Legado de resistência em Cecília Meireles e o equívoco de Laurence Hallewell
27 junho 2021 às 00h00
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Cecília Meireles teve de ir à delegacia, debaixo de humilhações, para prestar esclarecimentos. Mas não foi “presa” pela tradução de um livro de Mark Twain
Salomão Sousa
Especial para o Jornal Opção
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Busca de esclarecimentos
O encontro de uma informação errônea que aparece n’“O Livro no Brasil — Sua História” (Edusp, 1016 páginas, tradução de Maria da Penha Villalobos, Lolio Lourenço de Oliveira e Geraldo Gerson de Souza) desencadeou as pesquisas que resultaram na necessidade de elaboração deste trabalho. Ao informar os livros que foram queimados e apreendidos pelo Estado Novo, Laurence Hallewell diz que Cecília Meireles foi presa por ter traduzido “As Aventuras de Tom Sawyer”, de Mark Twain.
Da busca de esclarecimentos para desfazer a incorreção da informação constante do livro de Hallewell emergiu uma Cecília Meireles atuante em defesa da Educação, sofrida em suas relações familiares e que deixou uma obra que ultrapassa os padrões originais do Modernismo, sem que isso seja devidamente ressaltado na vasta produção crítica e acadêmica sobre sua vida e sua obra. Trata-se de trabalhos que, na maioria, se repetem, às vezes sem profundidade ou método, com enfoque nos mesmos pontos. É preciso que um pesquisador encampe o trabalho de busca de informações complementares e de ordenamento do material em uma publicação que apresente a poeta de corpo inteiro.
Pretende-se, por intermédio deste pequeno artigo, descobrir lacunas nas informações biográficas e nos estudos sobre a poesia de Cecília Meireles, preenchê-las quando for possível identificar pistas nos documentos acessados e sugerir investimentos para afirmação dessa personalidade cultural que soube quebrar barreiras impostas pelo seu tempo. Pelas dimensões das atividades de Cecília Meireles, muitas de suas viagens não puderam entrar no território deste trabalho. Talvez possa acontecer repetições e de alguma informação acolhida ser considerada banal por alguém, mas a poesia encanta pelos instantâneos da sombra de uma ave (“Chorava caminhos claros/noutro lugar”).
Conforme vários estudos demonstram, Cecília Meireles contribuiu para o debate do modelo de Educação laica e universal adotado no País, ainda que para isso tenha travado resistência cautelosa com a ditadura de Getúlio Vargas. Ela deixou vasta obra jornalística e literária, o legado de sua atuação como educadora e o trabalho de interlocução da poesia brasileira com a portuguesa, israelense, indiana, entre outras territorialidades. Todas essas ações estão a exigir contextualização atualizada. Além, é claro, de urgência na recuperação e no ordenamento de sua correspondência e de construção de sua trajetória biográfica, que ponha em relevo o trabalho realizado por ela em diversas áreas e a vitória pessoal sobre os desastres que tão amiúde recaíram sobre sua vida, desde a chegada de sua mãe ao Brasil em data não identificada, originária da ilha de São Miguel, nos Açores.
Pode ser constatado que inexiste estudo biográfico que abarque de forma aprofundada toda a vida de Cecília Meireles e que são raras as informações sobre o seu cotidiano, sobre os estudos e as relações com a família e os amigos, sobretudo com a intelectualidade. Por exemplo: não foi possível localizar nenhuma menção sobre a relação dela com a obra de Jorge de Lima ou se foram amigos e/ou mesmo se mantiveram encontros informais, apesar de terem pertencido à revista Festa, do grupo de poetas modernistas alinhados à linha espiritualista, e de a palavra “inconsútil” aparecer no quarto poema do livro Solombra (1963). “Inconsútil” é uma palavra que ninguém sai dizendo por aí a torto e a direito sem que haja uma forte sugestão fixada no inconsciente. Em 1938, Jorge de Lima tinha publicado o livro A túnica inconsútil.
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Embate com as várias mortes em família
Por artigo de Lélia Pereira Nunes, disponível no meio virtual, é possível tomar conhecimento de um livro publicado em 1998 pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada, em Portugal, que reúne 246 cartas de Cecília Meireles dirigidas ao poeta de vila-franquense no período de 29 de janeiro de 1946 a 3 de março de 1964. Por se tratar de um interlocutor dos Açores, terra de seus ancestrais, certamente o livro “Lição do Poema: Cartas de Cecília Meireles a Armando Côrtes-Rodrigues” contenha informações esclarecedoras das origens da poeta brasileira. Sem ter acesso a essa referência bibliográfica, pode-se verificar que, por meio de uma tese de Margarida Maia Gouveia, da Universidade dos Açores, as “cartas contêm algumas das fontes mais preciosas da origem da sua poesia, da sua visão do Brasil da época, do seu dia a dia, das suas obsessões, do seu lugar no mundo e das suas referências literárias universais”. Todos esses temas relacionados por Margarida Maia Gouveia aguardam abordagem ampliada.
Dessa correspondência, é no mínimo curiosa a forma precavida como Cecília Meireles decide fazer a remessa de doze postais ao seu missivista Armando Côrtes-Rodrigues. Por desconfiar dos serviços dos correios, informa que vai expedi-los em envelopes separados por diversas agências postais “para, no caso de se perderem, não serem uma perda completa”.
Ela descreve o conteúdo de todos os postais, com impressões poéticas bem pessoais, que demonstram intimidade com as imagens expostas em cada um deles. No trecho destacado abaixo, volta a aparecer a palavra “sombras”. As “sombras” vêm sendo estudadas como o leitmotiv de sua vida e de sua obra. Sobre o postal em que aparece a floresta da Tijuca, retratada numa vista aérea, a descrição se volta para outro ângulo da imagem, existente só no imaginário da poeta, num legítimo poema em prosa, valendo-se, certamente, das reminiscências infantis:
“A grande altura, perto das matas da Tijuca, nossa irmã Água deixa-se cair assim pelas pedras. Pensar que ali noite e dia ali cai, sozinha, por esse gosto lírico de perder-se, de obedecer às suas leis, de desfazer-se toda para de novo recuperar-se. E como poderá saber que se recupera? (E romper-se?).
A floresta é uma alucinação, com sombras, perfumes, aconchegos, pássaros, alguma serpente repentina, e essas vozes fantásticas, multiplicadas em pequeninos, vibrantes, atordoantes cios.
No meio disso, a água límpida, com seu choro transparente, é uma pureza, uma liberdade – é a tranquilidade de passar – isenta -, sem os cativeiros intrincados da terra.
Quantas coisas lhe quereria dizer [a Armando Côrtes-Rodrigues] sobre a água – e tudo o que dizemos são letras de espuma, letras de espuma no mar…”
Através de referências esparsas, a carecer de unificação, é possível saber que a mãe de Cecília Meireles, Matilde Benevides Meireles, nascida em São Miguel, nos Açores, chegou ao Brasil ainda com poucos meses de idade, onde viria a se casar com Carlos Alberto de Carvalho Meireles, que era filho de portugueses. Logo que nasceu em 7 de novembro de 1901, no bairro Rio Comprido, Cecília Meireles começaria a enfrentar a constância da morte entre seus familiares. É o quarto filho do casal, sendo que os três primeiros irmãos não sobreviveram e o pai faleceu três meses antes de seu nascimento. Depois da morte da mãe, quando tinha 3 anos, passou a morar no bairro do Estácio com a avó materna Jacinta Garcia Benevides, já viúva na época, e que viria a falecer em 1931. Perdeu a pajem Pedrina aos 15 anos de idade, e, com essa morte, perdia também uma companheira, pois a avó permitia que ela saísse de casa só para frequentar a escola.
Em 1935, seu primeiro marido, o artista plástico português Fernando Correia Dias, viria a se matar dentro de casa, sendo encontrado morto por uma das filhas pequenas. Com as agruras financeiras desencadeadas pela morte do marido, Cecília Meireiles teve de cuidar sozinha das filhas, que passaram a ser seu único núcleo familiar no Brasil. Voltaria a se casar em 1940 com o professor e agrônomo Heitor Vinicius da Silveira Grillo, com o qual viveria até 9 de novembro de 1964, quando faleceu em consequência de um câncer.
Para a avó Jacinta, Cecília Meireles escreveu uma longa “Elegia” (em torno de 250 versos), que consta do livro “Mar Absoluto e Outros Poemas”. Nesse poema, ela se declara apenas uma “sombra” e reconhece que tudo se torna inútil com a ausência da avó, que continua a ser a sua “fortaleza”:
Mas tudo é inútil,
porque estás encostada à terra fresca,
e os teus olhos não buscam mais lugares
nesta paisagem luminosa,
e as tuas mãos não se arredondam já
para a colheita nem para a carícia.
(…)
Mas a mim – se te chamar, se chorar – não me ouvirás
por mais perto que venha, não sou mais que uma sombra
caminhando em redor de uma fortaleza.
Em “Olhinhos de Gato”, único livro memorialístico de sua autoria, que retrata lembranças com a claridade da infância e a rarefação da nebulosidade da orfandade — publicado em Portugal nos anos 1939/1940 e, no Brasil, em 1980 —, Cecília Meireles narra que “na cama estava deitada a moça, que de repente se sentou, passando as pernas para o lado de fora. Nesse momento, eram só duas pessoas: ela e a menina. Depois, não havia nada.” Nessa imagem dela ao lado da mãe, começam a se delinear as sombras que aparecem em sua obra, deixadas pelas sucessivas mortes de seus familiares, pois sentia as presenças e, na realidade, “não havia nada”. “Havia uma espécie de vala de silêncio, de sombra, de sono”, que iriam desaguar, como veremos, na construção do livro “Solombra”.
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Embate com o embrião ditatorial
A atuação jornalística de Cecília Meireles rendeu, só no “Diário de Notícias”, com a Página de educação, mais de 750 artigos, que se encontram organizados em cinco volumes. Essa atividade como jornalista da área de educação é a mais estudada pela comunidade acadêmica pela importância que teve no delineamento da escola que deveria ser implantada no país. O Estado Novo (1937-1945), atendendo a corrente conservadora dos católicos (capitaneada por Alceu Amoroso Lima), preferiu o ensino religioso à proposta de uma escola laica e universal defendida, entre outros, por Cecília Meireles e Anísio Teixeira. Tristão de Athayde (Alceu de Amoroso Lima) julgava que a escola moderna era “materializante e comunizante”. Nesses artigos, Cecília Meireles se dirigia diretamente a Getúlio Vargas com o vocativo “Sr. ditador” e disse em uma carta que os artigos de Tristão de Athayde (com ruindades “de sacristia, feitas com a mesma unção e talvez mais veneno”) contra a Escola Nova eram piores do que a gripe espanhola.
O “Diário de Notícias” extinguiu a Página de educação sem nenhuma explicação. Mas é inegável que a decisão da direção do jornal atendia exigências do Estado Novo, pois o conteúdo dos artigos de Cecília Meireles contrariava a doutrina educacional defendida pelos conservadores. Esse período da vida de Cecília Meireles é bem tratado no livro “A Farpa na Lira — Cecília Meireles na Revolução de 30” (Record, 256 páginas), de Valéria Lamego.
Em que pese toda a desordem da exposição do material, o livro de Valéria Lamego é a referência disponível com maior fertilidade de informações sobre Cecília Meireles, sobretudo por apresentar a correspondência dela para Fernando de Azevedo. Um desses exemplos são as manifestações sobre as obras de Monteiro Lobato. Considera que os personagens “são tudo quanto há de mais malcriado e detestável no território da infância” — “eu acho que deseducam muito”. Diz que “por nenhuma fortuna do mundo eu assinaria um livro como os do Lobato, embora não deixe de os achar interessantes”.
Em que pese as divergências com o Estado Novo, Cecília Meireles passa a trabalhar no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) como editora da revista “Travel in Brazil”, de divulgação do país para turistas estrangeiros. Esta fase está bem estampada no livro “Cecília Meireles e a Travel in Brazil — 1941-1942” (Intermeios, 184 páginas), de Luís Antônio Contatori Romano. Foram editados oito números da revista. Ela pedia artigos aos escritores brasileiros para evitar que houvesse “invasão de colaboradores” da linha dura da ditadura de Vargas para ocupar as páginas da revista. Quando pede um artigo para Mário de Andrade, o escritor lhe indaga se pode escrever sobre “todas as cores”, pois o governo de Getúlio Vargas, alinhado ao Eixo, estava empenhado em divulgar, no exterior, um Brasil “embranquecido” e “civilizado”. Cecília Meireles responde afirmativamente, em carta de janeiro de 1942 (“já se pode falar de assuntos de todas as ‘cores’ — preto, branco, marrom, etc.”). Em seguida, tão logo muda a direção do DIP, volta a escrever a Mário de Andrade, desta feita com as seguintes observações em carta de 18 de agosto de 1942: “Tenha cuidado com o material humano que apareça em alguma foto: voltamos ao regime exclusivamente ariano”.
Formada pela Escola Normal (Instituto de Educação), Cecília Meireles exerce o magistério em escolas oficiais do Rio de Janeiro. Não consta que tenha feito curso universitário, mas, talvez por permissão de alguma legislação da época, foi professora de Literatura Luso-Brasileira da Universidade do Distrito Federal (RJ) e lecionou Literatura e Cultura Brasileira na Universidade do Texas (EUA), bem como ministrou conferências em diversos países. Na Índia, foi agraciada com o título de “Doutora Honoris Causa” pela Universidade de Nova Déli (1953).
Ela se divertia em todas as viagens, inclusive naquelas em que cumpria missão oficial. Registrou no verso de uma foto tirada em Porto Alegre ao lado do marido: “Que bom viajar! Ai! Ai!”. Do México, escreve para as filhas: “A viagem está muito bonita. Tão calma que é preciso a gente pular em cima do navio para ele balançar um pouquinho”.
Alguns segmentos criticam Cecília Meireles por não atuar, abertamente, em defesa, por exemplo, dos direitos da mulher. Foi o caso da poeta e tradutora Ana Cristina César, que questiona, ao abordar a poesia de Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, se “não haveria por trás dessa concepção fluídica de poesia um sintomático calar de temas de mulher”. A proposta da poesia de Cecília Meireles não era de participação, no entanto, enquanto ser político, era de atuação propositiva, de resistência, sem imposições de gênero e de reivindicações de palanque. O título de seu penúltimo livro “Metal Rosicler” (1960) remete para a força (metal) da presença feminina (rosicler), num mundo em que “claridade e escuridão atuam concomitantemente”, para “vencer a implacabilidade do tempo e a finitude da existência”, conforme estudo de Delvanir Lopes, da Universidade Estadual Paulista. “Metal rosicler” é a pedra arenosa, negra, que, depurada, lavada leva à prata (ver Antonil). Portanto, necessária a depuração para haver mudança, chegar à rigidez do metal.
Para não ficar aberta totalmente a lacuna sobre o engajamento de Cecília Meireles com as questões de integração da mulher na sociedade, importante lembrar que foi recobrado na edição de suas obras completas (edição de 2017) o poema “Prisão”, que trata das condições de aprisionamento da mulher (“quarenta mulheres estão no cárcere/Em celas de ar, de água, de vidro/estão presas quarenta mulheres,/quarenta ao menos naquela cidade/e nem o galo rubro do sol/nem a andorinha azul da lua/podem levar qualquer recado/à prisão por onde as mulheres/se convertem em sal e muro”). Vale mencionar também o poema “E.U.A 1940”, composto no período em que esteve no Texas. Esse poema — o mais longo de sua produção (mais de 800 versos) — também trata das questões da mulher, desta vez aborda os ditames do consumismo.
Por fim, importante tratar da criação da Biblioteca Infantil do Pavilhão Mourisco, localizada em Botafogo, no Rio de Janeiro, durante a gestão de Anísio Teixeira à frente da Diretoria Geral de Instrução Pública. Cecília Meireles foi convidada a dirigi-la, transformando-a num centro de atividade infantil, conforme ficou registrado na lembrança do poeta Geir Campos, que frequentava a localidade na infância. (“O Pavilhão Mourisco passou a ser meu divertimento predileto, pois, além do salão de leitura, a biblioteca tinha também um setor de manualidades. O dia triste para mim era o domingo, quando o Pavilhão não abria.”)
Apesar de sua gestão exitosa, Cecília Meireles escreve em maio de 1934 a Fernando Azevedo demonstrando que a perseguição política e a falta de verbas começaram antes de a biblioteca ser inaugurada em 14 de agosto de 1934: “Tenho certas tentações de me declarar comunista oficialmente, para ver se arranjo uma subvenção de Moscou… Porque, de outro modo, tudo está obscuro demais, embora para uma fundação lendária, instalada num pavilhão de vidro, e dirigida por uma criatura tão improvável como eu…”. Além da escassez de verbas, a biblioteca teve de ser constituída, em grande parte, com doações de livros por educadores e editoras e pela própria Cecília Meireles.
A Biblioteca foi fechada em 19 de outubro de 1937 — com direito a invasão da polícia — pelo interventor do Distrito Federal, Henrique Dosdworth, em perseguição ao ideário de Anísio Teixeira, que já fora demitido em 1935, sendo preso e obrigado a se exilar na Bahia por mais de dez anos. Na falta de melhor argumento, alegaram que nas estantes havia obras subversivas. Como modelo de literatura subversiva presente na biblioteca, foi citado o livro “As Aventuras de Tom Sawyer”, de Mark Twain, em tradução de Monteiro Lobato. Os argumentos para o fechamento da biblioteca tiveram repercussão negativa entre os intelectuais brasileiros, bem como na imprensa dos Estados Unidos, onde o romance representa o nascimento da ficção naquele país, com um herói que incorpora em si a representação da liberdade do povo americano.
Em abonação ao seu alinhamento com o regime de Getúlio Vargas, Tristão de Athayde — sem condenar a censura em vigor e eximindo o governo da ação de “inquisidor” — criticou o artigo do “New York Times”:
“Indignou-se o jornalista [do jornal americano] e viu no caso um sinal de estupidez e barbárie. Estou certo de que neste país [Brasil] ninguém jamais se lembrou de incluir Tom Sawyer entre os livros perniciosos à juventude.
“Se isso aconteceu, no entanto, o inquisidor agiu de conta própria, excedendo, por ignorância o mandado que lhe confiaram.
“Convém que a missão de queimar livros ou retirá-los das bibliotecas seja confiada a gente criteriosa, a homens que tenham cultura e possuam real conhecimento do valor das obras condenáveis.”
Desse período conturbado, restou uma carta-circular de Cecília Meireles escrita em 6 de janeiro de 1936, portanto, 47 dias após o suicídio do primeiro marido, dirigida a amigos portugueses, que retrata as suas condições emocionais durante o impacto da morte do marido e as movimentações políticas do Estado Novo, que poderiam afetar os seus contratos de trabalho. Ela informa que passou um mês sem comer e dormir, “sustentada por palavras e remédios” e que lhe pesava a preocupação com a manutenção de suas fontes de renda:
“(…) a Universidade está para ser fechada a cada instante, desde que uma reviravolta política produziu a queda do Anísio, arrastando diretores da Faculdade e professores, supostos “avançados” demais para a época. Eu nada tenho a ver com essas coisas, mas a mudança de professores da esquerda ou centro para outros de extrema direita pode produzir deslocamentos por outras conveniências que não as de ordem técnica. Nesse caso, talvez eu fosse atingida. E teria de pensar em arranjar a vida de outra maneira. Mas o grupo educacional a que estou filiada, creio que não permitiria o meu sacrifício sem protesto.”
Sabe-se que Jorge Amado foi detido por duas vezes pelo Estado Novo e que seus livros foram queimados (só em Salvador, na parte baixa do elevador Lacerda, foram queimados 1897 livros, sendo 1694 de Jorge Amado), bem como foram para a fogueira livros de Monteiro Lobato, Gilberto Freyre e José Lins do Rego (para citar só expoentes da literatura nacional), e que Graciliano Ramos foi encarcerado sem nenhuma acusação formal. Mas não se ouve nos salões que Cecília Meireles tenha sido aprisionada por um governo aclamado no futuro pelas esquerdas pelos avanços em direitos trabalhistas e, por outro lado, fecham os olhos para as práticas totalitárias do período.
Tanto a direita quanto a esquerda preferem não enxergar que as ações totalitárias do Estado Novo são embrionárias para o fascínio das elites para os apelos ditatoriais que passaram a grassar no Brasil a partir daquele período. O Estado Novo fechou o Congresso Nacional e a Universidade do Distrito Federal (UDF), manteve um órgão para controle da imprensa e das publicações (DIP), alinhou-se às correntes totalitárias que devastavam a Europa, reprimiu as escolas estrangeiras instaladas no Brasil, enviou a alemã Olga Benario, mulher de Luiz Carlos Prestes, para os fornos de Hitler e perseguiu intelectuais que atuavam em favor de avanços sociais, sobretudo na área da Educação. Anísio Teixeira e Graciliano Ramos foram os que pagaram o mais alto preço. Cecília Meireles foi humilhada, mas conseguiram atingi-la só de raspão.
(Parêntese para o registro de fatos que demonstram a fobia fascista de “gente criteriosa” e por “ruindades de sacristia” atuantes no país. O Estado Novo queimou no Rio de Janeiro exemplares de “Tarzan, o Invencível”, condenado pelo uso da palavra “camarada”, considerada representativa do vocabulário dos partidários do comunismo. A ditadura civil-militar de 1964, pelo decreto-lei n.º 1077, de 1970, retirou de circulação mais de 400 títulos de livros. Só em 27 de janeiro de 1977 foram queimados no incinerador do aeroporto de Brasília 3 mil quilos de filmes [436], videoteipes, revistas/jornais [1.262], livros [890], fitas magnéticas, discos e “cortes de filmes”.)
Com conhecimento da língua inglesa, francesa, italiana, espanhola, alemã, russa, hebraica e dos dialetos do grupo indo-irânico, Cecília Meireles traduziu Rilke, Virginia Woolf, Lorca, Tagore, Maeterlinck, Anouilh, Ibsen (norueguês), Púchkin, bem como antologias de textos da literatura hebraica e “As Mil e Uma Noites”, publicadas em 1926, em três volumes pela editora Anuário do Brasil. No entanto, nunca fez a tradução d’“As Aventuras de Tom Sawyer”. A sua filha Maria Matilde, em entrevista, declara que Cecília Meireles teve de ir à delegacia, debaixo de humilhações, para prestar esclarecimentos. Só que ela erra ao declarar que ela foi presa pela tradução do livro de Mark Twain, sendo que compareceu à delegacia apenas para prestar esclarecimentos sobre a presença daquele título nas estantes da biblioteca do Pavilhão Mourisco. Da mesma entrevista, falta comprovar se a polícia chegou a invadir a casa de Cecília Meireles em busca de material subversivo, conforme declara Maria Matilde, pois as suas memórias podem ter confundido a invasão da biblioteca como se fosse a invasão de sua casa.
Daí o equívoco de Laurence Hallewell ao dizer em “O Livro no Brasil” que Cecília Meireles foi presa no período. A ação de fechamento da biblioteca está eivada de contradições. O governo de Getúlio Vargas combatia as liberdades individuais e de expressão; no entanto, podiam circular livremente os livros de Adolf Hitler e Plínio Salgado. “Minha Luta” permaneceu no catálogo da Editora Globo de 1935 a 1940, quando o governo de Getúlio Vargas deixou de apoiar o Eixo e proibiu o livro. No local da biblioteca passou a funcionar um posto de arrecadação de impostos.
Ao defender a Educação, Cecília Meireles enfatiza que “O prestígio da força física é de um tempo que já morreu”. Talvez para contradizê-la ou pelo cíclico retorno de um afã de instauração da barbárie, os cúmplices de regimes totalitários – na impossibilidade de obterem prestígio pela verdade e pelo conhecimento – sempre renascem em outros tempos em busca de prestígio pela força física e pela defesa do direito de se armar. A arma é a ampliação da força física para aqueles que não conseguem se afirmar pela liberdade, pela igualdade e pela sabedoria, gestos esses que qualificam a existência numa nacionalidade. Essas compreensões fundam-nas os poetas. Não é a arma a guardiã da comunidade, mas o livro. O livro constrói nos indivíduos os valores igualitários e de afirmação da cidadania. Esforcemo-nos ao menos para sermos “… um bando sonâmbulo/passeando com felicidade/por lugares sem sol nem lua”.
O episódio envolvendo o trabalho de Cecília Meireles na Biblioteca Infantil do Pavilhão Mourisco fica como um selo simbólico da perseguição à cultura e aos intelectuais pelo embrião ditatorial de Getúlio Vargas, que insiste a nascer a todo momento, sempre envolta na placenta do populismo. As prisões de Anísio Teixeira e Graciliano Ramos e a sujeição para que Cecília Meireles comparecesse à polícia pelo trabalho pioneiro diante de uma biblioteca são máculas inapagáveis das constantes ameaças à democracia brasileira.
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Ascensão
A poesia do Modernismo brasileiro se desenvolve em duas frentes. Em São Paulo, em torno da revista “Klaxon”, com seus contornos antropofágicos, futuristas, das buzinas (klaxon) da industrialização. Por sua vez, no Rio de Janeiro, à qual estava ligada Cecília Meireles, por meio da revista “Festa”, com contornos formalistas, espiritualista, com retorno à tradição católica, sem a festividade animada do futuro, mas de ascensão ao Eterno (festa).
Seus primeiros livros já continham as características do grupo de “Festa”, era natural, portanto, a sua adesão à revista. A propósito do livro “Cânticos”, que foi escrito em 1927, época em que atuava na revista “Festa”, e só publicado em 1981 pela editora Moderna, a poeta Fernanda Cruz Filha aponta com propriedade as características da poesia de Cecília Meireles:
“Tem um lado muito devoto e mostra a fé na dinâmica das coisas e da vida. Mesmo quando fala da desesperança, da tristeza, das incertezas, faz isso com uma entrega à uma espécie de força ou movimento das coisas e da vida. ‘Cânticos’ é um livro em que ela se aprofunda na questão existencial de forma belíssima e espiritual. E continua falando da morte, tema subliminar de toda sua obra, mas de uma forma mais desprendida e mais leve.”
Há a leveza em sua obra, basta ver as palavras de Afrânio Coutinho na oportunidade de inauguração da Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro. No entanto, em sua vida nem tudo se manifestou com a leveza de uma ave ou de uma sombra. As sombras pesavam em suas tintas e em suas costas.
“Falar de Cecília Meireles é como falar da flor, da brisa fresca da manhã, é, sobretudo, como falar de uma ave. A sua poesia é um pássaro que nos transmite a boa nova. Poesia do inconsútil, poesia feita de sonhos do impalpável, poesia que não tem peso.”
“Cânticos” é um livro construído a partir de sua aproximação da experiência espiritual indiana, que ela prosseguiria em outros títulos após se aprofundar na poesia e na filosofia indiana com leituras de Tagore e admiração por Gandhi. Os versos são leves, mantras para enriquecimento da vida através da desvinculação de Pátria, de morte, de ambição; mantras para conhecimento e evolução de si mesma, e não os mantras egocêntricos dos dias atuais, de euforia agressiva para afirmação do eu só em si mesmo. Essa temática espiritual ceciliana evoluiria para um adensamento abstrato, muitas vezes atingido por forte surrealismo, conforme assinala Manuel Bandeira:
“Há nos seus poemas, a partir de Viagem, as melhores sutilezas do gongorismo, a nitidez dos metros consoantes parnasianos, os esfumados de sintaxe e as toantes dos simbolistas, as aproximações inesperadas dos surrealistas.”
Esse surrealismo, esse gesto metafísico puro alcançado por infindáveis exercícios de abstração, levou à composição de “Solombra”, livro construído através de pura decantação, para afirmar que se encontra ao sol, “flor de cinzas” ao solo, obra espiritual carregando as suas sombras “com amorosa melancolia”. Maria Catarina Leal do Nascimento, leitora de Cecília Meireles, enxerga essa melancolia na autora, melancolia que não aparece nos livros irmanados à tradição indiana, que procuravam depurar a poesia de todos os desastres da vida para que fosse menor o peso de existir.
Mas a melancolia acaba por se declarar em outros livros, anexada ao lirismo, à metafísica inescapável do real (“O pensamento é triste; o amor, insuficiente;/e eu quero sempre mais do que vem nos milagres”). Talvez a melancolia possa ser identificada em uma carta de 1940 enviada para as filhas, quando ela se encontrava no México, toda desenhada com um trem atravessando o território do papel. Ela diz às filhas que sentiu náuseas ao viajar no trem, “náuseas de ser gente, de estar viva, de ir naquele trem, etc.”. No famoso poema “Lua adversa”, em que consta o verso “tenho fases como a lua”, — aderido à memória de todos os leitores —, há uma expressão que sinaliza a existência de “fases” de melancolia na vida de Cecília Meireles, com repercussão em sua poesia:
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua…)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…
Escrito quando carregava o peso da doença que a venceria, com a carga de mortes que trazia no alforje, em “Solombra” os mantras confiantes se ausentam para dar lugar a “conchas secas, bradando/a vida, a vida, a vida! e sendo apenas cinzas”. Ficou “apenas essa/memória indefinida e inconsolável”. Fechava-se esse ciclo de sombras iniciado em 1919 com Espectros, seu primeiro livro. Afinal, “espectros” também são aparições vazias e intimidadoras.
Muito se tem escrito sobre o título “Solombra” e a técnica da escrita do livro. São 28 poemas, todos com treze versos compostos de quatro tercetos e um estrambote, sendo 23 poemas em alexandrinos e 5 em decassílabos, conforme pode ser verificado pelos primeiros versos (“Quero uma solidão, quero um silêncio”, “Caminho pelo acaso dos meus muros”, “Isto que vou cantando é já levado”, “Tomo nos olhos delicadamente”, “Uma vida cantada me rodeia”) e, o último verso, isolado, sem número fixo de sílabas. Obtém-se a sonoridade por aliterações, como no primeiro poema (flama/marinhos, separado/bradando, cinza/essa/pousa, silêncio/ausência), bem como a aliteração por repetição de palavras (a vida, a vida, a vida), que lembra as batidas do destino para aberturas de portas. Não há escape para a morte, mas que pelo menos seja um signo de passagem para o Eterno.
Aqui se faz necessário um acréscimo às interpretações da origem do título. A própria Cecília Meireles declara que buscou reviver a palavra “sombra” a partir de suas origens (“era o título que eu buscava e a palavra viveu de novo” — ela disse na clássica entrevista a Pedro Bloch). Por esta declaração da autora, teremos de considerar que ela se refere a “sulumbra”, do arcaico de “sombra” em espanhol, que vem do latim “sub illa umbra” (sob aquela sombra); ou, com maior probabilidade, de “selombra”, em mirandês/português da região de Miranda do Douro, que, como a palavra em espanhol, também guarda origem direta da expressão latina.
No decantado primeiro parágrafo de “O Senhor Presidente” (1946), de Miguel Ángel Asturias, também se encontra esse desdobramento da sombra (umbra) que paira sobre a América Latina. (“Alumbra, lumbre de alumbre, Luzbel de piedralumbre!/maldoblestar de la luz en la sombra, de la sombra en la luz/podredumbre”.) Em Miguel Ángel Asturias o termo é empregado com o sentido de “alumia” ou “des/sombra” ou “clareia”. Cecília prefere clarear com “sol” a “sombra”, impor algo sobre ela, ocupar o lugar da sombra, pois, em sua literatura, a sombra é onde impera a ausência, é onde “não havia nada”.
Por guardar similitude com a temática do livro, há que se considerar que Cecília dominava o hebraico, pois vivia comprando discos e livros em hebraico em suas viagens e chegou a preparar uma antologia de textos israelenses, e poderia ter conhecimento da palavra “sombra” em fenício (tsel), que guarda importância para a interpretação de vários versículos bíblicos. Para denotar escuridão angustiante (tselmawet), o fenício aglutina “sombra” (tsel) com “sombra da morte” (mawet). Ocorre que na Bíblia, dentro dessa herança fenícia, a presença da morte é um encaminhamento para o Eterno, que leva a uma nova dimensão da vida (consultar estudo na página https://shemaysrael.com/sombra/).
Em Cecília Meireles, a marca registrada de sua temática se apresenta na dualidade sol/sombra de seus antepassados, que ela carregou por toda a existência e se preparava para encontrá-las no Eterno. Os antepassados eram tanto o que “não havia nada”, de inexistência, quanto de “fortaleza” para que pudesse continuar cumprindo seu “contrato” de vida (“Eu sou demasiado honesta (…) para morrer antes de cumprir um contrato”, registrou na mencionada carta redigida após a morte do primeiro marido).
Perto do fechamento do artigo, eis que surge, por pura casualidade, uma frase/aforismo de Albert Camus, do livro “O Avesso e o Direito” (Record, 80 páginas, tradução de Valerie Rumjanek), como um inesperado instantâneo de luz por uma fresta: “Fui colocado no meio do caminho entre a miséria e o sol”. Cada indivíduo tem a vida definida por estas marcas registradas que foram se impondo pelo caminho. Para Carlos Drummond de Andrade é a pedra/pedra mineral, para Dante é a própria existência/caminho, para Camus é a dualidade da miséria/sol, para Asturias é a necessidade de clarear a umbra /podredumbre ditatorial que varria a América Latina. Em Cecília, além da dualidade sol/sombra, por mais que a isso se oponha o “nítido sangue” e paire a dura angústia da ausência, permanecem a “constante presença em memória guardada” e a “tentação de tantas máscaras felizes”.
Salomão Sousa é poeta, jornalista e servidor aposentado do Poder Executivo Federal. Reside em Brasília. Estreou em 1979 com A moenda dos dias, ao qual se seguiu uma dezena de títulos. Sua bibliografia inclui livros de poesia, de crítica e organização e participação de antologias. É colaborador do Jornal Opção.