Algo comum a muitos brasileiros é a característica extremamente peculiar de ser, simultaneamente, um patriota virulento e o mais vira-lata dos entreguistas. Desde o louvor a figuras nacionais que possuem o mínimo destaque internacional até o anterior desprezo a essas mesmas pessoas que lutavam por reconhecimento doméstico, tudo é envolvido por um teor muito cotidiano de farsante soberba. Ignorar que boa parte do sucesso ultramarino dessas figuras se deve a nossa carente insistência e que as demandas desses indivíduos são minadas por nós mesmos, justamente pela ausência dessa força exterior inexistente que supostamente as legitima, faz parte do cotidiano de quem nasce entre o Oiapoque e o Chuí.

Em algum ponto do limbo existente entre defender com afinco a incontornável origem brasileira do avião e menosprezar a qualidade histórica do cinema brasileiro pela ausência de uma minúscula estatueta, observa-se como a Sétima Arte é constante alvo dessa dicotomia. Desde o desprezo à produção nacional devido ao pânico moral envolvendo os “imorais” diretores de nosso país até o louvor a atores dessa terra quando possuem três minutos de estrelato em horríveis filmes da terra do Tio Sam, muitas inverdades absolutas assombram aqueles que possuem uma missão tão ingrata como a de criar cinema nesse país.

Além disso, um país que possui infindáveis problemas mais sérios, como fome crônica, brutal violência socioeconômica no campo e nas cidades, machismo, racismo e homofobia, tem muitas outras coisas para se preocupar para além do fato que Luís Bonfá foi sampleado sem aviso prévio (um termo chique para plágio) em uma música que se tornou um dos maiores sucessos comerciais da história ou que a banda de rock mais bem sucedida comercialmente em todos os tempos, é um plágio direto à identidade visual do atemporal grupo Secos e Molhados. Em uma terra onde as pessoas sequer sabem o que vão comer no amanhã, a cultura, que jamais encheu a barriga de ninguém, torna-se uma distração incômoda e alienada. No máximo vira motivo de piada.

O que resta, então, para aqueles que vivem de manter vivo o conjunto de práticas e costumes que definem o que torna um conjunto de indivíduos uma nação? Antonin Artaud, um dos definitivos dramaturgos do século XX, cunhou o Teatro da Crueldade ao dizer, entre outros fluxos de pensamento, que “o mais urgente não parece tanto defender uma cultura cuja existência nunca salvou qualquer ser humano de ter fome e da preocupação de viver melhor, mas extrair, daquilo que se chama cultura, ideias cuja força viva é idêntica à da fome”[1]. Baseado nesse pensamento, realizadores como Glauber Rocha fizeram, através do Cinema Novo, uma revolução na maneira como a cultura, através da Sétima Arte, era realizada no Brasil, em plena ditadura militar. Como um substrato radicalizado, mais popular e anti-academicista surgido desse movimento, o Cinema Marginal adicionava, como ingrediente mitigador da fome, a antropofagia do Modernismo andradiano.

Por mais que seja inseparável da avalanche de linhas culturais que inundavam o Brasil pós-AI-5, Sem Essa, Aranha, realizado em 1970 e represente magno da produção cinematográfica marginal no Brasil (menos popular que O Bandido da Luz Vermelha, mas mais simbólico e potente), caminha vários passos adiante na trilha da vanguarda do próprio cinema. A tendência dos planos de dissolverem-se de pilares narrativos para mediadores que buscavam uma relação mais sensorial entre audiência e os elementos desordenados na tela, concretizando-se no chamado “cinema de fluxo” que os teóricos enxergariam nos filmes de Bela Tarr e Naomi Kawase nos anos 1990, foi feita ao menos duas décadas antes por Rogério Sganzerla.

Em uma obra que busca questionar as origens dos mais picaretas dos males de um país que curiosamente é idêntico ao nosso, tratado pelo próprio realizador como sendo o Ulysses, de James Joyce, à brasileira, Helena Ignez, Maria Gladys, Zé Bonitinho e Luís Gonzaga, entre outros, envolvem-se por uma câmera física em incansável movimento através de oito planos-sequência de dez minutos que buscam, para além de experimentar diante da duração dessas imagens, englobar corpos frágeis e exaustos que sobrevivem à realidade em uma terra eternamente imutável. Desde os ambientes internos até a memorável sequência na favela, aprisionados à realidade social do Brasil, esses indivíduos gritam de fome, anseiam pelo pecado, pelo fim do sistema solar e dizem sobre como o diabo parece ir com a nossa cara. Não é de se surpreender que Rogério Sganzerla, diante de tanto niilismo à brasileira, era considerado um aspirante a terrorista pela ditadura militar.

Como está no filme, entretanto, o verdadeiro terrorista “quer fazer do Brasil anti-Brasil e do brasileiro anti-brasileiro”. Portanto, caro leitor, sempre desconfie daqueles que, para além de rir da morte de nosso povo, se dizem especialistas, mas reduzem nosso cinema a apenas três filmes ou dizem que nossos realizadores deveriam esquecer a política e fazer filmes como os de Hollywood (ora, fazer uma obra como Independence Day, em que o presidente do país mais belicista do mundo salva o planeta de uma invasão alienígena empunhando sua bandeira não é política?). Que, inspirados em nossa própria ferrenha defesa dos nossos, possamos construir condições mais prósperas no presente enquanto abandonamos o idealismo de um futuro que nunca virá. Mesmo que isso requira chamar um ditador de vagabundo em pleno regime. Tudo em nome da liberdade poética, claro. Pois como Sganzerla mesmo disse, em um recado à nação, “quem não entendeu até agora não vai entender nunca”.

Veja o recado de Sganzerla:


[1] ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Martins Fontes, 2006.