Apesar de muitas pessoas desprezarem a capacidade de mobilização popular do cinema, é inegável seu potencial de transformação e reflexão. Seja por englobar todas as outras artes em sua linguagem ou por, como afirmou Gilles Deleuze, concretizar uma linha e forma de pensamento tal qual a filosofia, a Sétima Arte apresenta uma incômoda e livre capacidade de expressão, em especial através da união entre representação, observação e imaginação. Assim, muitos realizadores utilizaram-se dessa extraordinária ferramenta como forma de fazer política. Compreendendo esta como sendo a discussão da vida em sociedade, qualquer artista inevitavelmente exerce um manifesto político pelo simples fato de existir, e o fazer artístico é inseparável das condições sociais e estruturais que o cercam e baseiam. Assim, como é o cinema político em uma sociedade tão diluída como a do século XXI?

Para pensar tal questionamento, é fundamental, a priori, questionar em que ponto está a discussão política onde cada vez menos há sociedade. Se em 1920 os filmes eram a Meca do formalismo e da estética de vanguarda em direto embate com a repressão, indo de Aleksandr Dovjenko a G. W. Pabst, um século depois, o que sobrou? Deleuze, um dos maiores pensadores da transição da modernidade, elabora sobre as mudanças presenciadas na ordem psicossocial da política. Dizia que disciplina se tornou controle, e as forças de repressão que anteriormente forçavam os indivíduos a calarem-se agora os força a se expressarem. “O problema na contemporaneidade não é mais fazer com que as pessoas se expressem, mas sim provê-las com pequenas lacunas de solidão e silêncio para que finalmente possam encontrar algo a dizer”. Dessa forma, como se explica uma das filmografias mais radicais e bem-sucedidas da atualidade atuar na explícita denúncia a um regime de exceção que cada vez mais se extrema e violenta seus opositores?

Nascido em Tel Aviv, capital de Israel, Nadav Lapid é, hoje, o cineasta que mais experimenta com a linguagem cinematográfica e empurra suas fronteiras em um contexto relativamente inclusivo e acessível. Autor de quatro longas-metragens, viu suas obras serem premiadas com significativos prêmios em Locarno, Cannes e Berlim, alguns dos principais festivais de cinema do mundo, e seu nome consolidar-se como um dos grandes diretores do planeta, apesar de ainda relativamente restrito ao nicho dos festivais. Constantemente questionado sobre sua relação dúbia com sua terra natal, Lapid cria uma filmografia fruto inevitável de uma territorialização calcada na violência.

Herdeiro de Eisenstein e Godard, Lapid é fruto de uma dicotomia entre um Estado que molda indivíduos a partir da lógica belicista e uma criação por parte de pais artistas. Tal dialética é observada em todos os seus filmes, e Policial, sua estreia em longa-metragem de 2011, é uma obra-prima e um exercício formal impressionante. Utilizando os planos e enquadramentos como uma forma de recortar e limitar as aspirações e fugas de seus personagens, desde o fugere urbem inalcançável até uma nova maneira de organização social, Nadav estabelece tendências que seriam comuns a seu cinema. Constrói-o de uma forma extremamente árida e taciturna, nos apresentando dois lados que inevitavelmente vão colidir a qualquer momento. Enquanto um se constrói através da incerteza do futuro, a certeza desse é justamente a motivação para o outro.

Além disso, a resolução dos conflitos é também uma escolha politizada e consequência da forma como Nadav escolhe desenvolver uma história sobre uma psique nacional violenta sem espetacularizar a violência, e muito menos manter-se neutro perante as opressões. O tiroteio no escuro, solução derradeira da obra, é uma escolha formal absolutamente brilhante e que nos leva a questionar quem de fato são os vilões e terroristas daquela história. Pode-se questionar o close-up frontal e final enquanto o ator encara a câmera com um insuportável vício do cinema contemporâneo, mas a maneira como é utilizado aqui, em contraposição com o contraplano, é uma sintetização de toda a organização social de um país inserido em uma lógica global de rotular e encaixotar terroristas em uma política de extermínio, sempre desterritorializando-se para além de suas fronteiras em perene expansão.

 Além disso, a forma como a estrutura fílmica e o rigor formal do plano absorvem perfeitamente tanto os momentos mais cômicos e satíricos quanto os mais melodramáticos é também uma forma de fixar os personagens em seus territórios. A decupagem, centrada em um uso inspiradíssimo da fluidez dos planos apesar de, em sua maioria, estarem fixos, reforça e contrapõe uma repetição de conteúdo ancorada na estrutura formal. Há também algumas cenas milimetricamente equidistantes cujo conteúdo e estrutura formal viriam a se tornar fundamentais na filmografia de Lapid. O plano morto na cena do churrasco que é inundado e atravancado por corpos em divertidos e doentios embates e a cena da boate, onde a dança flui através de corpos reprimidos, são os dois lados de uma mesma sociedade.

Nesse sentido, como uma obra de duas partes gêmeas e que se completam e contrapõem em um choque quase dialético, o filme de estreia de Nadav Lapid remete a Síndromes e um Século, uma das obras-primas, lançada em 2006, de Apichatpong Weerasethakul, o melhor diretor do cinema contemporâneo, ainda que sejam propostas fílmicas completamente diferentes. Curioso também pensar que, dez anos depois, dividiram o Grande Prêmio do Júri em Cannes em 2021, por O Joelho de Ahed e Memoria, os dois melhores filmes desse ano e consequência inevitável da construção da filmografia de seus realizadores. Assim, apesar de escolher escrever sobre sua primeira e menos experimental obra, Nadav Lapid é um cineasta cujo olhar poderia ser discorrido ao longo de incontáveis páginas mais. Desde A Professora do Jardim de Infância, centrado no estranhamento brechtiano através da imersão em um mundo que esmaga suas mentes artísticas até Sinônimos, vencedor do festival de Berlim em 2019, grande exemplo de abordagem da linguagem como mãe das opressões e detentor de sequências finais espetaculares através da atuação magistral e estreante de Tom Mercier, a obra de Lapid investiga a ascensão autoritária e terrorista de um país através de microcosmos gradualmente mais radicais e experimentais. Enquanto artista, parece nos falar, em especial através do dostoievskiano O Joelho de Ahed, que conforme a política se radicaliza e oprime cada vez mais rumo a um inabitável extremo, que a arte seja o espaço para pensar corajosamente e experimentar, contrapondo-se à e repudiando a conformidade, antes que seja tarde demais.