Em 19 de fevereiro de 2017, comemora-se cem anos do nascimento de Carson McCullers , a escritora estadunidense que retratou a solidão humana com tragicidade, compaixão e senso de humor

Carson MacCullers (1917-1967) tornou-se, ainda muito jovem, uma das escritoras mais populares dos Estados Unidos | Foto: Divulgação

Júlia Reyes
Especial para o Jornal Opção

Imagine escrever seu primeiro romance aos vinte e três anos, conquistar sucesso de crítica e público, ser estudada durante décadas e entrar para a história literária dos Estados Unidos escrevendo histórias sobre surdo-mudos, negros, judeus, corcundas, alcoólatras, meninas adolescentes tomboys e toda a sorte de forasteiros e solitários. Foi o que aconteceu com Carson McCullers (1917-1967), falecida há 50 anos, a garota que, segundo sua biógrafa Virginia Spencer Carr, em “The Lonely Hunter: a biography of Carson McCullers” (2003), poupava dinheiro do algodão doce e do cachorro-quente para assistir a “O Homem Borracha”, “O Cabeça de Alfinete”, “O Homem Cigarro”, “A Dama com a Pele de Lagarto” e todos os freak shows que pudesse. Esta história começa há exatos cem anos, na cidade de Columbus, Georgia, no dia 19 de fevereiro de 1917, quando nasce Lula Carson Smith, posteriormente conhecida como Carson McCullers.

Seu pai, Lamar Smith, era joalheiro e reparador de relógios, e sua mãe, Marguerite Waters Smith, trabalhou para o joalheiro que empregou o marido antes de ele ter sua própria loja. Sendo uma mulher imaginativa e espirituosa, Marguerite pressentia que sua filha seria uma grande artista e a estimulava a aprender piano desde cedo. Aos seis anos, Carson sentou-se ao piano e tocou com as duas mãos uma música que tinha ouvido em um filme. Aos dez anos, iniciou os estudos de piano e aos treze, já sonhava tornar-se uma pianista concertista. Este sonho, porém, é abalado aos dezessete anos, quando foi diagnosticada erroneamente com pneumonia, e posteriormente com febre reumática. A partir daí, McCullers começou a escrever peças de teatro inspirada em Eugene O’Neill e a redesenhar sua futura carreira.

Sua professora de piano, Mary Tucker, precisou interromper as aulas pelo fato de seu marido ter sido transferido para outra cidade. McCullers, então, lhe comunica que se tornaria uma escritora. Com esse plano em mente, a jovem de dezessete anos convence sua mãe a ajudá-la a viajar para Nova York, sob a alegação de aprender piano na famosa Juilliard School of Music. Entretanto, já tinha decidido virar escritora e aprender a escrever na cidade grande.

Nessa fase, McCullers mora em diversos lugares e trabalha em inúmeros empregos informais dos quais terminava frequentemente demitida por se distrair ou ler Marcel Proust, escondida, no horário de trabalho. Firme na decisão de dominar a escrita, a jovem aspirante a escritora estuda por dois anos na Columbia University com Whit Burnett, Dorothy Scarborough e Helen Rose Hull, e faz aulas de escrita criativa na New York University com Sylvia Chatfield Bates.

Acometida por várias doenças, McCullers retorna ao Sul para recuperar-se e durante um desses retornos, conhece seu futuro marido, Reeves McCullers, um soldado nascido no Alabama, também aspirante a escritor, com quem ela se casa em 1937. A vida de McCullers se transforma completamente e seu sonho torna-se realidade com a publicação de seu primeiro livro. O sucesso da publicação a levou a conhecer escritores importantes como Tennesse Williams, Richard Wright e Karen Blixen (que assinava como Isak Dinesen) entre outros.

O livro com que Carson McCullers surpreendeu a crítica literária americana foi “The Heart is a Lonely Hunter” (1940), traduzido por Sonia Moreira como “O Coração é um caçador solitário” (Cia das Letras, 2007). Era quase inacreditável que aquela jovem garota de franja irregular e sorriso delicado, estampados na edição de seu primeiro romance, pudesse ter escrito uma obra que se tornaria leitura obrigatória nas escolas americanas e seria alvo de críticas, artigos e teses por décadas a fio. Considerada por muitos como genial e por outros como uma escritora menor, Carson obteve sucesso e reconhecimento no início da carreira, tendo escrito seus principais romances entre vinte e cinco e trinta anos. Como escritora, foi comparada e contrastada com Eudora Welty, Flannery O’Connor e Katherine Anne Porter, Thomas Wolfe, Sherwood Anderson, Truman Capote e William Faulkner. Com a ajuda do editor George Davis, Carson viveu um tempo em uma casa que ele alugou na 7 Middagh Street, no Broo­klyn, entre ocupantes e visitantes como W. H. Auden, Louis MacNeice, Janet Flanner, Klauss Mann, Richard Wright, Jane e Paul Bowles e muitos outros.

Suas obras principais são seu romance de estreia “The Heart is a Lonely Hunter” (1940), seu segundo romance “Reflexions in a Golden Eye” (1941), a novela “The Ballad of the Sad Café” (1943), publicada originalmente na Harper’s Bazaar e posteriormente na coletânea “The Ballad of the Sad Café: The Novels and Stories of Carson McCullers” (1951), e seu terceiro romance “The Member of the Wedding” (1946), que foi adaptado para teatro, recebendo diversos prêmios na década de 1950, contabilizando 501 performances na Broadway. Tais obras fazem parte da primeira e melhor fase de sua carreira. Na outra ponta, temos sua segunda peça “The Square Root of Wonderful”, que estreou em 1957, na Broadway, ficando sete semanas em cartaz, e o romance “Clock Without Hands” (1961), considerados seus piores trabalhos. Três de seus romances foram adaptados para o cinema, “Reflexions in a Golden Eye” (1967), traduzido como “Os Pecados de Todos Nós”, e dirigido por John Huston, com Marlon Brando e Elizabeth Taylor, “The Heart is a Lonely Hunter” (1968), traduzido como “Por que tem de ser assim?” ou “Um coração solitário”, dirigido por Robert Ellis Miler e estrelado por Alan Arkin, e “The Ballad of the Sad Café” (1992), dirigido por Simon Callow e estrelado por Vanessa Redgrave.

“O Coração é um Caçador Solitário” narra a história de quatro personagens que vivem em uma pequena cidade do Sul dos Estados Unidos, em sua extrema solidão e desesperadas para se comunicar. Escolhem então desabafar com um surdo-mudo – e como se tudo já não fosse absurdo –, chamado John Singer (João Cantor).

O romance começa com um tom de fábula: o narrador suprime o “Era uma vez” e afirma: “Havia dois mudos na cidade, e eles estavam sempre juntos.” De um lado, John Singer é alto, magro e veste-se com sobriedade, do outro lado, seu amigo Spiros Antonapoulos é um grego obeso que veste uma camisa pólo mal enfiada nas calças. A dupla se separa depois que Antonapoulus é internado por seu primo em asilo de loucos, após aprontar uma série de façanhas como pegar sorrateiramente torrões de açúcar, um pimenteiro e talheres de prata de restaurantes e enfiá-los nos bolsos, ou urinar em público na parede do First National Bank.
Sozinho, John Singer muda-se para uma pensão e dirige-se a um restaurante chamado New York Café onde encomenda seu próprio cardápio diário para o dono, Biff Brannon, uma das personagens que começa a fazer parte de sua vida. Biff tem um carinho especial por pessoas aleijadas e doentes e oferecia cerveja sempre que uma pessoa com lábio leporino ou tuberculose entrava no restaurante, e se fosse corcunda ou aleijado, concedia-lhe um uísque por conta da casa.

Fazendo leitura labial e escrevendo notas, Singer conhece outros frequentadores do restaurante como Mick Kelly, uma garota de treze anos apaixonada por música, Jake Blount, um viajante marxista que tenta convencer trabalhadores a organizar uma revolução proletária, e Dr. Benedict Mady Copeland, um médico dedicado à causa negra. No contexto social do Sul dos Estados Unidos na década de 1940, Carson McCullers escreve sobre a solidão humana e a necessidade de comunicação e comunhão, mas também sobre o problema do racismo através da família de dr. Copeland. O filho deste, Willie envolve-se em uma briga de faca em um bordel, é condenado a nove meses de trabalhos forçados e termina torturado por um policial, preso a uma câmara frigorífica e posteriormente perde os dois pés, que ficaram congelados por três dias, e fica aleijado. McCullers retrata o extremismo da violência do Sul, investigando os pensamentos e ideais de seus personagens, tratando a questão racial dentro do escopo da vida intelectual e emocional dos protagonistas. As questões de gênero são trabalhadas a partir da adolescente tomboy Mick Kelly. A abordagem da autora sobre a construção social do masculino e do feminino e suas tensões é tão significativa que ela passou a ser alvo de estudos de teóricos de peso dos estudos feministas como Gayatri Chakravorty Spivak (“A Feminist Reading: McCuller’s Heart is a Lo­nely Hunter”), Sandra M. Gilbert e Susan Gubar (“Fighting for Life”) e Louise Westling (“Tomboys and Revolting Femininity”).

W. Fitzhugh Brundage, em “Lynching in the New South: Georgia and Virginia, 1880-1930” (University of Illinois Press, 1993), comenta que a violência popular tornou-se uma instituição não oficial no Sul estadunidense. Nesse romance, McCullers retrata o cotidiano e a vida interior de pessoas comuns e solitárias, presas ao drama da existência e enfrentando dificuldades de sobrevivência numa sociedade extremamente violenta em que a vida humana, em especial a dos negros, estava constantemente ameaçada por linchamentos.

“The Heart is a Lonely Hunter” foi um sucesso e Carson McCullers saltou do anonimato para a fama de uma celebridade. A crítica literária e os estudiosos acadêmicos desdobraram-se em múltiplas investigações e enfoques sobre sua ficção, que continua ganhando novas leituras.
Para encerrar esse texto, apresento um trecho de um dos seus romances mais elogiados, “The Member of the Wedding” (1946), traduzido por Sonia Coutinho como “A Sócia do Casamento” (Círculo do Livro, 1993), em que três personagens, a adolescente Frankie Adams, seu primo de segundo grau de seis anos John Henry West e a empregada doméstica da casa de Frankie e viúva, Berenice Sadie Brown, discutem alguns reparos na criação do mundo. Esse trecho permite-nos um pequeno passeio por seu mundo ficcional e nos dá a dimensão do estilo de suas narrativas e da própria literatura, em sua capacidade de re-imaginar o mundo. Fica, portanto, o convite para adentrar o território ficcional dessa escritora ainda pouco conhecida no Brasil que foi lida por Clarice Lispector e traduzida por Caio Fernando Abreu (“A Balada do Café triste e outras histórias”, Rio de Janeiro: Globo, 1993) e continua sendo ensinada nos colégios estadunidenses até hoje e suscitando estudos, aprendizados e um profundo sentimento de compaixão em seus leitores. l

Júlia Reyes é escritora e doutoranda em Literatura Comparada, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

TRECHO DO LIVRO “A sócia do casamento”

Quando iniciaram o segundo turno daquele almoço, passava das cinco horas e começava a escurecer. Era a hora da tarde em que, nos velhos tempos, sentados à mesa, com as cartas vermelhas do baralho, algumas vezes começavam a criticar o Criador. Julgavam o trabalho de Deus e mencionavam as maneiras como aperfeiçoariam o mundo. E a voz de deus todo-poderoso John Henry se elevava, feliz, esganiçada e estranha; seu mundo era uma mistura de delícias e aberrações, ele não pensava em ermos globais: o braço repentinamente longo que podia espichar-se até a Califórnia, a terra de chocolate e as chuvas de limonada, o olho extra capaz de ver a uma distância de dois mil quilômetros e uma cauda com dobradiça, que podia ser baixada como uma espécie de suporte, para que as pessoas se sentassem quando quisessem descansar e as flores de açúcar-cande.

Já o mundo do deus todo-poderoso Berenice Sadie Brown era um mundo diferente, redondo, justo e sensato. (…)
Nada de guerra, disse Berenice. Nada de cadáveres rígidos pendurados nas árvores da Europa, nem de judeus assassinados, em lugar nenhum. Nada de guerra, com os rapazes partindo de casa fardados, e nada de alemães e japoneses selvagens e cruéis. Nada de guerra, no mundo inteiro, mas paz em todos os países, em toda parte. Também nada de fome. O verdadeiro Deus Todo-Poderoso fizera o ar grátis, a chuva grátis e a terra grátis, para o bem de todos. Haveria comida grátis para todas as bocas humanas, refeições grátis e um quilo de gordura por semana; além disso, cada pessoa com saúde teria que trabalhar para conseguir qualquer outra coisa que desejasse comer ou possuir. Nada de judeus mortos nem de negros humilhados. Nada de guerra nem fome no mundo. E, por último, Ludie Freeman estaria vivo.

O mundo de Berenice era um mundo redondo, e a velha Frankie escutava a forte voz sombria, cantante, concordando com Berenice. Mas o mundo da velha Frankie era o melhor de todos os três mundos. Concordava com Berenice quanto às principais leias da criação dela, mas acrescentava muitas coisas: um avião e uma motocicleta para cada pessoa, um clube mundial com certificados e insígnias, e uma lei da gravidade melhor. Não concordava inteiramente com Berenice quanto à guerra, e, algumas vezes, dizia que colocaria uma ilha da Guerra no mundo, para onde as pessoas pudessem ir, se desejassem, a fim de lutar ou doar sangue, e aonde ela talvez fosse, por algum tempo, como parte da Companhia Feminina do Exército na força aérea. Também mudaria as estações, tirando o verão e acrescentando muita neve. Fez planos para as pessoas poderem no mesmo instante se transformar de meninos em meninas, e vice-versa, todas as vezes que tivessem vontade. Mas Berenice argumentava com ela quanto a isso, insistindo que a lei do sexo humano estava perfeitamente correta do jeito que era, e não poderia ser melhorada de maneira alguma. John Henry West, a essa altura, não deixava de dar sua opinião, achando que as pessoas deviam ser metade menino e metade menina, e, quando a velha Frankie ameaçava levá-lo para a feira e vendê-lo ao Pavilhão dos Monstros, só fechava os olhos e sorria.

Então, os três ficavam sentados ali, à mesa da cozinha, e criticavam o Criador e o trabalho de Deus. Algumas vezes, suas vozes cruzavam-se e os três mundos se entrelaçavam. O deus todo-poderoso John Henry West. O deus todo-poderoso Berenice Sadie Brown. O deus todo-poderoso Frankie Adams. Os mundos, no fim de longas tardes rançosas.

(MCCULLERS, Carson. “A Sócia do Casamento”. Trad. Sônia Coutinho. São Paulo: Círculo do Livro, 1993, p.93-94)