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Entre o jogo e a vida, a goleada poética do atacante Miguel Jorge

Com uma visão do amor, dos sonhos, das utopias, dos sentimentos, da solidariedade, enfim, de valores tão refratários nesse terceiro milênio, Miguel Jorge não se intimida nem se aniquila diante da “ambiguidade das facas”, numa atmosfera em que nos sentimos como num campo de disputas

De abismos e fascínios

“Poemas Apócrifos de Paul Valéry Traduzidos por Márcio-André” encontra, a partir de textos heterogêneos em termos estéticos e de proposta de escrita, tonalização perfeita para causar maravilhamento

Eça de Queiroz: a biografia definitiva

Ao lado de informações pouco conhecidas sobre a vida de Eça de Queiroz, o livro de Campos Matos traz vasta e preciosa iconografia, além de reflexões críticas que permitem uma visão aprofundada do percurso ideológico do escritor, da repercussão da sua obra e da sua figura pública entre os contemporâneos

Pacto com a memória

“As Fantasias Eletivas”, de Carlos Henrique Schroeder, faz uma ode à literatura, ao mostrar o encontro de dois solitários que buscam reinventar o mundo através do olhar sobre a ficção

Autópsia do meio acadêmico

Partindo da investigação da morte de uma professora, Bernardo Kucinski expõe, no romance “Alice”, as entranhas de uma universidade corrompida por intrigas, invejas e fraudes

Ronnie Von vira santo em biografia autorizada

Alguém com interesse em Ronnie Von ou na música que ele fez, vai ter de esperar um próximo livro

Getúlio Vargas: do crepúsculo à entrada para a história

Na última parte da trilogia, o jornalista Lira Neto, amparado numa minuciosa pesquisa, reconstitui os últimos anos da vida de Getúlio Vargas procurando elucidar um dos períodos mais importantes da história política brasileira

Elites paulistas no século 18

“O Governo dos Povos” reúne trabalhos apresentados e discutidos por estudiosos de universidades brasileiras e portuguesas com múltiplas visões sobre o passado colonial brasileiro

Calcildis! Livro da vidis de Mussum vale pela vidis de Renato Aragonis

Em “Mussum Forévis: Samba, Mé e Trapalhões”, Mussum é retratado como um ingênuo. Seu alcoolismo é diminuído a uma questão semântica (“mé”). Seus casos extraconjugais, um pequeno detalhe que em nada parece alterar sua vida. Não é que o livro seja ruim, é um livro de fã

A diáspora que está em nós

“Jó, Romance de um Homem Simples” agradará a leitor comum e a leitor exigente, pois Joseph Roth tem a magia de um povo milenar cujas narrativas já seduziram todo gênero de público. O romance se insere entre as grandes narrativas do princípio do século 20

Melville e Moby Dick

Se o livro é belo, seu significado é terrível. No cosmos de Herman Melville, os homens são quase sempre ilhas e embarcações para si mesmos

A belle époque na coleção de cardápios de Bilac

A pesquisadora Lúcia Garcia escolheu a coleção de cardápios do poeta Olavo Bilac como seu objeto de estudo em busca de reflexos da vida cotidiana que se espraiava pelos lugares frequentados pela elite carioca às vésperas do fim do Segundo Reinado e nos anos iniciais da República

Adelto Gonçalves Especial para o Jornal Opção

Atribui-se a Lucien Fe­bvre (1878-1956), fundador da Escola dos An­na­les, a ideia segundo a qual a História poderia ser contada a partir da escolha de novos objetos de estudos, o que constituiu uma revolução na historiografia, tal foi o número de trabalhos que se seguiram a partir da década de 1950 com recortes específicos. Deixou-se de lado a concepção tradicional que marcaram os livros de História até então, baseados nos feitos dos grandes nomes — reis, presidentes, primeiros-ministros, governadores. Hoje, um livro que siga esse modelo é visto como quinquilharia de museu, a tal ponto que um autor chegou a ser acusado pejorativamente na universidade de candidato a membro de algum instituto histórico.

É claro que a História vista em mí­nimos detalhes é sempre mais interessante do que aquela que se baseia nos feitos dos “grandes”. O problema é encontrar nos arquivos resquícios do que pensaram ou disseram aqueles que eram iletrados e, portanto, não deixaram registros de suas vivências, queixas, emoções ou anseios. Quer se queira ou não, a His­tória sempre será escrita a partir da visão dos letrados, daqueles que dei­xaram registro do que viram e viveram, refletindo obrigatoriamente a visão de mundo da classe dominante.

[caption id="attachment_9644" align="alignleft" width="304"]Para uma História da Belle Époque: A Coleção de Cardápios de Olavo Bilac Para uma História da Belle Époque: A Coleção de Cardápios de Olavo Bilac[/caption]

Mas a que vêm estas reflexões? Vêm a propósito do livro “Para uma História da Belle Époque: A Coleção de Cardápios de Olavo Bilac”, de Lúcia Garcia, com prefácio do poeta e ensaísta Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras e ex-embaixador do Brasil em Portugal, Nigéria, Benim, Colômbia e Paraguai.

A partir da ideia de Febvre, Lúcia Garcia escolheu a coleção de cardápios do poeta Olavo Bilac (1865-1918), que faz parte do acervo da Academia Brasileira de Letras, como seu objeto de estudo em busca de reflexos da vida cotidiana que se espraiava pelos lugares frequentados pela elite carioca às vésperas do fim do Segundo Reinado e nos anos iniciais da República. Aliás, como observa Lúcia Garcia, Bilac, certamente, colecionava menus dos almoços, jantares e banquetes festivos de que participava no Brasil e no mundo.

É de assinalar que, como explica a autora, a palavra cardápio é um neologismo criado pelo filólogo Antônio de Castro Lopes (1827-1901) na década de 1890 para substituir a palavra francesa menu que, a rigor, significa miúdo e não tem em português equivalente, pelo menos no sentido de almoço, jantar ou ceia.

Diz a pesquisadora ainda que Bilac “preservava os cardápios para revisitar os momentos vividos, em benefício da memória, como antídoto ao esquecimento”. Entre os cardápios reproduzidos estão alguns de banquetes em homenagem ao próprio poeta, homem célebre ao seu tempo, e outros que celebravam o IV Centenário do Descobrimento do Brasil, a visita ao Rio de Janeiro da famosa atriz italiana Tina Di Lorenzo (1872-1930) e acontecimentos diversos.

Nos menus, acrescenta a pesquisadora, estão presentes as confeitarias Pascoal e Colombo, entre outros estabelecimentos comerciais conhecidos e frequentados pela classe dominante no Rio de Janeiro no início do século 20. Como diz Lúcia Garcia, a extensa coleção doada à ABL por Bilac, ou por seus familiares, revela a rede de sociabilidade do escritor, quer pela indicação do anfitrião, quer pela assinatura dos comensais. A essa época, é de ressaltar que havia uma “febre” entre as pessoas bem-postas na vida de colecionar autógrafos e cartões postais.

[caption id="attachment_9645" align="alignright" width="242"]Cultural_1885.qxd Olavo Bilac preservava os cardápios para revisitar os momentos vividos, em benefício da memória, como antídoto ao esquecimento[/caption]

Como diz Alberto da Costa e Silva no prefácio, esta coleção revela como novos padrões se iam popularizando no País e, como pela lista de pratos, afrancesavam-se cada vez mais as elites. A partir daí, Costa e Silva imagina o que se conversava à época os vizinhos de mesa, já que ecos dessas tertúlias não ficaram, a não ser esparsamente em crônicas, como as que Machado de Assis (1839-1908) e mesmo Bilac assinavam nos grandes jornais.

Diz: “É provável que, num almoço, se discutisse a abertura da Avenida Central pelo prefeito Pereira Passos ou a campanha sanitária de Oswaldo Cruz”. E acrescenta mais adiante: “Pois ainda havia quem não tivesse saído do assombro ou se acostumado, de alma rendida, à aspirina, à lâmpada elétrica, ao telégrafo, ao cabo submarino, do rádio, ao telefone, ao navio a vapor com hélice e casco de ferro, ao motor de combustão interna, ao automóvel com pneu de câmara de ar, às máquinas voadoras, aos raios-X, ao cinematógrafo e à partilha da África e de parte da Ásia entre as potências europeias”.

Da coleção constam ainda fotografias de um almoço — do qual não restou o cardápio — na década de 1910 na fazenda em Lou­vei­ra, no interior do Estado de São Paulo, de Júlio Mesquita (1862-1927), fundador e proprietário do jornal “O Estado de S. Paulo”, do qual Bilac também era colaborador. De notar, como assinala a pesquisadora, é que Bilac nas fotografias sempre fazia questão de aparecer de perfil. É essa também uma rara foto em que aparece alguém das classes menos favorecidas, o cozinheiro da fazenda de Mesquita, sentado meio a contragosto e sem jeito no primeiro degrau de uma escada à frente dos demais.

Lúcia Garcia (1979) é doutora e mestre em História Po­lítica pela Universidade do Es­tado do Rio de Janeiro. Partici­pou de vários projetos de pesquisa histórica documental e iconográfica nos últimos anos, tendo colaborado como consultora na “Comissão para as comemorações do bicentenário da chegada de D. João ao Rio de Janeiro” (Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro). É autora de “Euclides Da Cu­nha: Escritor por Aci­dente e Repórter do Ser­tão” (São Pau­­lo, Companhia das Letras), “A Transferência da Família Real para o Brasil 1808 2008”, com outros autores (Lisboa: Tribuna da His­tória), “Rio e Lisboa: Construções de um Império” (Lisboa: Câmara Muni­cipal) e “Documentos Oito­centistas da Biblioteca Nacional”, coautoria de Lilia Schwarcz (Rio de Janeiro, Bi­bli­o­teca Nacional). É coautora de “Im­presso no Brasil: Desta­ques da His­tória Gráfica”, organizado por Rafael Car­doso (Rio de Janeiro: Verso Brasil).

Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literatura Espanhola e Hispanoamericana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo.

O desafio de um país que cresce pouco

Em “Complacência” os economistas Fábio Giambiagi e Alexandre Schwartsman navegam por temas complexos da economia brasileira procurando desmitificar e responder por que o país, mesmo com a grande oferta de empregos, vem crescendo tão pouco

Philip Roth e a seiva do fanatismo

Em “Indignação”, o escritor norte-americano Philip Roth mostra como nossas escolhas mais insignificantes podem ter consequências devastadoras

[caption id="attachment_4940" align="alignright" width="620"]Philip Roth, escritor americano, cria um universo ficcional para tratar de dois assuntos polêmicos: a Guerra da Coreia e a tensão sexual entre jovens e adultos | Foto: Richard Drew/AP Philip Roth, escritor americano, cria um universo ficcional para tratar de dois assuntos polêmicos: a Guerra da Coreia e a tensão sexual entre jovens e adultos | Foto: Richard Drew/AP[/caption]

J.C. Guimarães Especial para o Jornal Opção

Matemático e fundador do X-Center, em Viena, John Casti es­tuda eventos extremos. Em livro traduzido no Brasil, “O Co­lapso de Tudo, o cientista enumera sete princípios da complexidade, entre eles o chamado Efeito Borboleta: “A ideia básica é que os sistemas complexos são patologicamente sensíveis a mudanças minúsculas em seu estado inicial”. Tais mudanças, apesar de insignificantes, evoluem exponencialmente e produzem consequências devastadoras, na extremidade. Um exemplo aleatório, inacreditável e verdadeiro, segundo Casti: George W. Bush se reelegeu presidente dos Estados Unidos, em 2004, porque uma funcionária do processo eleitoral americano, Theresa Le Port, aumentou o tamanho da tipografia na cédula eleitoral.

Imagino que esta seja uma maneira nada convencional de começar a estudar um romance; no caso, “Indignação”, do americano Philip Roth, traduzido por Jório Dauster. A antropologia demonstrou que as relações sociais, com seus códigos, ritos e valores, constituem verdadeiros sistemas, e as últimas palavras do protagonista Marcus Messner justificam a analogia em questão, ao referir-se à “forma terrível e incompreensível pela qual nossas escolhas mais banais, fortuitas e até cômicas conduzem a resultados tão desproporcionais”. O resultado a que se refere é a própria morte numa guerra, e as escolhas banais um conjunto de pequenos atos, o primeiro dos quais a fuga de casa para escapar da perseguição paterna, estimulada por premonições. Mais tarde, a masturbação fortuita com que a única namorada satisfez a ereção súbita do herói, dentro de um hospital, gesto decisivo para aquele trágico desfecho. “Por um rápido toque de mão de Olívia, minha recompensa seria a Coreia”, diz, já morto, rememorando os fatos de sua vida. Que nexo previamente oculto pode haver entre tudo isto e aquilo?

Desvendar o que está por trás de tais absurdos — similares aos absurdos da vida real — foi a tarefa que se propôs Philip Roth com “Indignação”, história organizada em quatro núcleos dramáticos: a família, constituída de pai e mãe; a universidade, representada pelo diretor de alunos Howes D. Caudwell e pelo presidente Albin Lentz; as confrarias da instituição, sobressaindo os colegas Sonny Cottler, o endiabrado Bertram Flusser e Elvyn Ayers Jr.; por último o amor, Olívia Hutton. A guerra é a sombra que paira do primeiro ao último parágrafo; sombra que é o simulacro da morte, empestando de sangue a vida de Messner desde a adolescência até o campo de batalha. Grande ironia, o eviscerador de galinhas terminará fatiado por uma baioneta aos 19 anos de idade, cumprindo as premonições do pai.

Marcus Messner é filho de açougueiros judeus, único rebento de um pai atemorizado pela ideia de perdê-lo em função de algum descuido, “a menor coisinha”. O contexto histórico justifica sua paranoia: o drama se passa entre 1951 e 1952, nos Estados Unidos, durante a guerra contra os comunistas no extremo oriente, e o passado da família em conflitos dessa natureza é negativo. Compreen­sível, o temor paterno vira obsessão, e é com o objetivo de livrar-se desse tormento doméstico que o rapaz entra para a universidade: “Estava ansioso para me tornar adulto e independente, exatamente aquilo que vinha causando terror em meu pai”.

Messner estuda o primeiro ano na Robert Treat, localizada em Newark, onde mora, e assim seria até se formar, caso o pai não começasse a persegui-lo. Isso o leva a transferir-se para a provinciana Winesburg, na área rural de Ohio, primeiro daqueles passos fatais. A nova universidade é provinciana, tradicionalista e profundamente influenciada pelo moralismo puritano dos seus dirigentes, em contraste com as convicções liberais do novo aluno. O rapaz se depara com os valores predominantes da direção e também das confrarias de estudantes, que tentam cooptá-lo: “Quase toda a vida social dos cerca de mil e duzentos alunos da universidade se passava atrás das pesadas portas com ferragens negras das fraternidades”. Apesar do assédio, Mes­s­ner mantém-se equidistante, com um único objetivo em mente: estudar. É tão aplicado nos estudos — que lhe serviriam ainda para es­capar da convocação militar, ou, quando menos, assegurar-lhe uma patente — que logo desentende-se com Bertram Flusser, companheiro de quarto que não lhe dá sossego. Consequentemente, muda-se para outro quarto, onde trava relações com o silencioso Elvym Eyers Jr., cujo único interesse é o próprio carro, um possante modelo La salle, da GM.

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Enquanto isso Messner se envolve com Olívia Hutton, primeira e única experiência erótica de sua curta existência: “Jamais me sentira tão vulnerável ao repartido dos cabelos de qualquer pessoa”. Como ele próprio, Olívia é uma estudante solitária e inteligente, muito acima da média. Certo dia saem juntos no carro de Elvym, quando então a garota lhe faz sexo oral, deixando-o extasiado e entregue à paixão. Logo ele descobrirá que a garota é depressiva e tentara o suicídio, cortando o pulso. Trocam correspondências, e Messner decide revelar o que lhe aconteceu a Elvym, que, insensível, chama Olívia de prostituta. Este aproveita a ocasião e diz que ela houvera praticado o mesmo gesto em Sonny Cottler, de traços principescos e líder de uma das fraternidades locais. Desentendem-se e Messner decide trocar de quarto pela segunda vez: entra em cena o diretor de alunos Howes D. Caudwel, iniciando uma perseguição não menos implacável que a do pai. Discutem abertamente e Caudwel descobre as tendências ateias e materialistas de Messner, que apenas piora sua situação junto ao diretor, tradicionalista empedernido.

Enquanto discutem o rapaz passa mal e, em seguida, é internado num hospital para tratar uma apendicite. Internado, recebe a visita de Olívia, oportunidade em que ela lhe faz carícias sexuais: por infelicidade o casal é surpreendido pela enfermeira no momento exato do clímax. Dá-se, assim, o terceiro passo para cumprir aquele trágico destino (como adivinhar o futuro?). Também sua mãe vem visitá-lo e conhece Olívia. Perspicaz, desaprova veementemente tal relacionamento; ela tem sobre a família do velho Messner — de quem pretende ser separar — as mesmas reservas do filho racional, agora tentado pelos sentimentos, dando-lhe o conselho memorável: “Não seja como eles. Você tem que ser maior que seus sentimentos. Não sou eu que exige isso de você; é a vida que exige. Se não, você vai ser levado de roldão pelos seus sentimentos. Eles vão te levar até o mar e você não será mais visto. Os sentimentos podem ser o maior problema na vida”.

O filho promete, mas não cumpre, ir adiante com a namorada, e quando volta para a universidade não consegue mais reencontrá-la. Os fatos vão se concatenando e Caudwel novamente convida o rapaz para ir ao seu gabinete, com a desculpa de convidá-lo para o time de beisebol da universidade. Lá chegando, o afoito Messner precipita-se e pergunta ao diretor sobre o paradeiro de Olívia, sendo informado que ela fora internada numa clínica psiquiátrica, e mais: está grávida. A suspeita recai sobre ele, uma vez que o diretor ficou sabendo o que houve no hospital, entre o casal.

O último passo em falso de Messner, que poderia ser descoberto por Caudwel, foi ter aceitado o conselho de Sonny Cottler — de quem sempre desconfiara — para subornar um certo Marty Ziegler com o objetivo de prestar o serviço religioso em seu lugar, já que não suporta a obrigatoriedade de assistir à doutrinação religiosa, de acordo com o programa universitário. Na sequência, ocorre um fato capital, de ressonâncias políticas: a rebelião de estudantes conhecido depois como Grande Ataque às Calcinhas Brancas, quando uma simples brincadeira na neve evolui para uma catarse coletiva de fortes conotações sexuais. A repercussão é nacional e escandalosamente inaceitável para a instituição e seus fundamentos retrógrados. Iniciam-se os interrogatórios e uma série de alunos terminam expulsos, entre os quais o infeliz Marcus Messner. Ao ser expulso é convocado pelo exército. Convocado, morre na guerra da qual tentou, desesperadamente, escapar.

As últimas páginas sumariam a carnificina no campo de batalha, e só então tomamos conhecimento de que estávamos ouvindo a narrativa de um cadáver: “Memória em cima de memória — nada mais do que memória.”

“Indignação” é a lembrança de um morto, aliás como a do nosso melancólico Brás Cubas. Curiosa­mente, Roth leu o romance de Machado de Assis e depois esqueceu o nome do autor brasileiro, conforme declarou em entrevista concedida à revista “Época”.

“Você sabe que li um único autor brasileiro? É a imagem que tenho do Brasil. Não me recordo do nome dele, mas é um romance irônico, de narrativa descontínua, sobre um homem morto que conta suas paixões e confusões em primeira pessoa. Adorei.”

Esquecer Machado de Assis é, de nossa pers­pectiva, um tanto inacreditável, principalmente por sensibilidades extraordinárias quanto a do escritor americano. Ele tampouco es­cla­rece quando é que o leu (seu romance foi pu­blicado em 2008), em todo o caso a analogia é evidente, sem que se possa falar com se­gu­rança em influência direta ou indireta. Roth nasceu em 1933 e tornou-se um dos mais premiados autores dos Estados Unidos, tendo amealhado o Pulitzer, por “Pastoral Ame­ri­ca­na”, e o Príncipe das Astúrias, por sua contri­bui­ção à literatura. Malcolm Bradbury (“O Ro­mance Americano Moderno”) o situa no grupo dos “judaico-norte-americanos”, do qual fazem parte Saul Bellow, Norman Mailer e Bernard Malamud. O humanismo era o ob­je­tivo comum desta vertente, além do desejo de “ligar a história do indivíduo com o processo mais amplo da sociedade, porém tais indivíduos tinham de ser vistos também como alienados, vitimizados, deslocados, materialmente satisfeitos mas espiritualmente danificados, conformistas mas sem lei, racionais mas anárquicos”.

Podemos enxergar algumas dessas características em Marcus Messner, seguramente vitimizado, deslocado e racional a ponto de não tolerar a influência religiosa na instituição laica, na qual pretende se ver livre do pai. “Indignação” trata de dois assuntos polêmicos, bastante conhecidos da geração de meados do século 20, nos Estados Unidos: a Guerra da Coreia e o moralismo sexual prevalecente nas regiões mais provincianas do país. O auge desse conflito de valores culturais entre gerações explodiria anos mais tarde, durante a luta pelos direitos civis no contexto político da Grande Sociedade, de Lyndon Johnson. Para tratar daqueles assuntos, com a propriedade de uma testemunha, é que Roth cria o universo inteiramente novo e surpreendente de “Indignação”. É impossível prever a sorte desse livro na extensa e representativa produção de Roth, em todo caso ele tem a força das obras capitais.

Do autor eu li também “O Animal Agonizante”, romance mais intimista e, a meu ver, menos fascinante, que narra a aventura amorosa de um velho com uma garota sensualíssima. Permite estabelecer uma tendência do autor, observada por Bradbury, ao registrar a ligação da história individual com “o processo mais amplo da sociedade”. De fato, ele gosta de colocar seus personagens em choque contra os valores institucionalizados. Outra vez deparamos com o tema da liberdade sexual, e outra vez nos vemos dentro de uma narrativa parcialmente histórica, colidindo duas ideologias por intermédio da ação individual. O individualismo de Messner é eloquente, e ignoro se por isso Roth — autor de pelo menos 30 obras literárias — pode ser definido como escritor emersoniano. Mas “Indigna­ção” possui elementos que reafirmam aquele ethos individualista, proclamado pelo sábio de Concord. Baseio essa opinião no conflito do personagem contra a moral prevalecente e num importante ensaio transcendentalista, “Autoconfiança”, em minha opinião o mais memorável dos escritos que conheço de Ralph Waldo Emerson.

No longo e tenso diálogo ocorrido no primeiro encontro com o diretor Caudwell — quando o conselho da mãe cede ao impulso e ele manda o diretor “se foder!” (“Os sentimentos podem ser o maior problema na vida”, dizia ela) —, nesse encontro Messner evoca Bertrand Russel para fundamentar sua recusa em aceitar as regras impostas pela instituição, dizendo que pretende viver em conformidade com o ideário contido no ensaio “Por que Não Sou um Cristão”, do filósofo inglês. As altercações do diretor se voltam todas para a preferência religiosa, o relacionamento social e o convívio familiar de Messner, permitindo acompanhar como a moral puritana se infiltra na intimidade dos estudantes, pretendendo dominá-los completamente. Trata-se do diálogo mais absurdo do mundo, no qual o diretor de alunos faz perguntas invasivas que poderiam ser feitas a si mesmo, diante do espelho, para cair em contradição. É um capítulo de alto humorismo, de onde aliás se extrai o título “Indignation”, inspirado no hino nacional chinês, que Messner recordará ao entrar na sala do intragável diretor de alunos:

“Erguei-vos, vós que recusais a serdes escravos! Com nossa própria carne e sangue Constituiremos uma nova Grande Muralha! O povo chinês encontrou o seu dia de perigo. A indignação enche o coração de todos os nossos compatriotas, Erguei-vos! Erguei-vos! Erguei-vos!”

Caudwell não admite as “dificuldades de socialização” e “isolamento” de seu aluno, seguro o bastante para afirmar a própria independência: “Não tenho interesse pela vida nas fraternidades”. Então, apesar da declarada influência de Russel, a idiossincrasia de Messner reverbera a do próprio Emerson, quando este proclama que “quem deseja ser um homem tem de ser um dissidente”. Mais do que uma invenção emersoniana, estaríamos na verdade diante de uma característica cultural que parece transcender gerações de americanos. Messner é a perfeita encarnação do dissidente: não liga para “fraternidades” — latu sensu, partidos, clubes, grupos, associações, igrejas — e só se interessa pelo conhecimento: “meu único interesse são os estudos”, declara provocativamente o jovem que “não tem medo de ficar sozinho”. É algo instintivo, inato, e não pelo qual tenha sido educado. As palavras abaixo poderiam seguramente fazer parte do credo de Marcus Messner: “Por toda parte a sociedade está em conspiração contra a virilidade de cada um de seus membros. A sociedade é uma companhia por ações, na qual os sócios concordam, para melhor assegurar o pão de cada acionista, em renunciar à liberdade e à cultura de quem dela desfruta. A virtude de maior demanda é a conformidade. A autoconfiança é causa de aversão. À sociedade não aprazem realidades e criadores, mas nomes e costumes”.

Emerson era gnóstico e Messner, apesar do sangue judeu, ateu convicto. Mesmo assim foi capaz de sugerir irresistivelmente a manifestação do mal em dois colegas: Sony Cotller, magistralmente descrito como figura luciferiana (“o anjo da morte”), e Merty Ziegler, bem próximo de Judas ao aceitar o suborno de Messner para substituí-lo nos serviços religiosos da Winesburg, ao custo de um dólar e cinquenta centavos: “Esse Zigler era um erro, eu tinha certeza — o erro final”.

A causa primeira e insignificante daquele destino desproporcional foi o medo paterno incorporado pelo herói, destinado por associação a representar o terror de gerações sucessivas de jovens norte-americanos. O pai é um sujeito simples e trabalhador, tendo ensinado a Messner um ofício sangrento. Mas a relação de amor entre os dois termina em ódio, em função da paranoia que toma conta do velho açougueiro kosher. Transforma-se assim no símbolo de uma autoridade renegada que Messner, todavia, volta a reencontrar encarnado no velho e poderoso Caudwell, em Winesburg. A guerra particular de Messner é contra a autoridade e tudo o que ela significa de repressão aos instintos vitais do homem. As únicas referências positivas na vida do estudante são as duas figuras femininas do romance: a mãe — “era tudo, menos frágil e submissa” — e a namorada, Olívia, com quem perde a virgindade, por ele tratada como verdadeira heroína.

Roth integra uma possível tradição romanesca que inclui Gabriel García Márquez, Machado de Assis e Gustave Flaubert: a tradição que exalta a mulher como figura de fibra superior e mais heroica do que o homem, descrito como materialista, frágil e mesquinho.

Estou de acordo com isso. Porém, tenho opiniões sobre Olívia que talvez não sejam facilmente partilhadas pelos demais leitores de Roth, sobretudo mulheres. A mais importante: ela simboliza, em primeira ordem, o desejo masculino insatisfeito no mundo real, onde é recriminado. Qual desejo? Ser compreendido por elas em sua ânsia insaciável por sexo (que parece ser um dos temas prediletos de Roth). Ela declara a Messner, após a primeira experiência com ele: “Eu-queria-te-dar-o-que-você-queria. Será que é muito difícil entender essas palavras?” A pergunta sobre a dificuldade de entender é principalmente dirigida ao leitor (ou melhor, leitora), e acho difícil imaginá-la como especulação de mulher. Nesse sentido, Olívia tampouco seria criação de uma romancista: só poderia ser concebida por quem entende a angústia masculina — um homem; nesse caso o escritor Phillip Roth, criador de sensualistas tão incorrigíveis quanto David Lurie, de J.M. Coetzee (“Desonra”) e Antônio Fernandes, de Sérgio Sant’Anna (“O Livro de Praga”).

Mas a sondagem da psicologia feminina não fica a dever: o que as excita, ao menos de um ponto de vista masculino, é o poder — o carrão de Elvyn Ayers Jr., dentro do qual Messner e Olívia iniciam sua aventura amorosa — e, pelo menos em 1950, os limites, proibições e tabus que impediam as moças de reestabelecer os vínculos familiares perdidos. Ou seja, nada a ver com as tentações da carne, como acontece com os homens: o que as motiva em primeira ordem, nos relacionamentos, é a segurança e a estabilidade pessoal e da prole. Porém Olívia é exuberante demais e comporta outra interpretação fundamental, ao lado de seu amante: a de vítima do modelo educacional e da moral repressiva capitaneados por Caudwell, que atinge a medula da sociedade, isto é, a família. Afinal: “Seu pai é um cirurgião de Cleveland e ilustre ex-aluno da Winesburg, por isso a recebemos a pedido do doutor Hutton. Não deu certo nem para o doutor Hutton nem para a universidade, e muito menos para Olívia”.

Trata-se de uma confissão inconsciente de Cau­dwell quanto ao fracasso do modelo educacional implantado. No mesmo capítulo, o que dirá Messner? Que “eu próprio havia sido tragado pela insipidez não apenas dos costumes de Winesburg, mas da retidão que tiranizava minha vida, a retidão sufocante que, eu estava pronto a concluir, levara Olívia à loucura”.

O destino da namorada, como será o seu e de vários jovens, é produto desta retidão in­con­sequente. Outro efeito colateral, e desta vez coletivo, dessa educação repressiva, é im­placavelmente diagnosticado: a catarse desenfreada dos estudantes que culmina no Grande Ataque às Calcinhas Brancas, no epílogo: “Vez por outra, uma voz masculina profunda, articulando o pensamento de todos aqueles que não eram mais capazes de obedecer ao sistema prevalecente de disciplina moral, urrava abertamente: Queremos as garotas!”. A conformidade perturbadora dos estudantes termina explodindo de maneira irracional, culminando naquelas consequências desproporcionais, aludidas desde o começo. Messner, devido ao ato libidinoso, ao desacato da autoridade e à fraude, é expulso de roldão, junto com os colegas insubordinados. Sua racionalidade não prevaleceu sobre os impulsos, dando inteira razão às advertências da mãe.

O panorama final de “Indignação” reflete a nulidade das associações humanas, sem chegar ao extremismo niilista, com a combinação explosiva das religiões institucionalizadas. Para Roth, cuja única crença possível parece ser no individualismo, não é daí que emergem os indivíduos moralmente sãos. O prêmio de Messner, por se rebelar contra as regras da religião e seguir a própria consciência, foi a morte prematura: outra vez o fanatismo religioso derramara o sangue dos inocentes.

J.C. Guimarães é ensaísta e historiador.

via Revista Bula

Alexandre Nobre é um estreante com a segurança dos veteranos

A prosa de Alexandre Nobre é permeada por uma linguagem sutil, sem adereços, sem contorcionismos, porém essa singeleza e cristalinidade narrativas não negligenciam a densidade dos temas que suas histórias albergam