A mitologia do real: a lista da Sight & Sound e o cotidiano no cinema de Chantal Akerman

09 fevereiro 2023 às 15h06

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Comumente, listas que compilam os maiores de um determinado recorte falham em fazê-lo e dizem muito mais sobre a natureza dos responsáveis por escolher os listados do que qualquer outra coisa. Isso ocorre também quanto ao cinema, e apesar de ser constituída por votos de críticos e cineastas de todo o mundo, a da revista britânica Sight & Sound, feita em intervalos de décadas e atualizada em dezembro de 2022, não é muito diferente. Notam-se características pouco surpreendentes em um ranking dominado por obras de Estados Unidos e Europa Ocidental, como a falta de representação africana para além do senso comum e a ausência completa de filmes latino-americanos, ignorando gravemente a história da própria arte cinematográfica.
É impossível negligenciar, contudo, o impacto de sua primeira colocação. Oriundo de Bruxelas, na Bélgica, o filme Jeanne Dielman, da cineasta Chantal Akerman, é fundamental quanto àquilo que viria a se tornar o cinema contemporâneo. Apesar de constituir a pedra angular da modernidade na Sétima Arte e ser a obra que alçou sua realizadora a uma condição de admiração na cinefilia à época, reduzir seu legado a somente ele, ainda que seja seu trabalho mais conhecido, é como reduzir Warhol a sua representação de Marylin Monroe.
Ainda que jamais tenha conseguido obter, em vida, o mesmo reconhecimento após a realização dessa obra, sendo também ridicularizada por boa parte da anestesiada crítica cinematográfica ocidental, há cada vez mais jovens cineastas citando-a como uma de suas principais referências, em tom de respeito quase religioso. Charlotte Wells, estreando em 2022 com o belo Aftersun, referencia obras da belga em planos de seu filme, e Nicolás Pereda, subestimado realizador mexicano e professor em uma das mais respeitadas escolas de cinema do mundo, em Cuba, fez um curta-metragem intitulado Carta para Chantal, homenageando-a em 2021. Logo, o que torna esse filme, e sua realizadora, tão especial?
Jeanne Dielman é daqueles raríssimos exemplos de pleno equilíbrio na arte. É quase impossível fazer uma obra que consiga abordar temas tão arraigadamente politizados, como patriarcado e desigualdade de gênero, sem que se estabeleça um completo distanciamento para com a audiência. Não se deve enganar com o fato de que as escolhas estéticas de Chantal, como os longos planos e a câmera fixa, busquem conscientemente afastar aqueles que contemplam sua obra. Esse afastamento, porém, retira-nos das amarras do consumo alienado de uma obra comercial, convidando-nos, através da ausência de uma hierarquia visual, a participar integralmente do cosmo vivido pela grande Delphine Seyrig em um apartamento de classe média em uma capital europeia, onde um assassinato central para o enredo dura um segundo em um filme de 220 minutos.
Tais características são observadas ao longo de toda a filmografia de Chantal. O convite à participação através da dilatação temporal parece implorar-nos para acolher os personagens solitários em suas obras, vítimas das nuances tão marcantes à própria autora que os realiza e das consequências dos acúmulos de seus atos e sentimentos. Fellini dizia que toda arte é autobiográfica, e as feridas abertas nos filmes da belga são, além de gritos quanto às contradições sociais observadas por ela, claras demonstrações de que, se o mundo isola pessoas como Chantal Akerman, o problema é do mundo.
Além disso, seu olhar fez-se presente em inúmeros gêneros cinematográficos e lugares do globo. Demonstrou o racismo e a xenofobia escancarados dos Estados Unidos nos documentários Sul e Do Outro Lado. Sempre ostentou orgulhosamente sua herança judaica e o fato de ser lésbica em diversas obras. Adaptou monstros da literatura como Marcel Proust e Joseph Conrad. Dirigiu um dos maiores documentários etnográficos de todos os tempos em Do Leste. Fez um dos grandes romances da história em Retrato de uma jovem no final dos anos 60 em Bruxelas, um dos mais extraordinários frenesis de emoções que o cinema pode proporcionar em qualquer uma de suas obras, em especial uma tão curta. Além disso, há News From Home, também presente na lista da Sight & Sound, um dos maiores filmes-ensaio de todos os tempos, e muitos riquíssimos outros.
Há de se ressaltar, assim como a taciturnidade e quietude no desenrolar dos filmes de Chantal, a potência de suas conclusões. Além de não enganarem o espectador com um ilusório rompimento apesar das mudanças, encontram sua magia na forma como sintetizam todo o seu cinema, mantendo a unidade de forma extremamente poderosa. Assim, assistir a seus personagens descascando batatas, recusando em lágrimas uma ligação telefônica e, em uma balsa, distanciando-se da contraditória Estátua da Liberdade, é como imaginar o que se passa na cabeça do mais brilhante dos escritores ao escrever a mais bela das poesias. É observar o cinema amadurecendo diante de nossos próprios olhos, ou a vida como ela de fato é metamorfoseando-se em poema. E ninguém melhor para estar no topo do que sua representante magna.