Pensar em humanidade é, sobretudo, pensar em dicotomias. Sejam sociais, linguísticas ou econômicas, as bases que sustentam tudo o que conhecemos existem graças ao fato de que somos, enquanto humanos, seres polarizados. Aguardamos pela chegada da noite enquanto nos revigoramos sob os últimos raios de Sol. Queimamo-nos com o toque do gelo e nos refrescamos com um gélido líquido que rasga nossa garganta. Choramos de amor e rimos de ódio. Ansiamos desesperadamente por desbravar o desconhecido quando a beleza do excessivamente conhecido não nos causa nada além de desespero. Organizamo-nos socialmente entre oprimidos e opressores, ainda que essa esteja muito longe de ser uma escolha voluntária. E, acima de tudo, ansiamos por jamais precisarmos escutar a insuportável voz interior que nos sussurra no ouvido todos os dias, através de todas as polaridades.

Enquanto seres sociais e evolutivos, a mais significativa dicotomia para o nosso desenvolvimento aparenta ser, simultaneamente, o desenvolvimento da linguagem e a ocupação dos espaços vazios. Criação e êxodo. De nada adianta vivermos próximos se somos incapazes de linguisticamente nos compreendermos, e de nada adianta entender as dores do próximo se, além do horizonte, existem possibilidades em demasia para que não as desbravemos e convivamos com novas dores de outros próximos. Conforme a evolução tecnológica da humanidade tornou e torna cada vez mais ínfimas as distâncias, mais lotados os antes vazios espaços e mais refinada e universal a linguagem, mais perde-se a noção da importância que a voz interior possui em nossa vivência.

Conforme o primário torna-se sofisticado e o refinado retorna ao primário, há cada vez menos espaço para a solidão em seu sentido literal. Ainda que se busque repousar por meros dois dias, sejam eles úteis ou inúteis, a âncora de nosso novo e admirável mundo nos notifica sobre o quão necessária se faz nossa presença, nosso convívio e, sobretudo, nossa voz. Em uma era onde a vox populi é banalizada, o quão privilegiado é alguém que pode se dar ao luxo de manter-se em silêncio? Como permanecer impassível quando todas as seduções nos sussurram aos ouvidos, pedindo e clamando por nossa voz? O pensador Gilles Deleuze nos disse que, nas sociedades contemporâneas, os instrumentos de controle e opressão, ao invés de reprimir nossa voz e silenciar-nos, nos levam à expressão ininterrupta e incessante, retirando de nossa existência até mesmo a mera possibilidade de não termos nada a dizer.

Capitalismo torna-se inefável e supera até mesmo o fim do mundo, através de sua própria concretização, pois torna a voz exterior infinita enquanto, simultaneamente, sepulta a voz interior. E existe símbolo maior desse modo de organização socioeconômica e síntese dos fenômenos de criação e êxodo do que a selva de concreto onde sonhos são realizados? Enquanto um elemento espacial e multicultural, poucas cidades no mundo foram tão pensadas sob o escopo cinematográfico como Nova York. Seja por autores como Sofia Coppola, John Cassavetes, Spike Lee ou Abel Ferrara, o centro cultural do império americano é, além de tudo, a Roma de nosso tempo: para onde todos os caminhos levam e de onde as maiores barbáries saem. Por que, então, em meio a esse oceano de corpos e vozes, estamos cada vez mais sós?

Pensando a Sétima Arte enquanto expressão da voz interior e síntese das dicotomias humanas, nunca houve, na humilde opinião desse que vos escreve, alguém mais talentoso a fazer cinema do que a belga Chantal Akerman. Aquela que mais belamente transformou nostalgia em melancolia, e vice-versa. Cineasta cujos filmes melhor expressam o que é ser humano em um mundo excessivamente globalizado e contraditório, estabeleceu News From Home, de 1976, a partir de um período em que morou em Nova York após a boa recepção de suas obras por parte de críticas e festivais europeus. Misto entre documentário e filme-ensaio, utiliza como mote central cartas de sua mãe e planos longos e estáticos da Babilônia de nosso tempo enquanto imagem e som unem-se para ressaltar a relação entre palavra e distância.

Através dos planos estáticos, longos e dilatados, Chantal ressalta a natureza enclausurada daquele ponto de vista, em especial devido à possibilidade de comunicação, ainda que haja um oceano entre nós. Mesmo assim, vivendo na Pólis definitiva e sempre tendo notícias de casa, sentimos os planos e a câmera cada vez mais distantes e sós. Mas não é isso algo raro em uma sociedade tão eloquente?  Mas não seria justamente uma dicotomia demasiadamente humana transformar o raro em corriqueiro? O quão complexo e difícil para uma mãe é comunicar-se com uma filha tão distante somente através de cartas, sentindo a ausência todos os dias, mas entendendo que tal situação se deve à busca por um sonho ou, em menor escala, um objetivo? Somos seres contraditórios, ainda que nos convençamos diariamente do contrário.

Além de tudo, pensar nessa lógica é pensar no plano final da obra, que equivale à profundidade de uma série de estudos acadêmicos. Observarmos a Metrópoles afastando-se e boiando em meio às águas é, sobretudo, pensar em todos os símbolos sociais que nos cercam e, consequentemente, na vida que vivemos. Em todas as pessoas que cruzamos pelo caminho. Nas emoções que sentimos. No afeto que temos por aqueles que habitam e enriquecem nossos arredores. E, acima de tudo, pensar que, muitas vezes, distanciar-se nada mais é do que um muito bem-vindo até logo.

News From Home é, acima de tudo, uma celebração da vida humana. Vida essa que envolve distâncias, falhas de comunicação e, sobretudo, amor e voz interior. Ainda que haja um oceano a separar-nos, ainda que existam mil e uma pedras no caminho, ainda que falte coragem para externar aquilo que verdadeiramente é sentido. Mas não é a voz interior aquela que verdadeiramente nos representa? Não é nos breves intervalos de silêncio que verdadeiramente nos sentimos vivos? Vivemos porque amamos e, especialmente, por termos uma casa para eternamente retornar. Ainda que Chantal, em seu primeiro trabalho cinematográfico, tenha explodido sua casa, enquanto viva e em atividade, sempre pôde voltar para seu lar, uma vez que a morada são as pessoas que encontramos pelo caminho, e não as paredes que insistem em nos enclausurar.