No ano de 2015, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) definiu, em votação organizada com membros e profissionais da área, os cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos, coroando Limite, dirigido por Mário Peixoto, com a primeira colocação. Apresentado pela primeira vez em 1931 no Teatro Capitólio, na Cinelândia, a enigmática obra gerou uma ampla polêmica após sua exibição no Rio de Janeiro, e ao não obter distribuição comercial, manteve-se perdida até os anos 1970, quando foi recuperada. Apesar de já haver produções sendo realizadas e exibidas no país anteriormente à década de 1930, não é exagero afirmar que se trata do marco inicial do cinema brasileiro.

Tal qual Jean Vigo e Hu Bo, Peixoto é daqueles nomes que marcam a história do cinema tendo dirigido apenas um longa-metragem. Restaurado em 2007 pela World Cinema Foundation, organização criada por Martin Scorsese para a restauração de obras cinematográficas, Limite é, ao lado de Pixote, de Hector Babenco, o único filme brasileiro a constar no catálogo da Criterion, a mais importante coleção fílmica voltada para a preservação e proteção da Sétima Arte. Do que se trata, então, essa obra tão misteriosa e por muito perdida devido a incompreensão por parte de sua audiência?

Partindo de uma situação em comum a quatro personagens sem nome, Mário estabelece uma obra centrada em indivíduos marginalizados que transitam, cambaleantes, pelos limites da condição humana. Realizado à época de um dos infindáveis golpes de Estado à brasileira e no ocaso do Modernismo, o filme localiza-se em uma prisão privada, uma sala de cinema, algumas vielas ermas, um cemitério e uma propriedade rural através dos quais vemos as garras da inevitabilidade do tempo guiando os passos de dois homens e duas mulheres apenas para isolá-los em alto mar ou sufocá-los às margens de uma praia. Curiosamente, os destinos daqueles personagens desembocam na água, sendo afogados por uma chuva que cai sobre o horizonte, em um plano final magistral e que ressalta a impossibilidade de fuga.

Para além da forma como se desenvolve, sem uma trama central, com pouquíssimos quadros de textos em um filme mudo e com latente experimentalismo, Limite destaca-se por estar na vanguarda do cinema mesmo quase cem anos após seu lançamento. Tal qual os dissolves na magnânima sequência inicial do longa, seus enquadramentos e planos são compostos de modo a escapar do eixo central da tela, além de ora isolar seus personagens em amplos espaços e ora a aprisioná-los em planos próximos extremamente claustrofóbicos, mostrando-nos o teor de onírica perturbação da trama amorosa do filme. As linhas de fuga e os movimentos e posicionamentos de câmera potencializam em muito o isolacionismo, e o que dizer também dos close-ups na sequência do cinema, em uma montagem intelectual associativa que nos mostra como o mal esconde-se nos momentos mais ingênuos em uma metalinguagem pelo menos um século à frente de seu tempo?

Perante tais características e virtudes até hoje inalcançadas, é inestimável o impacto dessa obra no cinema brasileiro, e não é exagero algum dizer que, noventa e dois anos depois, Limite ainda está à frente do tempo, elemento tão central e inerente à Sétima Arte em si. Ainda assim, sob circunstâncias similares, sendo também realizado pouco após um golpe de Estado e ao longo do declínio de Cinema Novo e Cinema Marginal, dois dos movimentos artísticos mais fantásticos de todos os tempos, Júlio Bressane volta seus olhos para aquela obra até então recém-recuperada e estabelece um filme de referências e centrado na mesma situação e na mesma lógica estética. Assim, em 1976, surge A Agonia.

Diferentemente dos quatro indivíduos de Limite, Bressane move sua mirada para um casal em fuga, parecido com Bonnie e Clyde ou Marianne e Pierrot (ou seria Ferdinand?), atemorizado pelo passado criminoso do homem e clarividente da mulher. Ao longo de uma estrutura capitular, atravessam paisagens e miragens em um road movie experimental às avessas que sempre deixa claro que se trata de um experimento quanto à busca por uma representação primitiva. Desde o espelho e o caçador da Branca de Neve até o bote e as algemas de Limite, Júlio insere tais referências em seu universo profundamente peculiar centrado em um niilismo à brasileira: fruto de seu contexto e ainda desesperançoso, mas profundamente jocoso e capaz de rir de sua própria tragédia.

Dirigindo um elenco espetacular que engloba Joel Pinheiro, Grande Otelo, Wilson Grey, Maria Gladys e Sandra Pêra, Bressane busca uma transgressão da origem do cinema brasileiro através da forma como, emulando Peixoto, compõe quadros que separam muito bem primeiro-plano, personagens e paisagem, ressaltando o isolacionismo de todo um país. Essas referências acabam dinamitando-se, e a partir da dinâmica do próprio casal e de suas naturezas individuais, mostram como a superação, muitas vezes, pode nada mais ser do que um retorno a um ponto inicial do qual não há escapatória. Tal como em todo o seu cinema, através da vanguarda, está em busca de uma encenação tão simples como os primeiros gestos iluminados pelas fogueiras em cavernas quando nem mesmo a fala nos era comum. Através desse retorno, Bressane estabelece um dos mais geniais planos derradeiros já feitos, ainda que sua obra não possua final.

Assim, é seguro dizer que, como marco inicial, Limite, ainda que por muito perdido,construiu uma mitologia no cinema brasileiro e inspirou inconscientemente toda uma geração de artistas, em especial o maior cineasta vivo e um dos maiores da história. Ao referenciar tal obra a partir de um método profundamente pessoal, Júlio Bressane parece nos reafirmar que, para estabelecer uma ponte para o futuro, é impossível fazê-lo sem recuperar sua estrutura mais primária. Tal qual M, de Fritz Lang (também referenciado em A Agonia por Bressane) não é o primeiro filme falado, mas ainda assim representa o marco inicial do som no cinema, o único filme de Mário Peixoto é a obra a ser eternamente revisitada em busca de um cinema brasileiro e único. Curiosamente, seu destino parece espelhar a jornada de nossa filmografia em uma maneira quase paranormal. Experimental e vanguardista desde o berço, estava, apesar de sua genialidade, destinada à incompreensão e ao esquecimento graças ao descaso de seus próprios produtores, até o momento em que alguém viesse a resgatá-lo e criar uma outra possibilidade criativa.

“Aqui se INTER-ROMPE.

Esse filme não tem fim

só início e meio”

A Agonia, 1976, dirigido por Júlio Bressane