Resultados do marcador: Crítica

Na sua construção poética há elementos descritivos e narrativos, formando histórias que são contadas de forma fragmentada, como se fosse um quebra-cabeças

O eu poético comunica ao leitor a chamada emoção estética, tratando de transmitir um sentimento vago e pouco confortável que é a aproximação do fim de tudo
Adelto Gonçalves
A precariedade da vida ou a dor da partida — este é o tema de um longo poema de Iacyr Anderson Freitas que se lê em “Ar de Arestas” (Escrituras Editora, Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage-Funalfa, 2013), livro finalista do Prêmio Jabuti e semifinalista do Prêmio Portugal Telecom. Em quadras rimadas, com versos heptassílabos, trata-se de um peça que medita sobre a precariedade iminente do ser, sobrepujado pela manifestação da dor, que lhe é transfigurada “através da exploração sistemática de um sistema de símiles e metáforas”, como observou o crítico, contista, ensaísta e tradutor Paulo Henriques Britto em enriquecedor posfácio que escreveu para este livro.
É também um poema do qual se pode dizer “que se fecha em si mesmo, universo autossuficiente e no qual o fim é também um princípio que volta, se repete e se recria”, repetindo-se aqui uma frase do poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz (1914-1998) que está em “O Arco e a Lira” (1956). Tanto que, ao final do poema, o poeta recorre à imagem do ouroboros ou uróboro, símbolo antigo que representa a cobra comendo sua própria cauda, ou seja, do grego oura ou a cauda, e boros, de comer. [caption id="attachment_353038" align="aligncenter" width="620"]“Desse gênero de dor / – que é quando todas as lentes / voltam-se ao corpo, no ardor / de exterminar as serpentes / que o feriram sem perdão –, / desse gênero, dizendo / melhor, tipo ou modo, então, / não há margem nem adendo: / dele nada se transforma, / nada se cria, apenas / o corpo conhece a norma / de assumir as próprias penas, / de mirar-se num espelho / fraturado, eternamente. Ao centro, um ponto vermelho: o lugar onde a serpente / derramou toda peçonha. / Só tal lugar interessa, / o da dor, da dor medonha, / que ao corpo impõe sua pressa. / Como foi escrito acima: / dessa dor nada se cria. / Mesmo a morte se aproxima, / abatendo mais um dia.”

“Tudo retorna ao início, / a serpente engole a cauda / e, em suma, este exercício / correrá de lauda em lauda / sem ter fim. Antes fechar / a conta: ceifar o clero. / Nada sobrou no alguidar / – lida noves fora zero. / Quando a tortura termina, / eis que o tempo recomeça / a colher em cada esquina / os venenos da promessa. / Tal colheita quer que tudo / tenha na dor vida nova, / que a própria vida – seu ludo – / fique onde a dor se renova.”Iacyr Anderson Freitas (1963), nascido em Patrocínio do Muriaé-MG, é engenheiro civil e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)-MG. Fez sua estreia na poesia em 1982, com a obra “Verso e palavra”. Desde então, publicou mais de vinte obras, tendo afirmado sua voz no cenário do Brasil contemporâneo, já com várias premiações, inclusive no exterior. Está presente em mais de 20 antologias publicadas no Brasil e no exterior, incluindo Argentina, Chile, Colômbia, Estados Unidos, Espanha, França, Itália, Malta e Portugal. Com “Quaradouro” (2007), foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom), e com “Viavária” (2010), primeiro lugar no Prêmio Literário Nacional do PEN Clube do Brasil. Publicou três livros de ensaio literário: “Heidegger e a Origem da Arte” (1993), “Quatro Estudos” (1998) e “As Perdas Luminosas: Uma Análise da Poesia de Ruy Espinheira Filho” (2001). E dois livros de ficção: “O Artista e a Cidade”, álbum comemorativo dos 150 anos de emancipação política de Juiz de Fora (2000), e “Trinca dos Traídos” (2003). Em 2016, publicou “Estação das Clínicas”. Publicou ainda três livros de poemas para o público infanto-juvenil. Para enriquecer ainda mais a obra, este livro traz fotografias do jornalista, poeta e fotógrafo Ozias Filho, que foram obtidas em 6 de fevereiro de 2012, quando as cenas do poema foram traduzidas para a linguagem corporal do Laboratório de Movimento e Performance l'Mmoving, na Universidade de Lisboa, pela coreógrafa Marina Frangioia. E que foram registradas a uma época em que aqueles versos ainda eram inéditos. [caption id="attachment_353041" align="aligncenter" width="225"]


Trata-se de uma história bem urdida e bem-acabada, que apresenta uma novidade em termos narrativos, pois transita entre o real, o surreal e o onírico

“Escobar", romance de estreia do carioca Márwio Câmara, traz escrita inovadora com elementos semiautobiográficos

Elisabeth não suporta mais manter as aparências, ser alguém que não é. Fora de seu complexo silencioso, entraria em contradição com sua essência

Cecília Meireles teve de ir à delegacia, debaixo de humilhações, para prestar esclarecimentos. Mas não foi “presa” pela tradução de um livro de Mark Twain

O escritor francês relata a história de duas mulheres diferentes no romance “Madame Bovary” e no conto “Uma alma simples”

O livro de poesia “Roda-Gigante” é uma obra que se mostra renovadora na linguagem
A par da subjetividade do gosto e da sensibilidade pessoais, há neste poema vários efeitos de estilo próprios da poesia de Cora aliados a uma belíssima narrativa alegórica

É poeta múltiplo pela variedade temática e de fontes impulsionadoras da sua obra poética e também pelas diversas experiências da forma poemática que executou

Premiado autor japonês cria atmosferas fantásticas, de mistério e realidade, absorvendo o leitor

O mais recente trabalho de Charlie Kaufman como diretor é sua consagração artística e um dos mais interessantes filmes da temporada

A narrativa ficcional se entrecruza com a narrativa historiográfica numa simbiose harmônica, que impregna a ficção de grande verossimilhança e invulgar força narrativa
Itaney Campos
Especial para o Jornal Opção
A leitura do romance “Chegou o Governador”, do imortal escritor goiano Bernardo Élis, proporciona uma enriquecedora experiência estética. A narrativa gira em torno da turbulenta relação concubinária havida entre o governador da Capitania de Goiás, Francisco de Assis Mascarenhas, e a jovem goiana Angela Ludovico de Almeida, filha do comerciante Brás Martins de Almeida, nos albores do século 19, num período histórico de muito preconceito social, escravagismo, penúria geral da província e tentativas governamentais de estabelecer a navegação fluvial como forma de romper o isolamento da província.
Da tumultuada relação amorosa advieram dois filhos, o que não impediu, no entanto, a ruptura do vínculo afetivo e a partida do governador Mascarenhas para a capitania do Rio de Janeiro.
[caption id="attachment_98383" align="alignright" width="240"] Neste romance, Bernardo Élis buscou apreender toda a ideologia social do período, para desvendar seus mecanismos de poder e de hegemonia, construindo uma obra esteticamente valiosa e denunciadora do sistema de opressão e injustiça reinante no período[/caption]
Um dos aspectos mais interessantes da narrativa é o entrelaçamento da urdidura ficcional à tessitura histórica, pois que o episódio se passa nos anos iniciais do século 19 quando o conde português, vindo de Coimbra, chegou a Vila Boa, capital da capitania, em 1804, designado pela Coroa lusitana para governar a região. A capitania vivia momento de grandes dificuldades econômicas, decorrentes do exaurimento da mineração, cujo esplendor ocorrera entre os anos de 1730 a 1780. Verificou-se, a partir daí, o esgotamento do ouro de aluvião, com a pauperização geral da população, despovoamento do território, extinção de povoados e arraiais e ociosidade das camadas mais humildes da população, até então empregada nas atividades de exploração aurífera. Alguns historiadores e viajantes designaram a época como um período de decadência geral da capitania, marasmo que se estendeu por algumas décadas da província. A historiografia moderna, sob a análise de Nasr Chaul, Paulo Bertran e Noé Freire Sandes, procura questionar o conceito, negando o qualificativo de decadência porque até então a situação do território fora de economia incipiente, desorganização financeira e flutuação demográfica. Ademais, ressaltaram que o olhar do viajante estrangeiro se permeava de preconceito e condicionado pelo modus vivendi europeu, de sorte que descreveu a sociedade goiana sob tons depreciativos, sublinhando os aspectos do isolamento, preguiça e estagnação, sem atentar para os hábitos e costumes da cultura nativa.
O certo é que, no alvorecer do século 19, as burras do Estado estavam à mingua, muitos funcionários não recebiam os vencimentos e um estado de desânimo geral se espalhava pelo território goiano. Nesse contexto social, desenvolve-se a trama, em que a narrativa ficcional se entrecruza com a narrativa historiográfica numa simbiose harmônica, que impregna a ficção de grande verossimilhança e invulgar força narrativa. Não é um romance histórico, como observou o próprio escritor na orelha do livro, mas sim um entrecho ficcional que se desdobra com muita fluidez e inventividade, com uma tensão permanente que caracteriza a narrativa dramática.
O fio condutor histórico serve de guia e apoio à tessitura ficcional, ilustrando o escritor os vários capítulos com epígrafes retiradas dos relatórios e registros dos viajantes e naturalistas que ingressaram pelos sertões goianos, como o austríaco J. Emmanuel Pohl, o francês Auguste de Saint-Hilaire e o português José Raymundo da Cunha Matos, este governador de armas da província de Goiás, autor da “Corografia Histórica da Província de Goiás”, de 1824.
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Bernardo Élis, conista e romancista e membro da Academia Brasileira de Letras, recria os aspectos arquitetônicos e topográficos da velha capital, a cultura da comunidade vilaboense, seus hábitos e crenças próprios de uma sociedade conservadora | Foto: Reprodução[/caption]
O romancista reporta-se também aos relatos do historiador e poeta cônego Luiz Antonio da Silva e Souza, autor de “Memória sobre o Descobrimento, Governo, População e Cousas mais Notáveis da Capitania de Goiás”. Trata-se de um dos intelectuais e políticos mais influentes do período. E é interessante constatar, no entrecho, o fato de o religioso transitar também como personagem do romance, a privar do convívio do governador Francisco Mascarenhas. As referências não se limitam aos cronistas da época, pois o autor insere também fragmentos da historiografia moderna, citando o maior historiador de Goiás, o padre Luis Palacín, e a professora Dalísia Doles, que escreveram sobre a história da mineração e das iniciativas voltadas à navegabilidade dos rios goianos.
A reconstituição do tecido social, com seus usos e costumes, seus valores e preconceitos, é exercitada com competência e inventividade por parte do romancista, a revelar que se debruçou de forma acurada sobre a história do povo goiano daquele período pós mineração, descrevendo com minúcia os problemas com que se defrontava a população, em grande parte na ociosidade, vivendo de bicos e tarefas avulsas, e a administração pública, à falta de empregos e recursos para investir na execução de obras e melhorias urbanas. O autor recria com vivo colorido os aspectos arquitetônicos e topográficos da velha capital, a cultura daquela comunidade vilaboense, seus hábitos crenças próprios de uma sociedade conservadora, recheada de hipocrisia, num período de grandes dificuldades econômicas e financeiras.
Oprimidos não têm voz no romance
Os aspectos realistas da obra centram-se na questão das dificuldades das finanças públicas, na descrição da relação de opressão sobre as camadas pobres, negras e mulatas, afinal estava-se em uma sociedade escravocrata, os preconceitos de classe, excluindo-se dos privilégios aqueles que não integravam a nobreza ou o segmento social dirigente, destinatários das benesses oficiais. A presença da massa humana oprimida transparece ao longo de todo o romance, com destaque para a negrinha que servia aos apetites do governador e que, a certa altura da trama, foi agredida e espezinhada pela enciumada amante do conde. A dicotomia senhor-escravo e elite-populacho atravessa todo o romance, retratando-se a falta de perspectivas de trabalho e melhoria de vida as camadas pobres, constituídas de pardos, pretos e mulatos, majoritariamente. Registra-se, no plano da ficção, os esforços despendidos pelo governador no sentido de consolidar a navegabilidade do rio Araguaia, com vistas a romper o isolamento da capitania e firmar uma via de escoamento da produção.
Cumpre observar que o escritor, ao final do seu romance, ressalta que a história nada registra sobre a personagem Angela Ludovico, figura feminina que impulsionou esses homens e seus gestos de heroísmo ou covardia, amor e ódio, concluindo o autor, em tom lamentoso, que o mundo é só dos homens. Mas o próprio romancista, ainda que haja se revelado um homem de pensamento de esquerda, contrário à exploração do trabalho alheio, também não deu voz aos oprimidos, à camada humana servil que desfila pelas ruas acidentadas da velha capital, cenário do entrecho, e cujo trabalho era explorado pela elite branca e burocrática. Nenhum personagem que não seja da classe média ou aristocrata tem voz própria na criação ficcional, repetindo-se na literatura, a realidade da sociedade colonial. E é interessante constatar que, na narrativa do romance, a moça (Angela) vem a casar-se com o anterior namorado, seu quase noivo, o qual relegara em prol do governador, e cujo oficial militar homônimo, na história real, tornou-se governador da Província de Goiás, no ano de 1831. Uma urdidura sagaz, compondo na ficção o que a realidade sonegou à mulher, que não se submeteu a permanecer na condição de concubina do nobre, para casar-se, sim, com o militar que, ao final, no plano da realidade, veio a ser, depois, governador provincial.
Para encerrar estes breves comentários, insiro a valiosa lição do sociólogo e crítico literário Antonio Candido (“Literatura e Sociedade”, Publifolha, 2000), quando observou que “a função histórica ou social de uma obra depende da sua estrutura literária. E que esta repousa sobre a organização formal de certas representações mentais, condicionadas pela sociedade em que a obra foi escrita. Devemos levar em conta, pois, um nível de realidade e um nível de elaboração da realidade; e também a diferença de perspectiva dos contemporâneos da obra, inclusive o próprio autor, e a da posteridade que ela suscita, determinando variações históricas de função numa estrutura que permanece esteticamente invariável”.
Em outras palavras, a estrutura literária, assentada em representações mentais socialmente condicionadas, é determinante para se compreender a função social de uma obra. No caso de “Chegou o Governador”, Bernardo Élis buscou apreender toda a ideologia social do período, para desvendar seus mecanismos de poder e de hegemonia, construindo uma obra esteticamente valiosa e denunciadora do sistema de opressão e injustiça reinante no período.
Itaney Campos é escritor e membro da Academia Goiana de Letras (AGL).

O compositor Paulo Costa Lima diz que “a obra de Guicheney pode ser tomada como fresta para esse grande tema da relação entre a invenção e suas referências”

Os contos provocam o desassossego, a reflexão sobre a natureza humana e suas atitudes, às vezes, desprovidas de lucidez e compaixão