Quando arde a terra: o interior e os corpos no cinema feminino latino-americano
27 agosto 2023 às 15h04
COMPARTILHAR
Desde que existimos enquanto sociedade, o interior e o campo se caracterizam por uma melancólica amnésia enquanto um lugar ao qual deve-se eternamente retornar. De movimentos literários cuja lírica glorifica a paz campestre até doutrinas supremacistas que remetem a um onírico passado perdido através do qual deve-se recuperar a pureza de uma raça que se degenerou a partir do abandono de seu espaço vital, o campo é idealizado como uma espécie de Elísio no qual tudo o que é mau se desintegraria diante da bondade inerente a esse espaço.
Tal qual todo idealismo, contudo, esse imaginário não poderia estar mais distante da realidade. Ainda que se crie uma imagem de paraíso autossustentável, o interior é palco de guerras e chacinas desde o momento em que história se tornou História. Para o estabelecimento de cada latifúndio, milhões de trabalhadores do campo e vozes indígenas foram apagadas sem sequer terem o direito a uma vírgula nos livros onde se demonstra o quão linda é a vida fora das cidades. Até recentemente, nos interiores brasileiros, persistia a posse de escravos por parte de grandes latifundiários em um modelo feudalista no qual, se não se permitisse ser violado no cultivo da terra, morria-se de fome. Ainda hoje, vozes que buscam questionar essa lógica e lutar pelo mínimo de melhorias são silenciadas em nossos Campos Elísios.
Curiosamente, esse tipo de produção cultural sempre tende a reforçar um ideal masculinista de prevalecimento de uma raça superior responsável por manter a paz e a “ordem natural” do campo, mesmo que para isso corpos considerados invasores por essas doutrinas supremacistas tenham que ser dizimados ou domados no caminho de Homens heroicos. A história nos demonstra, contudo, que, desde sempre, o homem é o menos confiável dos narradores. Também nos interiores, persistem incansavelmente as relações coloniais, em especial na América Latina, convenientemente ocultadas quando se exalta a beleza do campo.
Em meio a tais contradições, surge uma significativa voz do cinema feminino latino-americano. A diretora Paz Encina, grande responsável pela retomada do cinema no Paraguai pós ditadura militar, lança Hamaca Paraguaya em 2006, obra-prima premiada em Cannes e considerada um dos primeiros filmes do século XXI no país. Observamos a vida de um casal de idosos nos anos 1930 que calmamente espera pela chegada de seu filho, da chuva, ou de algo que rompa a estase em seu cotidiano. Com uma premissa similar a Esperando Godot, de Samuel Beckett, a realizadora estabelece dilatados planos gerais que nos levam a uma distante imersão naquele ambiente, gerando uma ambiguidade que, ao mesmo tempo em que nos afasta fisicamente daquelas pessoas, nos insere definitivamente naquele ambiente através da intimidade das conversas em off e da ausência de diálogos. Aos poucos, pacificidade se torna lamúria quando percebemos que a vida daquelas pessoas se resume a aguardar o inevitável.
Já em 2022, com seu filme Eami, vencedor do prêmio máximo no festival de Rotterdam e cujo título é uma palavra em Ayoreo que significa tanto “floresta” quanto “mundo”, Paz Encina retorna às contradições do interior. Em algum momento do período colonial no território paraguaio do Chaco, região com a maior taxa de desmatamento florestal no mundo, a obra segue o ponto de vista de Asoja, deusa-pássaro que encarna em uma jovem da etnia Ayeoreo Totobiegosode e que possui a capacidade da onisciência. Partindo dessa brilhante premissa, a realizadora flutua em um misto de ficção e documentário onde vemos, através de seus lentos e característicos planos gerais, como os colonizadores predaram a floresta e escravizaram os povos originários da região, destruindo qualquer vestígio de paz e harmonia que lá existia anteriormente.
Destaca-se, mais uma vez, as escolhas visuais de Encina e o prevalecimento de vozes em off em detrimento de diálogos. Em suas construções imagéticas, enquanto o ambiente doméstico dos europeus sempre é visto através de cortinas ou emoldurado pelas paredes, nunca adentrando de fato nesses espaços, e os próprios colonizadores sempre são mostrados através de planos detalhe de mãos a costurarem ou empunharem armas ou de planos gerais onde estão de costas, a floresta possui momentos de grandeza assim como os Ayeoreo, sempre mostrados em longos closes onde seus rostos e expressões permanecem impávidos, resistindo às invasões em suas moradas. Com essas escolhas, Paz parece nos mostrar de forma definitiva quem de fato devemos ouvir, preservar e respeitar, antes que seja tarde demais.
Nesse mesmo ano, em outro importante festival, mais um filme latino-americano que se passa no campo é premiado. Vencedor do Urso de Prata em Berlim, Manto de Gemas retrata a violência endêmica e o crime organizado através do ponto de vista de três mulheres de distintas classes sociais no interior do México. Primeiro longa-metragem dirigido por Natália López Gallardo, que havia anteriormente editado obras de nomes fundamentais do cinema latino-americano como Lisandro Alonso e Carlos Reygadas, seu constante colaborador e companheiro, o filme estabelece um mosaico difuso a partir de uma empregada de origem indígena, uma policial e uma dona de casa de elite, ambas brancas, todas elas tendo casos de pessoas desaparecidas em suas vidas. Centrando-se mais em aspectos físicos e materiais do que no cotidiano metafísico existencialista dos filmes de Reygadas, a realizadora busca observar como as pulsões de violência no interior migram do ambiente doméstico para o próprio território e vice-versa, buscando uma narrativa que subverte os determinismos universalizantes existentes nas representações dos interiores.
Declaradamente, assim como os trabalhos de Paz Encina, uma obra pensada enquanto uma peça de slow cinema, Manto de Gemas acaba caindo em alguns vícios estruturais comuns a essa tendência cinematográfica que é simultaneamente tão apaixonante e obsessiva para alguns (aquele que vos escreve é fissurado por esses filmes) quanto é entediante e intragável para outros. Em alguns momentos possui um desenvolvimento um tanto quanto previsível, e o final é bastante padronizado ao seguir à risca a fórmula elaborada por Paul Schrader ao estudar esses filmes: choque, catarse e transcendência. Vale falar também que a atriz/ator encarando a câmera em um plano próximo como um elemento catártico vem se tornando um vício cada vez mais incorrigível do cinema contemporâneo.
Entretanto, devido ao excepcional talento da diretora para composições milimétricas e a uma direção profundamente funcional, toda a estética de contraposição entre interno e externo funciona muito bem de modo a mostrar como, naquele ambiente, as mulheres não estão seguras nem mesmo dentro de seus lares. A primeira cena é magistral quando, a partir de plano e contra-plano, vemos um jardineiro cortar árvores enquanto, através de uma janela, a mulher burguesa que o inspeciona é tomada pelo marido, que devido à falta de reação da esposa, destrói um móvel, apenas para depois ser acompanhado por sua companheira nesse episódio de fúria.
A alienada docilidade dela diante de seu marido e de seus filhos pode facilmente ser comparada com a cumplicidade forçada da empregada para com o crime organizado e seus sequestros, ainda que ela mesma tenha uma irmã que foi vítima de tais práticas. Além disso, quando se fortalecem em busca de proteção, como é o caso da policial, acabam, em sua própria morada, abrindo brechas para que adentre o perigo, como é o caso de seu filho, cooptado devido à virulência da mãe para o mesmo crime organizado que, graças às circunstâncias causais daquele ambiente, negocia com as forças de segurança em troca de uma farsante não agressão.
Se Paz Encina ressignifica os enquadramentos enquanto formas de empoderar a terra nativa e os povos originários em detrimento de seus invasores, Natália López Gallardo faz um uso profundamente mais niilista de alguns artifícios formais. A ótima ciência de quando imobilizar e quando mover a câmera, alinhada à distorção nas bordas das lentes grande-angulares, cria espaços desérticos que refletem a psique de seus habitantes. As margens das imagens, sempre distorcidas, reforçam as causalidades de violência existentes nesse interior tão deterministicamente violento e que empurra as pessoas para o epicentro de um furacão onde o pacto de silêncio mantém-se até mesmo quando queimam vivos seus moradores.
Mais corajoso ainda é a maneira como se estabelece o uso do foco. Complementando a relação entre o que está dentro e fora do quadro, a forma como López Gallardo opta por destacar ou ocultar algo nos leva a questionar reducionismos históricos existentes quando pensamos no idealizado interior. Como forma de exemplo, as maneiras como a mulher branca da elite, vítima definitiva de ataques de invasores nas narrativas interioranas clássicas, na única oportunidade de mostrar fragilidade após todos os abusos põe-se a chorar completamente fora de foco, e em contraponto, a empregada de origem indígena, sempre desumanizada pelas histórias do campo, tem seu choro destacado em plano próximo, nos mostram como a forma de contar certas histórias é fundamental para que possamos, finalmente, compreender quem são os verdadeiros heróis e resistentes quando pensamos no interior, sem que jamais deslegitimemos as dores do outro, por mais distantes deles que estivermos.