Por Diogo Alves

Surgido como um produto tecnológico fruto da revolução industrial, o cinema transformou-se em arte após muitas críticas à sua existência em seus primeiros anos, em especial à sua natureza voyeurística, aproximando-se mais de peep shows e espetáculoscircenses do que de uma experiência propriamente estética. No princípio, mais do que contemplar, buscava-se vigiar e espiar, e os donos das primeiras salas de cinema pouco se importavam com a elevação do meio rumo à arte uma vez que seus bolsos estavam constantemente cheios.
Conforme inúmeras mudanças aconteceram no curtíssimo espaço de tempo que foram as décadas iniciais do século XX, entre as quais o crescente desinteresse por um meio que perdia sua novidade e, em contrapartida, o surgimento de uma linguagem cinematográfica estadunidense originada por D. W. Griffith, percebeu-se que a relação observacional do espectador para com a tela não deixou de existir. Pelo contrário, houve uma significativa mudança em como a audiência olhava para as imagens, especialmente quanto àquilo que buscava imaginar a partir dos 24 quadros por segundo. Conforme o inesperado deixou de ser inédito, o cinema viu-se na obrigação de transformar-se em sentimento.
Nesse sentido, conforme as audiências amadureciam lado a lado com o próprio cinema, urgia a criação de obras que falassem e dialogassem com as complexidades emocionais dos indivíduos que compravam ingressos e lotavam salas pelo mundo. Mundo esse que se tornava cada vez mais sombrio e cruel. Assim, entre as décadas de 1930 e 1950, a Sétima Arte consolidou-se, mais do que somente na relação de indivíduos para com o espaço em um recorte temporal de movimento, como 24 sentimentos por segundo. Sob essa ótica, nenhum cineasta é tão sentimental, completo, simultaneamente clássico e moderno como Nicholas Ray.
Falar de Nicholas Ray é falar de um olhar muito raro para com a própria sociedade estadunidense. Um olhar acusatório perante a sociedade enquanto simultaneamente afaga os excluídos e busca entender as vítimas das garras de um sistema econômico que não poderia interessar-se menos pelo que é ser humano. Surge assim Johnny Guitar, lançado em 1954 buscando olhar para um dos períodos mais violentos da história dos Estados Unidos.
Centrado na luta de Vienna, magistralmente interpretada por Joan Crawford, dona de um saloon que recebe os indesejados da região, contra as pessoas de bem que buscam apossar-se de suas terras, Johnny Guitar, intitulado graças ao personagem misterioso de mesmo nome interpretado por Sterling Hayden,é, para além de um filme genial, uma narrativa profundamente funcional em sua simplicidade. Mais do que isso, éuma obra-prima em que cada gesto é muito mais que um mero ato, mas sim uma confirmação simbólica de um olhar estético perante um gênero de muitas contradições que é o western, em um tempo no qual o mero ato de existir era uma pulsão de violência.
Pode-se chamar essa obra de anti-western, western definitivo, melodrama disfarçado de western, western camp... o que importa é que se trata de um dos (muitos) filmes definitivos do cineasta americano definitivo. Daquele que é, provavelmente, o gênero americano definitivo. Feito por um cineasta que, em um gênero profundamente problemático quanto ao trato das mulheres, posiciona duas personagens femininas como fios condutores da trama, isso ainda com alguns traços sutis e intertextuais de homoerotismo. Um cineasta que, em uma época de perseguições políticas cegas, coloca o establishment como o grande vilão da obra, em sua perene busca enquanto artista por defender os indefensáveis perante o olhar hegemónico e representar os esquecidos e não pertencentes. Há algo mais triste e comum do que simplesmente não pertencer?
Para além de um dos mais clássicos usos do tecnhicolor, Ray eleva seu uso corriqueiro da linguagem para além de suas costumeiras resoluções cénicas em um plano geral/conjunto mais alongado e, a posteriori, um contraplano mais próximo e mais um plano de descrição para um uso quase espiritual da luz. Uma luz muito chapada, onipresente e controlada que ilumina todas as ações quando há embates e que, quando o amor se revela, é reduzida a um mero recorte dos rostos a se fundirem e, quando o amor se finda momentaneamente, a luz natural quase estourada a mostrar como, naquele ambiente e naquela junção de espaços, não há nada nativo para além da violência.
Nicholas Ray foi, desde sempre, alguém com um viés social muito forte e que, ainda assim, por saber que é um artista, propõe muito mais um olhar estético e poético através de imagens-símbolos do que resoluções sociais. Não só por trabalhar em um período de censura arraigada em Hollywood, mas por compreender muito bem o papel do artista e a inutilidade da arte em si. E o final não poderia ser mais artístico. É a completa subversão em forma de romance. É um olhar sobre uma sociedade doente a partir de um dos mais belos olhares estéticos já feitos em celuloide. Afinal, não é para isso que existe o cinema?

Osgood Perkins é um cineasta que cada vez mais se posiciona em um patamar de muito destaque no cinema de terror contemporâneo

Quando se pensa em algo tão plural e diverso como a existência humana, é difícil imaginar um elemento unificador comum à totalidade dos povos, independente dos aspectos sociais e vivências que os cercam, em todos os cantos do mundo. Apesar de a música, a arte e o futebol serem elementos muito presentes no cotidiano de grande parte das pessoas, ainda assim é complexo considerá-los como algo mais profundo que um ópio diário ou um elemento de fuga através dos sentidos e sentimentos. A religião possui tantas nuances e variações que sua mera existência enquanto conceito universal esbarra em suas próprias particularidades. Qual é, portanto, a linguagem universal à humanidade? Qual a canção que, quando tocada, faz dançar todos os nomes que existiram, existem e existirão sob o céu?
Um dos padrões mais fascinantes da natureza é o trabalho como força motriz para todo e qualquer progresso desenvolvimentista. Formigas e abelhas se distribuem e dividem-se em organizações centradas na força e na estruturação do ato de trabalhar. É somente assim que sobrevivem. Desde a pré-história, a humanidade desenvolveu-se e refinou-se social e tecnologicamente graças à evolução do trabalho. Trabalhar é, mais do que somente algo cotidiano, um elemento essencial para a sobrevivência na Terra. Não existe sobrevivência sem trabalho.
Curioso pensar, também, como não existe opressão surgida sem relacionar-se à divisão do trabalho. Toda forma de ataque e exploração é direta e inevitavelmente relacionada a um elemento estrutural causado em algum ponto pela exploração do trabalho. O racismo é herança dos modos de produção escravistas potencializados pelas Grandes Navegações, assim como o machismo e a misoginia patriarcal originam-se e perpetuam-se, segundo Friedrich Engels, desde a divisão doméstica do trabalho na pré-história. A homofobia surge a partir da predileção por um modelo de família cuja existência é voltada para a lógica de produtividade industrial.
Mais do que somente social, não há opressão que não possua um motivo econômico. Então, por que essas explorações ainda continuam tão presentes, uma vez que aqueles que a sofrem são profundamente mais fortes, numerosos e resistentes do que aqueles que lucram com esses malefícios, sentados em cima de uma estrutura assassina? E qual o valor social daquele que, enfraquecido e maltratado pelo tempo e pelo labor excessivo, não mais pode contribuir para o trabalho social? E quanto aos que não mais estão entre nós, qual valor possuem?
Quando se pensa nas coisas somente sob a ótica do valor, é inevitável enxergar tudo como algo passivo de um mero e oportuno descarte. De que vale uma ampla floresta cujas árvores ocupam um terreno que, se desmatado, poderia alimentar incontáveis pessoas? De que valem os falecidos que ocupam uma planície que, se inundada, servirá para gerar energia para todo um país? De que valem as vidas, os terrenos e as memórias que ousam entrar no inefável trilho do progresso? “O que chamam de progresso é quando o homem pega seu maldito dedo, aponta para a natureza e clama tê-la conquistado”.
Essa é uma frase dita por um dos moradores de Nazaretha, conjunto montanhoso de vales e planícies anteriormente chamado de Vale das Lamentações, onde pode-se escutar as lamúrias de todos aqueles que foram levados pela enchente e, não menos importante, onde centra-se a ação de “Isso não é um enterro, é uma ressurreição”, filme de 2019 dirigido por Lemohang Jeremiah Mosese. Realizador nascido no Lesoto, país enclave na África do Sul, e radicado na Alemanha, possui um cinema profundamente intrigante e autoral que se centra, além das noções de territorialidade e cultura, especialmente em metáforas bíblicas e em noções de martírio em relação aos seus personagens e narrativas. “Mãe, estou sufocando. Esse é meu último filme sobre você”, de 2016, já se apoia profundamente na Via Crucis como metáfora central para estabelecer uma relação transcendental entre maternidade, pátria e colonialismo.
Já em sua obra-prima de 2019, utiliza de uma centralização da noção cristã de martírio para relacionar as noções de ancestralidade e território, opondo-as à opressão econômica, apoiada na muleta do progresso que, em nome do futuro, destrói todo o passado e desidrata as possibilidades do presente. Interessante pensar em como Lemohang utiliza-se de pouquíssimos planos gerais para estabelecer as ações, preferindo os close-ups ou os planos médios que se aproximam através dos zooms, perpetuando os rostos de seus personagens e, consequentemente, suas emoções e vivências. Quando há um plano geral, atua muito mais para estabelecer os territórios selvagens, com a terra sempre ocupando um espaço diminuto no quadro em relação ao céu, o que parece nos dizer que, além de universal, trata-se de um acontecimento que transcende as meras noções de geografia, influenciando na essência do que é ser humano e em sua consequente ligação espiritual com o caminho que perpassa todos aqueles males.
A centralidade dos planos detalhes e o uso de lentes mais abertas, aliada à proporção de tela próxima a um 4:3, cria um mundo, ainda que possua traços culturais e geográficos muito característicos do Lesoto e de seus habitantes, cujas nuances e idiossincrasias poderiam pertencer a qualquer um dos cantos do mundo. A luta de Mantoa, uma anciã brilhantemente interpretada pela mágica Mary Twala, contra um lobby empresarial gigantesco poderia tranquilamente ser transportada para o cerne de “Aquarius”, de Kléber Mendonça Filho, assim como o drama da expropriação perante uma enchente pode ser pensado também sob a ótica da obra literária “O chão sobre as águas”, da escritora goiana Simone Athayde. Para além de sua construção magistral e da valorização da cultura e dos valores locais, a força da obra de Lemohang Jeremiah Mosese está em sua universalidade, em especial ao tratar o não pertencimento como uma questão inerentemente humana.
Em uma obra desse calibre e com uma delicada temática, em especial ao ser protagonizada por uma personagem idosa, é tentador abandonar a estética em detrimento de um teor social pasteurizado ou, pelo contrário, realizar algo socialmente abominável ao olhar somente para a estética. Lemohang, entretanto, é brilhante ao compor os planos de uma forma não somente a descrever muito bem os espaços com suas panorâmicas, mas especialmente ao controlar muito bem o que está em foco e o que está desfocado. Destaca-se como os funcionários da empreiteira, sempre responsáveis por destruições e ruídos externos, não somente jamais tem seus rostos mostrados, como nunca aparecem sequer em foco nos planos, reduzindo-se a meros borrões amarelos. Ainda mais fantástico é como os planos servem de holofote para a oralidade, ponto central da obra, simbolizada pela figura do Narrador e de seu instrumento musical, aflorada por diálogos e monólogos fantásticos que poderiam tranquilamente saírem de livros de poemas.
Assim como, comumente, esperamos que um filme nos guie rumo a uma resolução narrativa, aguardamos da vida a inevitável chegada da morte. Mas e se ela não for o fim? E se todas as pessoas que cruzamos pelo caminho e que não mais podemos tocar nos guiam e apoiam ao longo de toda a caminhada? E se a ressurreição for não através da carne, mas através do martírio cujo caminho serve de inspiração e resistência para as gerações futuras? Assim como Mantoa nunca esteve viva em toda a obra, o Lázaro de “Isso não é um enterro...” não é ressuscitado pelo Messias, mas sim pela noção de coletividade que alimenta todos que o cercam e que, inspirados em sua dança e na luta de sua mártir, avançam rumo à morte certa, mas que é o único caminho através do qual podem permanecer vivos. “Nós acabamos onde começamos. E recomeçamos tudo de novo. Com novos sonhos, novas esperanças, novas ambições e perspectivas. Quem sabe talvez até com um novo Deus?”
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Pensar em humanidade é, sobretudo, pensar em dicotomias. Sejam sociais, linguísticas ou econômicas, as bases que sustentam tudo o que conhecemos existem graças ao fato de que somos, enquanto humanos, seres polarizados. Aguardamos pela chegada da noite enquanto nos revigoramos sob os últimos raios de Sol. Queimamo-nos com o toque do gelo e nos refrescamos com um gélido líquido que rasga nossa garganta. Choramos de amor e rimos de ódio. Ansiamos desesperadamente por desbravar o desconhecido quando a beleza do excessivamente conhecido não nos causa nada além de desespero. Organizamo-nos socialmente entre oprimidos e opressores, ainda que essa esteja muito longe de ser uma escolha voluntária. E, acima de tudo, ansiamos por jamais precisarmos escutar a insuportável voz interior que nos sussurra no ouvido todos os dias, através de todas as polaridades.
Enquanto seres sociais e evolutivos, a mais significativa dicotomia para o nosso desenvolvimento aparenta ser, simultaneamente, o desenvolvimento da linguagem e a ocupação dos espaços vazios. Criação e êxodo. De nada adianta vivermos próximos se somos incapazes de linguisticamente nos compreendermos, e de nada adianta entender as dores do próximo se, além do horizonte, existem possibilidades em demasia para que não as desbravemos e convivamos com novas dores de outros próximos. Conforme a evolução tecnológica da humanidade tornou e torna cada vez mais ínfimas as distâncias, mais lotados os antes vazios espaços e mais refinada e universal a linguagem, mais perde-se a noção da importância que a voz interior possui em nossa vivência.
Conforme o primário torna-se sofisticado e o refinado retorna ao primário, há cada vez menos espaço para a solidão em seu sentido literal. Ainda que se busque repousar por meros dois dias, sejam eles úteis ou inúteis, a âncora de nosso novo e admirável mundo nos notifica sobre o quão necessária se faz nossa presença, nosso convívio e, sobretudo, nossa voz. Em uma era onde a vox populi é banalizada, o quão privilegiado é alguém que pode se dar ao luxo de manter-se em silêncio? Como permanecer impassível quando todas as seduções nos sussurram aos ouvidos, pedindo e clamando por nossa voz? O pensador Gilles Deleuze nos disse que, nas sociedades contemporâneas, os instrumentos de controle e opressão, ao invés de reprimir nossa voz e silenciar-nos, nos levam à expressão ininterrupta e incessante, retirando de nossa existência até mesmo a mera possibilidade de não termos nada a dizer.
Capitalismo torna-se inefável e supera até mesmo o fim do mundo, através de sua própria concretização, pois torna a voz exterior infinita enquanto, simultaneamente, sepulta a voz interior. E existe símbolo maior desse modo de organização socioeconômica e síntese dos fenômenos de criação e êxodo do que a selva de concreto onde sonhos são realizados? Enquanto um elemento espacial e multicultural, poucas cidades no mundo foram tão pensadas sob o escopo cinematográfico como Nova York. Seja por autores como Sofia Coppola, John Cassavetes, Spike Lee ou Abel Ferrara, o centro cultural do império americano é, além de tudo, a Roma de nosso tempo: para onde todos os caminhos levam e de onde as maiores barbáries saem. Por que, então, em meio a esse oceano de corpos e vozes, estamos cada vez mais sós?
Pensando a Sétima Arte enquanto expressão da voz interior e síntese das dicotomias humanas, nunca houve, na humilde opinião desse que vos escreve, alguém mais talentoso a fazer cinema do que a belga Chantal Akerman. Aquela que mais belamente transformou nostalgia em melancolia, e vice-versa. Cineasta cujos filmes melhor expressam o que é ser humano em um mundo excessivamente globalizado e contraditório, estabeleceu News From Home, de 1976, a partir de um período em que morou em Nova York após a boa recepção de suas obras por parte de críticas e festivais europeus. Misto entre documentário e filme-ensaio, utiliza como mote central cartas de sua mãe e planos longos e estáticos da Babilônia de nosso tempo enquanto imagem e som unem-se para ressaltar a relação entre palavra e distância.
Através dos planos estáticos, longos e dilatados, Chantal ressalta a natureza enclausurada daquele ponto de vista, em especial devido à possibilidade de comunicação, ainda que haja um oceano entre nós. Mesmo assim, vivendo na Pólis definitiva e sempre tendo notícias de casa, sentimos os planos e a câmera cada vez mais distantes e sós. Mas não é isso algo raro em uma sociedade tão eloquente? Mas não seria justamente uma dicotomia demasiadamente humana transformar o raro em corriqueiro? O quão complexo e difícil para uma mãe é comunicar-se com uma filha tão distante somente através de cartas, sentindo a ausência todos os dias, mas entendendo que tal situação se deve à busca por um sonho ou, em menor escala, um objetivo? Somos seres contraditórios, ainda que nos convençamos diariamente do contrário.
Além de tudo, pensar nessa lógica é pensar no plano final da obra, que equivale à profundidade de uma série de estudos acadêmicos. Observarmos a Metrópoles afastando-se e boiando em meio às águas é, sobretudo, pensar em todos os símbolos sociais que nos cercam e, consequentemente, na vida que vivemos. Em todas as pessoas que cruzamos pelo caminho. Nas emoções que sentimos. No afeto que temos por aqueles que habitam e enriquecem nossos arredores. E, acima de tudo, pensar que, muitas vezes, distanciar-se nada mais é do que um muito bem-vindo até logo.
News From Home é, acima de tudo, uma celebração da vida humana. Vida essa que envolve distâncias, falhas de comunicação e, sobretudo, amor e voz interior. Ainda que haja um oceano a separar-nos, ainda que existam mil e uma pedras no caminho, ainda que falte coragem para externar aquilo que verdadeiramente é sentido. Mas não é a voz interior aquela que verdadeiramente nos representa? Não é nos breves intervalos de silêncio que verdadeiramente nos sentimos vivos? Vivemos porque amamos e, especialmente, por termos uma casa para eternamente retornar. Ainda que Chantal, em seu primeiro trabalho cinematográfico, tenha explodido sua casa, enquanto viva e em atividade, sempre pôde voltar para seu lar, uma vez que a morada são as pessoas que encontramos pelo caminho, e não as paredes que insistem em nos enclausurar.
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Um dos mais básicos pilares do pensamento filosófico é a existência de dimensões éticas e morais referentes à existência em sociedade. Enquanto a moral representa hábitos e costumes coletivos, ética diz respeito à adaptabilidade reflexiva da consciência diante da moral, podendo ir ao encontro ou de encontro a ela a depender da situação. Ao longo de todo o cotidiano histórico, ética e moral se digladiam, muito por conta de que, na majoritária parcela das situações, os defensores da moral são as pessoas mais antiéticas presentes em todo o globo. E como o cinema é uma das formas de pensamento filosófico, os domínios da Sétima Arte não estão alheios a esse debate.
Desde pavorosos debates morais cinco séculos atrasados sobre a necessidade do uso da nudez no cinema em pleno século XXI (ora, caro leitor, se o artista se deixar levar pelo teor de utilidade em sua produção, nenhum filme, livro, série ou pintura jamais será feito) até a linguagem cinematográfica como um campo sedutor para a antiética, discute-se sobre o papel do diretor não somente como artista, mas também como pensador. Como esquecer que não somente Jean-Luc Godard dizia que um traveling é uma escolha ética, mas também que Jacques Rivette condenou efusivamente Gillo Pontecorvo pelo uso desse mesmo movimento de câmera em Kapò, filme sobre uma mulher judia enviada a um campo de concentração? Dirigir um filme é inevitavelmente direcionar e enviesar o olhar de milhares de pessoas para um tema de uma forma específica e, logo, requer ética e responsabilidade.
Ética e lucro, entretanto, podem caminhar juntos? O cinema, arte inerentemente industrial, e seus produtores estão mais preocupados com seus bolsos enchendo ou com serem histórico e eticamente responsáveis ao retratarem uma catástrofe monstruosa e humana? Creio que a existência e ampla premiação a filmes abomináveis como A Vida é Bela, o Menino do Pijama Listrado, entre outros, já é prova o suficiente que, quando se quer ganhar dinheiro, mais vale cuspir na história de um genocídio através de um olhar divertido e redutivo (quase negacionista) e desumanizador do que algo propriamente desconfortante. Melhor ainda quando é puramente um uso espetacularizado do sofrimento. Choro vende, ainda mais quando dele brotam a borbotões lágrimas europeias e brancas.
Dessa forma, quando busca-se retratar artisticamente um acontecimento tão triste, lamentável e feito pela faceta mais cruel do ser humano, há de se ter o mínimo de consciência de como olhar para isso. Nesse ponto, em especial nessa escolha em específico, reside o melhor de A Zona de Interesse. Premiado em Cannes, indicado ao Oscar 2024 e dirigido pelo ótimo Jonathan Glazer, a obra não faz qualquer questão de relembrar o espectador sobre as generalidades de que o filme se trata. Espera-se que aquele que aceite o desafio de assistir à obra tenha plena consciência do que foi o Holocausto, o que era Auschwitz, o contexto histórico da Segunda Guerra Mundial e tenha consciência acerca da bestialidade dos nazistas.
Mais do que isso, trata-se de um filme sobre especificidades, pequenos gestos e persistências que permitiram com que seres humanos vivessem bucólica e comumente impunes diante de uma das maiores e mais sádicas tragédias dos tempos recentes. A inserção do conflito como sendo a forçada saída da família nazista de Auschwitz para que o pai pudesse escalar ainda mais no exército do reich também é de uma precisa crueldade que só nos demonstra o quão fútil é o valor da vida humana a depender da nacionalidade, etnia, sexualidade, credo religioso, entre outros. A depender de alguns desses fatores, sequer se merece o nobre título de intitular-se ser humano. Acompanhar imageticamente não os agredidos, mas sim os agressores, é uma fenomenal escolha para nos mostrar que não somente eram pessoas reais (monstruosas, abomináveis, inefavelmente condenáveis, e ainda assim seres humanos), mas também para nos colocar na posição de agressores que vivem normalmente enquanto, ao nosso redor, seres humanos são massacrados.
Digo imageticamente pois, em termos sonoros, a obra é completamente diferente. Robert Bresson, em suas Notas para o Cinematógrafo, dizia que enquanto a imagem é o domínio do surreal, do onírico abstrato, é o som quem retoma o teor de real para o filme. Enquanto a fotografia aqui se utiliza de um esquema imagético quase de câmera de segurança, com a simultaneidade gravada das ações, alta profundidade de campo, lentes grande-angulares e a luz estritamente natural gerando imagens que remetem a uma performance artística museográfica e asséptica, a humanização presente na construção sonora sempre se certifica de nos relembrar que aquele distanciamento bucólico e chapado da imagem possui uma razão profundamente sombria e dolorosa.
Não há qualquer espaço para fuga desse simulacro demasiadamente real, e qualquer sinal de humanidade ou está nos sons do outro lado dos muros e dos arames farpados, ou então é fotografado em negativo, em uma escolha visual primorosa. Não há espaço para bondade lá, e quando ela existe, deve ser representada como a antítese da imagem convencional. Trata-se de um cotidiano abominável justamente por ser profundamente simples, e por nos lembrar que catástrofes como essas, onde assassinos escolhem roupas das vítimas para suas esposas e brinquedos para seus filhos, não só podem voltar a acontecer como já, nesse exato momento, acontecem diante de nossos próprios olhos. A cena do casaco de pele sendo escolhido pela abominável personagem de Sandra Hüller é um tapa na cara e um soco no estômago quando vemos um exército genocida, atualmente, posando para fotos com lingeries de mulheres estupradas, brinquedos de crianças assassinadas e bengalas de idosos chacinados por um povo eleito. A História infelizmente está condenada a repetir-se, e a violência é demasiadamente banal e espetacularizada em nosso dia a dia para que algo possa ser feito.
Por mais que o filme seja primoroso em suas escolhas basilares, é justamente no fortalecimento de sua dinâmica cotidiana que os problemas passam a se tornar mais presentes. As escolhas da decupagem mostram-se muito repetitivas mesmo se tratando de um filme sobre cotidiano (quase toda cena é resolvida em plano geral, contraplano também mais aberto e um plano mais próximo), e o teor repetitivo das ótimas atuações, que acabam, na mesma forma que funcionando para mostrar-nos aqueles personagens como personas que poderiam facilmente ser qualquer outra pessoa, tornam-se também elementos dissonantes do meio para o final e abraçam um sadismo que vai totalmente de encontro a toda a ética representativa básica que o filme nos mostrava.
E o que dizer da cena final e das “metáforas”, então? Glazer é um ótimo diretor justamente por como, desde o início de sua carreira, estabelece obras com uma consciência estética muito pessoal e sem torná-las cosméticas, tratando sempre sobre tabus e personagens em situações sensíveis de forma muito humana, como nos mais “convencionais” Sexy Beast e Birth, ainda que sua abordagem seja muitas vezes, como no extraordinário Sob a Pele, a mais performática, antinaturalista e distante possível. O que passa na cabeça de alguém como ele achar de bom gosto colocar metáforas com porcos e o forno da bruxa de João e Maria em um filme sobre o Holocausto? Um dos grandes méritos da obra é justamente não ser didática, mas justamente em suas buscas por uma transcendência moralista (o que por si só já é um absurdo) que as coisas se tornam um beabá e sádicas em um nível quase tão ruim como as obras que citei anteriormente.
Li alguns comentários e críticas que acusavam o filme de ser uma negação do Holocausto e acho isso de uma falta de noção e analfabetismo cinematográfico abissais, especialmente ao compararmos A Zona de Interesse com outras obras sobre o genocídio. Ainda mais por ser um filme sobre especificidades e pequenos gestos, e não sobre closes em rostos e lágrimas. Trata-se, inclusive, de um olhar muito mais desconfortável sobre um tema que precisa ser retratado de forma desconfortável, ainda mais quando nós somos colocados no lugar dos agressores, visto que somos contemporâneos a inúmeros genocídios e fazemos muito pouco ou rigorosamente nada (isso quando algumas pessoas não prestam solidariedade aos genocidas, saem com suas bandeiras nas ruas, etc.).
É inacreditável, entretanto, como as imagens reais e atuais de Auschwitz são usadas não como uma forma de relembrar-nos da tragédia e da banalidade do mal, mas sim de dar uma certa moral redentora a um personagem abominável e literalmente um dos comandantes das forças de Hitler. Um vômito cinematográfico não era tão falso quanto o de um dos chefes de esquadrões de morte na Indonésia em O Ato de Matar, de Joshua Oppenheimer. Por mais que possa ser a reação de alguém percebendo que todo esse simulacro frio e asséptico é, na verdade, algo demasiadamente real, nada justifica um uso tacanhamente mesquinho de uma montagem alternada. O Código Hays, mesmo em um filme de “fora de Hollywood” e quase seis décadas após seu fim, ainda vive.
Dessa forma, Zona de Interesse é um dos filmes recentes mais bem sucedidos moralmente falando sobre a tragédia que foi o Holocausto, justamente por como subverte nossa noção básica de protagonismo e coloca-nos na mais desconfortável das posições. Quase a totalidade daqueles que se intitulam cidadãos de bem na atualidade estariam do lado de fora dos muros, vivendo normalmente em meio aos gritos e à fumaça no céu. É na dimensão ética, todavia, que residem as problemáticas da obra, justamente por conta de muitas das decisões amarradas de seu realizador, também pela forma como se limitou a alguns dos conceitos mais ficcionais e estadunidenses do cinema.
Na vida real genocidas raramente são punidos, não tem catarses espirituais e muito menos vomitam quando percebem as consequências de suas ações. Por mais amoral que pareça, manter um personagem abominável impune em uma obra de arte pode ser, a depender das circunstâncias, a coisa mais ética a se fazer. A banalidade do mal reside justamente no quão cúmplice um artista se propõe a ser, e o fato da arte ser o domínio das reflexões humanas faz com que, enquanto artistas, o lema de jamais perdoar para jamais esquecer deva ser bem compreendido. Lamentavelmente, enquanto sociedade, esse lema foi abandonado há muito, tanto que tal tragédia se repete diante de nossos próprios olhos, e escolhemos direcionar nossa vista para as flores de nosso jardim e não para as vidas ceifadas fora dos muros e arames farpados de nossos confortabilíssimos simulacros.

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