Para além dos 90 minutos: reflexos entre futebol e cinema

11 maio 2023 às 16h26

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Em uma semana na qual torcedores de todo o mundo rendem-se à grande atuação de Vinícius Júnior, comparável a um filme de Nelson Pereira dos Santos, e o Brasil segue com preocupação a operação por parte do Ministério Público de Goiás, que pode levar ao maior escândalo esportivo da história do país, observamos como um mesmo cosmo pode ter polos e situações tão discrepantes. Tal qual os distintos estilos táticos de Pep Guardiola e Carlo Ancelotti, dois treinadores cujo talento leva a sonhadas utopias nas quais comandam a Seleção Brasileira, mas que no momento digladiam-se nas semifinais do torneio de clubes mais importante do futebol europeu, tal esporte apresenta características cuja peculiaridade seria tranquilamente enquadrada em uma tela de cinema, em especial quando, abandonando o presente, olhamos para passado (e também para o futuro) e pensamos naquilo que poderia ter sido, em um exercício de irrealizável ficção.
Tristes horas passam quando pensamos no que seria diferente se Tite não houvesse substituído o mais decisivo jogador brasileiro em atividade no começo do segundo tempo de uma partida de quartas de final de Copa do Mundo. O que pensaria o Rei Pelé, cujo talento parou guerras e arrastou multidões vestindo a camisa do Santos, se estivesse vivo para ver um atleta que, usando esse mesmo emblema histórico, destruiu sua carreira em troca de um sujo e manipulado dinheiro cujos rastros são parte de uma bomba atômica que cai sobre o futebol pentacampeão do mundo? Creio também que, mesmo em meio à alegria lancinante de um título mundial, os argentinos imaginam qual seria a reação de Don Diego Armando Maradona diante da atuação divina de Ángel Di María, Emiliano “Dibu” Martínez e Lionel Messi, que coloriu o mundo de azul e branco no dia 18 de dezembro de 2022. O que pensaria ele também se estivesse vivo ao ver seu Napoli conquistar a Itália novamente após um jejum de mais de três décadas?
Ainda que tais pensamentos não passem de meras abstrações, há elementos de arte no futebol que nos levam a sonhar com um futuro mais alegre, em especial em um país onde esse tempo posterior parece perdido sabe-se lá onde. Com todo o clubismo daquele que vos escreve, o Fluminense de Fernando Diniz apresenta um quê de graça experimental e caos inerentemente brasileiro que remete às obras de Rogério Sganzerla. Em contrapartida, tal qual um filme de Alejandro Jodorowsky, o escândalo entre apostadores e jogadores nos relembra o quão absurdo e surreal é dedicar, semanalmente, 90 minutos de uma vida para torcer e enfurecer-se perante milionários indivíduos que, com uma irrefreável ganância, cospem na sanidade dos torcedores em troca de um “dinheiro de pinga” cuja quantidade jamais será vista em toda a vida daqueles que, do berço ao caixão, empunham esses emblemas diuturnamente desonrados por tais mercenários.
Em alguns momentos, a solução parece ser simplesmente largar tudo aos céus e aguardar alguma espécie de providência divina. O hilário, porém, é que a Mão de Deus, no futebol, refere-se a um escândalo de arbitragem em uma Copa do Mundo por parte do demasiadamente humano ícone argentino previamente citado nesse texto. O futebol, assim, é profundamente cruel na grande maioria de seus momentos, e apesar das similaridades, é antagonicamente diferente do cinema na medida em que essa forma de arte permite com que as abstrações se tornem concretas obras. Assim, através da Sétima Arte, um erro histórico de arbitragem, profundamente celebrado devido às circunstâncias históricas e políticas da época, pode muito bem tornar-se um coming of age belíssimo e profundamente pessoal feito por alguém que buscou olhar para o passado e para toda a iconografia que envolve tal personagem.
Lançado em 2021, A Mão de Deus é mais uma obra da filmografia do cineasta que, hoje, para o bem e para o mal, é o autor italiano que mais remete à grandiloquência satírica de Federico Fellini. Dono de um estilo por muitos visto como pretensioso e exploratório, Paolo Sorrentino é autor de obras fascinantemente dicotômicas na medida em que expõe dramas profundamente pessoais através de uma louvável grandiloquência formal. Além disso, em seus mesquinhamente intrigantes dilemas, dirigiu desde Harvey Keitel, Michael Caine, Paul Dano, Rachel Weiss e Jane Fonda no espetacular Juventude até Toni Servillo em basicamente todos os seus filmes, inclusive no ganhador do Oscar A Grande Beleza.
Nascido em Nápoles, Sorrentino é profundamente aluno de Fellini no sentido em que compreende que toda produção artística é, inerentemente, autobiográfica. Mais ainda na forma como permite-se mergulhar em memórias através de um latente embate entre a idealização da memória e a solidez da realidade, unindo-se na linguagem cinematográfica. Nesse sentido, a produção original da Netflix acompanha períodos da vida de um jovem napolitano ao longo dos anos 1980, que vão desde à magia de Maradona nos campos de futebol da cidade até significativas tragédias familiares que moldam profundamente as noções de amor e destino. Desde uma magistral direção de elenco, o realizador fortalece marcas já notórias de seu cinema, como a incessante movimentação dos planos e a maneira como a montagem choca a inquietude imagética com a estase na qual os personagens se encontram.
Além disso, os diálogos enfadonhamente reveladores enfatizam um embate entre composições que sacralizam seus espaços e profanam os desejos daqueles que os ocupam. É alarmante também como, diferentemente dos filmes repletos de atores completamente inexpressivos que inflam festivais mundo afora, uma obra assumida e orgulhosamente maximalista é o mais próximo de um sopro de vida real que o cinema atingiu nos últimos anos, muito pelo fato de que Sorrentino não se esquece de que seus personagens e intérpretes são, antes de tudo, seres humanos, com todas as contradições e falhas que apresentam. Assim como a jornada de seu protagonista, desenvolvida de forma profundamente bela e sutil através de absurdas situações que poderiam tranquilamente terem saído de um filme adolescente hollywoodiano, A Mão de Deus nos lembra que, assim como no futebol, o espetáculo é, muitas vezes, a melhor forma para simultaneamente admirarmos e escaparmos da realidade sem, necessariamente, nos alienarmos diante dela.