Dando início a uma série de textos nos quais buscarei elaborar diálogos entre melodrama, atuação, política e dramaturgia entre obras de distintos períodos e contextos geográficos da história do cinema, trago aquele que é meu filme favorito de um dos diretores ao qual mais justamente pode-se chamar de moderno. Ainda que haja discordâncias se Out 1: Não me Toque é uma minissérie (a divisão em capítulos está aí para embasar os defensores dessa tese) ou um longa-metragem de mais de doze horas e seu “corte cinemático”, Out 1: Espectro, seja praticamente impossível de exibir em qualquer sala de cinema até nos dias atuais devido às suas quase quatro horas e meia de duração, a obra magna de Jacques Rivette é a epítome do cinema moderno e algo irreproduzível em qualquer outro período da história.

Um dos principais colaboradores da Cahiers du Cinema e considerado o mais enigmático e labiríntico realizador da Nouvelle Vague, Rivette já havia realizado três obras primas antes do ocaso de um dos mais impactantes movimentos cinematográficos da história. Em seu inacreditável primeiro longa-metragem Paris nos pertence, de 1961, reúne tudo o que havia de melhor naquele movimento cinematográfico, com um teor de subversão e sugestão poucas vezes visto. Já em A Religiosa, de 1966, adaptação de uma obra de Denis Diderot, além da melhor atuação de Anna Karina em um filme realizado por alguém que não Jean-Luc Godard, há um equilíbrio inacreditável entre sátira religiosa e absurdismo imagético à Nouvelle Vague Tcheca e um melodrama profundamente honesto e sensível que remete aos melhores trabalhos de William Wyler e Luchino Visconti. Essa obra já demonstrava como, ao longo de sua filmografia, Rivette se consolidaria como o diretor dos inconciliáveis e do inacreditável.

Com o avanço desse contexto histórico, François Truffaut fazia filmes mais comerciais e financeiramente bem-sucedidos, e Godard, junto da gigantesca Anne Wiazemsky, mergulhava de cabeça na militância política, alinhando-se a pensadores incontornáveis como Gilles Deleuze e aprofundando-se no maoísmo que criticava o imperialismo estadunidense e o social-imperialismo soviético, em especial nos arredores Maio de 68 e seu projeto político fantasma que não veio a concretizar-se. Assim, a despeito da aliança de ambos para a suspensão do festival de Cannes em 1968, que já mostrava traços de suas incontornáveis divergências, inevitavelmente cresciam os embates frontais e antagônicos entre eles, e a Nouvelle Vague ruía irreversivelmente.

Nesse contexto, em 1969, Rivette lança L’Amour Fou, uma apoteose de mais de quatro horas de duração onde ele aprofunda-se minuciosamente na questão da atuação. Observando e centralizando algo que viria a ser inerente ao seu cinema a posteriori, utiliza as mimeses e antagonismos entre a encenação e o texto teatral e a Sétima Arte como força motriz para analisar o amor e os relacionamentos, em especial quando inseridos em um processo criativo. Marca também o início de sua colaboração com Bulle Ogier, uma atriz tão extraordinária e cuja colaboração com Jacques foi tão marcante que inaugurou uma nova era na atuação cinematográfica, classificada por Gille Deleuze como sendo “atores-videntes”.

Assim, enquanto na França, com o fim iminente da Nouvelle Vague e a frustração pós Maio de 68, discutia-se se o futuro do cinema político seria vanguardista à Godard ou etnográfico e observacional como Jean Rouch, alguém analisava todo esse contexto e suas nuances. Em meio às frustrações e acontecimentos desse recorte histórico, que segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari, foi o momento no qual toda uma sociedade viu o que havia de mais intolerável em sua ordem organizacional sistêmica e lutou por uma nova possibilidade de respirar, Rivette faz uma obra que não só é consequência dessa época, mas é também o pináculo de um dos momentos mais instigantes da história recente e das fronteiras nebulosas entre modernidade e pós-modernidade. Surge, então, Out 1: Não me Toque.

Centrando-se em uma trama espiralar cujo cerne são dois grupos de teatro distintos que ensaiam duas peças de Ésquilo, bem como dois vagantes pelas ruas de Paris, uma que utiliza-se da palavra falada para obter dinheiro e o outro que faz uso justamente da ausência dela para importunar pessoas a darem-lhe dinheiro com sua gaita estridente, surge uma Hidra de sabe-se lá quantas cabeças, identidades e manipulações que vai se construindo na mesma intensidade em que desmonta o que havia sido estabelecido previamente. Raríssimas vezes antes alguém foi capaz de criar algo tão espetacular e rigorosamente cênico através de um uso quase espiritual da improvisação e da liberdade formal como Rivette e seus atores-videntes Bulle Ogier, Juliet Berto, Michèle Moretti, Michael Lonsdale, entre outros.

Tal natureza aflora também um fortíssimo estudo dialético entre realidade e fantasia, sugestão e realidade, o que está dentro e fora do quadro, em especial através dos planos nos quais a câmera na mão gera uma fluidez quase fantasmagórica em arcos e travellings ao redor dos personagens e através de seus espaços. Desde o sigilo das conspirações de sociedades secretas, que nada mais são do que grupos de teatro a ensaiar tragédias gregas e exercitarem suas cordas vocais, até o cotidiano nas lojas de rua parisienses, tão simples quanto o destino futuro de toda a humanidade, Rivette simultaneamente cria e destrói uma obra ímpar na história do cinema, inevitável fruto do declínio de um movimento magnífico e de uma época de profunda ebulição intelectual tal qual a Nouvelle Vague e os Movimentos de 68.

Chega a ser inacreditável como cada ator cria um personagem que é sempre muito mais do que aparenta ser, e sempre acaba sendo, na realidade, nada mais do que algo profundamente simples e que enganava o espectador a todo instante. Nesse sentido, os títulos de cada “episódio” sintetizam perfeitamente tal sensação. Além disso, creio ser impossível algum dia alguém criar um personagem melhor do que o Colin de Jean-Pierre Léaud, o maior ator da história do cinema ao lado de Grande Otelo. Inicialmente mudo e vagante pelas ruas com sua gaita, escrevendo em um quadro negro a organização da sociedade secreta dos Treze, Colin é simultaneamente tão simples quanto sua gaita e tão complexo quanto seu exemplar de Balzac, e o trabalho criativo profundamente afetado e caricato de seu ator é um sopro de modernidade perante as incontáveis atuações inexpressivas do cinema contemporâneo. Colin é a história do cinema personificada, tal qual seu ator. Mais do que somente um filme sem narrativa central ou uma sociedade secreta sem conspiração, Out 1: Não me Toque é um universo contido em um grão de areia (ou seria o contrário?) cujo resultado final não é apenas fruto de seu tempo, mas da genialidade de seus atores e de seu diretor. Mais do que um exercício sócio-histórico, é uma observação sobre as impossibilidades da atuação, e mesmo com todas as restrições impostas à encenação, ainda assim é aquilo que mais nos aproxima do impossível, e consequentemente do belo. Além disso, uma obra tão minimalista como a Torre Eiffel e tão simples como as nuances de Maio de 68 não poderia terminar de forma mais poética do que Prometeu sucumbindo à luz do Sol e implodindo todo esse universo.