Melville e Moby Dick
02 agosto 2014 às 10h43
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Se o livro é belo, seu significado é terrível. No cosmos de Herman Melville, os homens são quase sempre ilhas e embarcações para si mesmos
Carlos Russo Jr.
Especial para o Jornal Opção
Melville é um homem dos mares, um poeta das águas, e por assim ser, retém a estranha e misteriosa magia das criaturas marítimas, aquela das sereias, dos polvos e das lulas gigantescas que, ao mesmo tempo que nos atraem, causam certa repulsa: elas não nos são apreensíveis.
Os poetas das águas costumam perder a capacidade de encontrarem-se a si mesmos; além disso, pouco possuem da habilidade de se misturarem aos outros humanos. Isso os leva a dar as costas à vida e a mergulharem no abstrato, nos seus próprios elementos.
Talvez poucos poetas antes de Melville detestaram tão instintivamente a vida humana, ou melhor, a sociedade como a vivemos. Restava a Melville a necessidade de lutar contra o mundo inteiro real, e, assim o fazendo, lutar também contra parcela do mais íntimo de seu ser. Mas esse é somente o verso da moeda chamada Melville, pois ao mesmo tempo ninguém esteve mais apaixonadamente repleto do sentido de vastidão e do mistério da vida não humana que ele.
No mar, busca sua fuga! Fugir, deixar a nossa vida para trás, cruzar um horizonte que o levasse a uma outra vida, ao seu elementar. Quando Herman entra no mar à bordo de um barco, então encontra o seu ambiente natural, sua verdadeira casa. Na bagagem, muitas memórias, recordações daquele que atravessou o “Rubicon” da própria vida: ele não aceita mais a humanidade e ao não aceitá-la, deixa de sentir-se parte dela. Que lhe importa que a vida se fragmente, que até os acasalamentos e as procriações cessem? Que o tritão se afaste da fêmea, que o homem abandone sua fêmea e seus filhos e que as mulheres-sereias só se lambuzem com as águas? Com os lares desfeitos, corroídos, restam-lhe tão somente os elementos do imenso e interminável mar.
Basta de terra! Venham todos os elementos que nada têm a ver com as complicações criadas pela humanidade, como todo o imenso, o velhíssimo oceano Pacífico, que se abre com todas as suas “porias” para os argonautas do século 19.
Melville já nasceu odiando o mundo; no mar, navega em busca de um Paraíso. Mas é um sonho paradisíaco que jamais alcançaria, pois as ondas sempre o conduziriam a um tremendo Purgatório. Por isso mesmo, em sua vida real, Herman Melville sempre buscou ter uma união perfeita, fruto de uma compreensão, que se reproduzisse num amigo perfeito. Ele jamais conseguiu admitir que qualquer relacionamento perfeito seja possível entre humanos. Cada alma é só. A solidão de cada qual põe uma barreira para o relacionamento pessoal; um bom relacionamento é aquele em que cada parceiro admite que haja várias regiões desconhecidas e que assim devem permanecer na alma do outro.
Não importa, porque Herman pertence ao conjunto das criaturas que nasceram para viver no Purgatório, aquelas almas que precisam encontrar algo ou alguém para triturar. Almas de profundo olfato, que cheiram a injustiça e a insensatez tanto nos “bons homens dos cultos religiosos”, quanto nos brutais capitães dos navios, nos almirantes dos países, ou nos condutores de homens e de arpões. E uma vez seu nariz tendo apurado o tom de enxofre da desmedida, aí o poeta das águas se sente à vontade. Em Melville, a partir de um determinado momento na vida das pessoas, o ideal que as guiara apodrece, transforma-se em algo impuro, em perversão. Até mesmo a caridade que delas emane já é perniciosa, enrustida de segundas e terceiras intenções. São maus tanto os violentos quanto os mansos; até mesmo um “homem santo”, como o príncipe Mishkin, de Dostoiévski, porque ele tem reações mesquinhas e sutis. “O satã de Milton (O Paraíso Perdido) é moralmente muito superior ao seu Deus, assim como aquele que persevera a despeito da adversidade e da sorte é um ser superior àquele que, na fria segurança de um triunfo certo, exerce a mais horrível vingança sobre seus os inimigos.”
Em seus melhores momentos, Melville escrevia em uma espécie de transe; os acontecimentos que ele narra como sendo “fatos reais” têm, na verdade, um vínculo profundo com sua alma, são reflexos de sua vida interna. Sem que ele se dê conta, o inconsciente melvilliano é místico e simbólico. Jamais retorna sobre seus passos, arrepender-se é um verbo fora de seu dicionário. Mas seu misticismo impedia-o de se abandonar ao desespero ou à indiferença. Melville sempre se importa, tanto para odiar aqueles que se creem portadores de “Missões”, quanto para se emocionar com gestos de compaixão humana.
Filosicamente, Herman veste a roupa de um Rousseau: considera a nobreza dos selvagens em primeiro lugar. Usa um chapéu, o de Chateubriand: os selvagens são pobres ovelhas quando comparadas ao homem civilizado. Homem branco e civilizado, o animal mais feio e mais perigoso de toda o planeta.
Melville é absolutamente moderno, surreal e simbolista muito antes do futurismo encontrar a pintura e outras artes plásticas. “Ele pressente os meros deslizamento dos elementos. E a alma humana experimentando isso tudo. Às vezes chega aos limites do delírio; quase espúrio, mas sempre extraordinário”, no dizer de D. H. Lawrence.
Moby Dick
Moby Dick, que somente descobri aos meus 63 anos de idade, é uma epopeia da alma humana e das criaturas da natureza, obra que rivaliza com as épicas “Odisseia” e “Guerra e Paz”. O romance é magnífico e aterrador, assim como o é o ser humano e o são as forças incontroláveis da natureza. Quando o homem, em sua insanidade busca dominá-las, obtém até mesmo algumas primeiras vitórias, mas essas nada mais serão senão o garrote que, ao final da jornada, irá enforcá-lo.
Se o livro é belo, fantástico, seu significado é terrível. Viajaremos com a alma humana num desbravar de ondas reais, talvez como a nossa vida e o mar. No cosmos de Melville, os homens são quase sempre ilhas e embarcações para si mesmos.
O protótipo desta ilha humana é o comandante da baleeira “Peckod”, o quáquer Acab, símbolo da humanidade insana, que contém em seu cerne um pouco de todos nós: ele não conhece seus limites, caminha na “hybris”, para vingar-se de um leviatã. Na busca pelos mares nada conta, tão somente a vingança cega contra a Baleia Branca, imbuído no instinto que dispensa o “logos”. Ao final da busca, o que ele, na realidade encontrará, será um pedaço de cânhamo ao redor do pescoço.
Os personagens
Moby Dick é a baleia branca, a caça. Ela é um enorme e velho cachalote, gasta, muitas vezes arpoada, jamais vencida; não vive em bando, nada só, sendo capaz de grande fúria intempestiva e destruidora, símbolo da natureza cega quando agredida. Entretanto, Melville sabia que as baleias não são terríveis, não mordem, dificilmente atacam, têm sangue quente, são mamíferos.
Numa fantástica cidadezinha portuária na Nova Inglaterra, tão fluida quanto o próprio mar, encontraremos o único ser realmente humano em toda a narrativa: Ishamael, o americano branco, narrador da aventura. Em seguida nos é apresentada a sua alma-irmã, Queequeg, um poderoso canibal, com o corpo todo tatuado, um arpoador das ilhas do sul. Os dois homens dormirão juntos, na mesma e única cama da pobre pousada repleta; suas almas se casam, no estrito sentido dos selvagens, selando uma amizade autêntica, entre seres de culturas muito diferentes, um cristão e outro, pagão. Para Queequeg, o selvagem canibal, toda relação de amizade é uma união duradoura. Já para Ishamael, o branco civilizado, a amizade é sempre de oportunidade, e, quando os dois embarcam no baleeiro Pequod, o americano irá se esquecer totalmente do selvagem: a amizade já é uma página virada.
O Pequod é um veleiro estranho, fantástico, dirigido por um espírito atormentado, ao modo do “Navio Fantasma”, de Wagner. Sentimos que Pequod é real e velejará pelos oceanos, mas, lentamente, sua metafísica nos impregnará, proporcionando-nos uma viagem da alma. Após dias no mar, apresenta-se Acab, o comandante, o capitão da alma, temente a Deus, caçador implacável da inofensiva e velha baleia que um dia, defendendo-se de seu arpão arrancara-lhe uma perna. Ele é tão velho quanto sua caça, um monomaníaco disposto a sacrificar o barco e toda a tripulação, em holocausto a Moby Dick. A baleia precisa morrer para que ele possa continuar a viver, se assim pudermos denominar o seu modo de ser. Acab tem três Imediatos na tripulação: Starbuck, o Primeiro Imediato, também crente, homem bom e responsável, sensato e ousado, calado e confiável; ele é o lado luminoso, apolíneo, justo, ponderado, conduzido pelo vínculo afetivo que o liga tanto aos companheiros de viagem quanto àqueles a quem ama e que deixara em terra. Starbuck não abre mão do respeito pelas forças naturais e nem pelo inimigo abatido, fonte de sua sobrevivência. O Segundo Imediato, Stubb, é o anverso de Starbuck: mau e obscuro, imprudente e divertido, para ele a caça à baleia é um esporte, tal qual a caça a um homem; Stubb é a nossa face que, ao barra-vento, escancara o escárnio por si e por todos. Chegamos ao Terceiro Imediato, Flas, um tipo que é teimoso e obstinado, aliás como todo homem tolo e sem imaginação. Para ele a baleia é “como um rato a ser caçado”.
O Pequod também possui três Arpoadores, todos eles imensos, monumentais, os únicos no mundo capazes de trespassar a baleia branca: Queequeg, o poderoso e todo tatuado canibal; Tashtego, o pele-vermelha americano; e, completando o leque racial, Daggo, o gigante negro.
Somente tempos após surgirão misteriosos, como formatados pela bruma marítima, alguns malaios estranhos, silenciosos, secretos, vestidos de negro, adoradores do fogo. Eles são os homens de confiança de Acab, aqueles que conduzirão o seu próprio bote caça-baleias.
Muitas raças, povos e nações congregadas sob as listras e as estrelas da bandeira americana. Tudo muito prático, mas fantástico e fanático, ao estilo americano; um engenho que soa perfeito na tarefa louca, comandados por um general monomaníco na perseguição cega ao inimigo, focado para matar!
Um ser material, o narrador; dois heróis, Acab e Moby Dick, dos quais somente o primeiro é trágico em sua consciência e desmedida. A redenção do louco comandante ocorrerá pouco antes de sua morte, quando o velho rijo, imbatível e aleijado se permite chorar no desabrochar tardio de sua humanidade. Ele confessa a Starbuck “sua fraqueza mortal, como um corcunda, um Adão cambaleando para além dos séculos cravados desde o Paraíso”.
Ao Cachalote, o outro herói, caberá detonar, como força da natureza indômita, tal qual o satã de Milton, seus perseguidores. É a natureza dizendo um basta à ousadia do homem que perdeu o limite de sua humanidade e se crê um deus. É ela a mais forte, zera todo o jogo e basta.
Melville ainda nos alerta. A caça à baleia, principiada nos tempos mitológicos por Teseu ao salvar Andrômeda, somente se fez disseminar no decorrer dos tempos, na forma de peixe preso, peixe solto. Os poderosos e os padres desejam que todos os peixes que caiam em suas posses sejam peixes presos, até mesmo nossa consciência. Para as potências imperiais, todos os países pobres são peixes soltos, pertencem a quem os destruir primeiro!
Chegará um dia em que as Moby Dicks estarão extintas, mas as forças naturais seguirão indômitas. Existe uma cena insólita que Melville nos descreve, quando o barco, de repente, se vê num espaço do oceano, brando como uma lagoa, repleto de baleias, onde uma calma pura resplandece. As fêmeas nadam em paz, as baleias jovens aproximam-se dos botes da morte como cães curiosos, os mamíferos no cio fazem amor. Os homens exterminam quantas conseguem.
A esse capítulo segue o momento em que o barco se transforma em uma refinaria para o óleo extraído das caças. Para isso foram sacrificadas. Toda a carne servirá aos tubarões e à fome do mar. O narrador está no leme e vira-se para ver a fornalha do refino. Num relance místico, o leme se inverte e o Pequod perde o rumo e Ishamael vive uma experiência onírica: quem se submete ao refino não é o óleo do cachalote, mas sua alma.
Acab e sua tripulação, afinal, encontrar-se-ão com Moby Dick. A luta será esplêndida, de tal dramaticidade que não se conseguiria reproduzi-la fora das linhas do próprio Melville. Durou três dias o combate. No terceiro dia a baleia torna-se terrível, de caça à caçadora, enfurecida volta-se contra o Pequod, símbolo do homem, de nossa civilização predadora e o destrói, colocando-o a pique. Assim termina um livro de profundo simbolismo, da primeira a última página, que nos enche a alma de espanto e termina com um grito de alerta para a nossa civilização, um berro de condenação ao predador americano!
Que extraordinária viagem, quantas sacudidelas à bordo da baleeira Pequod, o navio de caça do qual, afinal, restará apenas um sarcófago em busca de socorro!
Uma viagem tanto para os que sabem ler apenas com os olhos quanto para os que leem com a alma. E ninguém paga mais por isso, o preço é fixo!
Carlos Russo Jr. é escritor e crítico literário.