelarem entre si em “Alien versus Predador” (2004). Em “Alien, o oitavo passageiro”, praticamente não existe ação, prevalece o mistério, o não-saber a respeito dessa criatura enigmática. Nesse contexto, os detalhes, o silêncio, os ruídos, o vazio e as sutilezas são valorizados, como pode ser observado na cena inicial em que vemos a imensa nave Mãe, vazia e num silêncio sepulcral, ser ligada automaticamente para atender ao chamado misterioso. Os tripulantes, num sono profundo, jaziam nos compartimentos especiais, semelhantes a tumbas, que os mantinha dormindo por meses (ou até anos) durante toda a viagem. Portanto, na medida em que a angústia dá um “sinal”, ela permite que o sujeito se prepare, mobilize suas defesas, e não fique à mercê do elemento invasor. Nesse sentido, a angústia nos apresenta como que uma pequena “amostra” do perigo que se aproxima para nos deixar avisados e para que tomemos a tempo uma atitude. Naturalmente, a questão que se coloca é: o que ocorre quando o real invade o mundo do sujeito sem ser percebido previamente, ou seja, quando o sujeito não passa pela angústia? Pois bem, o que ocorre é o que se chama na psicanálise de trauma.
Trauma e angústia em “De olhos bem fechados”
[caption id="attachment_86243" align="alignleft" width="620"] Sob a certeza de uma vida perfeita, Bill vê seu mundo ameaçado quando, sem aviso prévio, sua esposa Alice confessa já ter pensado em abandoná-lo. Isso derruba um de seus pilares, o traumatiza e dá início a seus delírios| Foto: Reprodução - "De olhos bem fechados"[/caption] Podemos encontrar um exemplo de trauma em outro belíssimo filme de Stanley Kubrick, “De olhos bem fechados” (1999). Esse filme está centrado no que acontece com o médico Bill (Tom Cruise). Não poderia haver exemplo de um homem tão bem sucedido. Bill é um médico muito requisitado pela alta burguesia de Nova York, onde ele reside num requintado e confortável apartamento, é casado com uma mulher lindíssima, Alice (Nicole Kidman), e é pai de uma encantadora garotinha de 7 anos. O casal é muito bem inserido na vida social da cidade. Jovem, belo, encantador, autoconfiante e cobiçado pelas mais lindas mulheres, Bill é apenas um dos objetos que compõem a cena agradável ao nosso olhar de espectador. Com uma autoestima tão elevada, ele não vê razão para sentir ciúme de sua mulher. Afinal, o que mais uma mulher poderia desejar? Alice, sua esposa, tinha um marido dedicado, um pai amoroso para sua filha e um futuro garantido, seguro e confortável, no qual não precisaria trabalhar para desfrutar do que o dinheiro pode comprar. Esse mundo de “arco-íris” e “árvores de natal” (objetos que também embelezam as cenas), naturalmente, não interessaria a nós espectadores se ele não estivesse aí para ser perturbado, mas de modo absolutamente traumático. Por não suportar a autoconfiança do marido, Alice lhe revela um de seus desejos mais secretos e obscuros. Ela lhe conta que no verão anterior, no hall do hotel onde passavam as férias, ela cruzou com um jovem “oficial da marinha” que lhe lançou um olhar de relance. Pois bem, inexplicavelmente, esse mais que breve encontro, no qual nada aparentemente aconteceu, deixou-a completamente capturada. Lembrando Humbert, que investiu toda sua vida em Lolita após vê-la no jardim, Alice igualmente se viu compelida a “deixar tudo” por esse homem: sua filha, seu marido e sua vida segura e confortável. E tudo isso — pasmem! — por apenas “uma noite” de amor! Bastaria que o oficial desse o sinal para que ela se entregasse dessa maneira. Por “sorte”, ele foi embora no dia seguinte e nada disso aconteceu. Essa revelação de Alice pega Bill completamente desprevenido, ele fica em estado de choque, ou melhor, traumatizado. Seu mundo narcísico, sua vida certinha e invejada, vem abaixo, é demolida, pois um dos seus pilares — o desejo de sua esposa — é radicalmente colocado em questão. Uma cratera se abre abaixo de seus pés sem que Bill tivesse tido tempo de se segurar em algo. Aqui não houve o tempo da angústia, a pontinha do real como sinal. Aqui o real lhe cai sobre a cabeça como um monólito, sem poder se valer da função de proteção que a angústia propicia. Mas, se Bill é pego de surpresa, é porque ele nada via e nada sabia sobre por onde andava o desejo de sua esposa. “De olhos bem fechados” nos mostra, por assim dizer, a cegueira de Bill. Só que aqui, diferentemente de Humbert, Bill não está fascinado pelos encantos de sua mulher Alice, mas sim pelos seus próprios. É justamente por não suportar seu narcisismo que sua esposa lhe revela essa verdade avassaladora sobre o oficial. É seu narcisismo, portanto, o que o impede de perceber os detalhes, os indícios, que lhe permitiriam prever algo a respeito do desejo de sua mulher. Aliás, Bill nem se deu conta, na festa em que o casal vai, logo no início do filme, de que Alice se deliciava sendo seduzida e paquerada por um homem mais velho e muito estranho, Sandor Szvost (Sky Du Mont). Digamos que Bill deixou escapar o “x” da questão, ou melhor, o “y”. Bill não foi Billy, ou seja, ele só teve olhos para os objetos visíveis e belos. Esses olhos da objetividade deveriam estar “bem fechados” para que, com ou sem amuleto, eles pudessem se abrir para o que está mais além. Pois bem, tudo o que acontece no filme depois dessa conversa com Alice, pode ser interpretado como os efeitos traumáticos produzidos pela incidência desse real. Bill parte rumo a uma espécie de odisseia de desejos perversos, oníricos, tenebrosos e perigosos. É de notar que toda a realidade à sua volta passa a funcionar de modo estranho, deformado, como se ele estivesse sonhando um sonho angustiante, permeado por desejos sexuais. A conversa com sua esposa é interrompida por um telefonema que leva Bill a se encontrar Marion (Marie Richardson), a filha de um paciente que acabara de morrer. Marion lhe faz uma fervorosa declaração de amor que o deixa constrangido e desconcertado. Em seguida, atordoado, ele sai perambulando pela rua e acaba na casa de uma bela prostituta, Domino (Vinessa Shaw), que o seduziu na rua. Noutra noite, na loja do Senhor Milich (Rade Serbedzija), onde aluga roupa e máscara para a festa misteriosa, ele encontra a filha de Milich (Leelee Sobieski), uma linda adolescente perversa que se insinua para ele. Por fim, ele vai parar na perigosa mansão dos mascarados ricos onde há rituais perversos, orgias com mulheres lindas, tudo isso num clima muito perigoso e angustiante. O que poderia significar essa odisseia de Bill senão um sonho? A dimensão onírica é fundamental aqui, aliás ela consta no próprio título da novela de Arthur Schnitzler — “Traumnovelle”, cuja tradução para o português é “Breve romance de sonho” — em que o filme foi baseado. Essa sucessão de aventuras de Bill pode ser interpretada como um pesadelo, no qual sua estrutura psíquica, seu mundo simbólico, está como que dando voltas, tentando dar um sentido ao buraco traumático aberto pela revelação de sua mulher. Como não encontra uma resposta, pois no fundo não há resposta para o gozo feminino, ele fabrica uma série de cenas comandadas por um supereu gozador, o qual, por sua vez, faz com que toda a sua realidade passe a funcionar de modo pervertido. Neste pesadelo, a figura das mulheres como objeto sexual adquire a forma de verdadeiros demônios que arrastam Bill para um inferno de gozo e morte. Em outras palavras, a sua realidade passa a ser comandada pelo lado mais perverso de suas próprias fantasias. Eis que aqui se evidencia a dimensão fundamental da angústia, tal como Lacan (2006) formulou: a presença do objeto do gozo, as mulheres lindas e sedutoras, e a possibilidade real de gozar desses objetos, tudo isso é profundamente angustiante. Na medida em que Bill constata que não faria falta à sua esposa, já que esta poderia abandoná-lo definitivamente por outro homem, na medida, portanto, em que “a falta vem a faltar” (Lacan, 2006), é aí que os objetos de gozo se tornam excessivamente próximos, é aí que eles se presentificam de forma angustiante.
A função da angústia no tratamento psicanalítico
Por fim, vale dizer uma palavra sobre o tratamento da angústia na clínica psicanalítica. Por um lado, falar a um psicanalista possui sempre um efeito desangustiante, um efeito de apaziguamento. Por outro, há sempre um resto angustiante que a palavra não consegue apaziguar. Pois bem, a direção do tratamento tal como o entendemos é no sentido de um enfrentamento do real do qual a angústia é sinal. Esse enfrentamento deve conduzir o sujeito ao ato. Lá onde não há palavra que de jeito é justamente aí que um ato se impõe como necessário. A maior contribuição de Lacan (2005), no que se refere à função da angústia na clínica, é ter colocado em evidência o seu caráter ativo e produtivo. Qual seja: é justamente por meio da angústia que o sujeito pode vir a realizar um ato, um ato de separação. Podemos apontar a separação em questão no caso de Bill: não necessariamente a separação de sua esposa (com quem ele tem contas a acertar, evidentemente), mas a separação de si mesmo, do Bill que encontra sua razão de ser na satisfação narcísica. Afinal, de que adianta ser um homem tão cobiçado, tão invejado, e não ter o desejo de sua própria mulher? No fundo, não seria uma condição para se assumir verdadeiramente como um homem, na relação com uma mulher, o abandono de seu apego ao culto à sua própria imagem? Referências: FREUD. S. "O estranho" (1919). Rio de Janeiro: Imago, 1989. (Edição standard Grasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 17). FREUD. S. "Inibição, sintomas e angústia" (1925). Rio de Janeiro: Imago, 1989. (Edição standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 20). LACAN. J. "O Seminário, livro 10: a angústia" (1963-1964) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. MILLER. J.-A. "La angustia lacaniana". Buenos Aires: Paidós, 2008. ¹ Esse artigo segue as coordenadas da psicanálise de “Orientação Lacaniana”. Trata-se do trabalho, realizado por Jacques-Alain Miller, de leitura e elaboração a partir da obra de Jacques Lacan. Cristiano Pimenta é psicanalista e membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP); é graduado em Filosofia (USP) e mestre em Psicologia Clínica (UNB).