Vanguarda da prosa indefinida no livro “Escobar”, de Márwio Câmara
12 setembro 2021 às 00h00
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“Escobar”, romance de estreia do carioca Márwio Câmara, traz escrita inovadora com elementos semiautobiográficos
Guilherme Mapelli Venturi
Especial para o Jornal Opção
A teoria literária, mesmo passando por grandes evoluções conceituais ao longo dos séculos, sempre seguiu convenções muito rigorosas, principalmente quanto à divisão dos gêneros literários e das tipologias textuais, com suas respectivas estruturas e características. No entanto, a partir do modernismo, essa premissa vem se alterando gradativamente.
É preciso, sim, que padrões existam e sejam utilizados, mas nada impede que sejam reformulados por artistas, entre eles, os escritores. Por um lado, regras engessadas são valiosas para a classificação, a catalogação, a análise e múltiplas outras atividades acerca da escrita e da literatura, mas igualmente à sociedade, conforme as novidades vão surgindo, chega um momento em que necessitam de reformulações e acréscimos, a fim de conseguirem abarcar os objetos e os nichos em questão. Além disso, teorias não se anulam umas às outras; pelo contrário, elas podem e devem coexistir, interna e externamente.
Uma obra não se configura inédita apenas pela sua temática de enredo e por ainda não ter sido publicada, mas também, pelas técnicas utilizadas pelo autor, diferenciando-a das demais; muitos escritores ainda permanecem nos clichês narrativos; outros trazem assuntos atuais e polêmicos. Nesse sentido, leitor, você já teve seu interesse despertado antes de adquirir determinada obra, devido aos aperitivos pré-lançamento (capa, texto das orelhas, etc.)?
O talento minucioso e inesperado que Márwio Câmara aplicou em seu novo livro “Escobar” (Moinhos, 143 páginas) impressiona por razões várias, sobretudo, por ter sido tão bem recebido pela crítica (onde seu criador vem conquistando, merecidamente, cada vez mais prestígio) e pela contínua busca por conhecimento. Autor também de “Solidão e outras companhias”, livro de contos publicado em 2017, além de resenhas e entrevistas para os principais suplementos do país. Câmara é formado em Letras e Jornalismo, e um profundo conhecedor do mercado editorial.
“Escobar” é, sem dúvida, a obra vanguardista da literatura brasileira atual, afinal, se quadro fosse, nele se notariam traços do expressionismo, do surrealismo, do cubismo e do dadaísmo, especialmente os dois últimos. Mas por que, leitor? Pois é, as peças para essa e outras questões, estarão perdidas nos próximos parágrafos; descubra-as e monte você mesmo o quebra-cabeça. Nada é por acaso na escrita, apesar de que, muitas vezes, certas ocorrências são construídas inconscientemente; por essa razão, o design gráfico, a diagramação e o título são excelentes indícios sobre a narrativa.
“O autor passeia por inúmeros gêneros literários (diário, crônica, dramaturgia, novela, romance), de modo que não há como definir em qual categoria enquadrá-lo, afinal, percebem-se algumas características de todas, ao mesmo tempo em que faltam outras”
Mais do que o protagonista de mesmo nome, o personagem ultrapassa a verossimilhança, pois em grande parte tem sua vida em comum com o autor; aliás, é recorrente a confusão entre biografia e autobiografia: em uma a vida de alguém é contada por um terceiro, em outra, o próprio vivente narra sua história. Eis aí, um dos grandes mistérios: será Escobar o biógrafo e Márwio o biografado, ou vice-versa? Quais e quantos dilemas passados na ficção têm correspondência com a realidade, e/ou o contrário? Certamente, influenciado por José Saramago, em “Ensaio Sobre a Cegueira”, até que ponto os dois têm suas visões anoitecidas ou embaçadas por eles mesmos e pela humanidade? E nós?
A vida é um mixer de ilusões, realidades, antíteses, paradoxos, momentos, intensidades, modos, lógicas, absurdos… portanto, não só tudo acontece ao mesmo tempo na realidade e no sonho, mas também, constantemente somos acometidos por surpresas, diversidades e relatividades, assim como se passa com a narrativa de Escobar. Por falar nisso, o autor passeia, no mesmo livro, por inúmeros gêneros literários (diário, crônica, dramaturgia, novela, romance), de modo que não há como definir em qual categoria enquadrá-lo, afinal, percebem-se algumas características de todas, ao mesmo tempo em que faltam outras.
A epígrafe de Roland Barthes que abre o livro já nos instaura um dilema amoroso entre a alucinação e a realidade, tomando emprestado os planos de Nelson Rodrigues, em Vestido de noiva; de tal modo a nos ilhar em terras sem saídas, onde, muitas vezes, mais precisamos ouvir os pássaros do que caçar. A propósito, você acha que romance o é por que fala de amor, ou seja, por ser romântico? Será a vida e o amor grandes loucuras? Até que ponto? Será que devemos dar mais importância ao presente e ao modo de execução do que à ordem?
Nós e Escobar não sabemos onde é a largada e onde é a chegada, sabemos quase tudo e quase nada; somos recortes de memórias, em um gerúndio temporal (que não é passado, presente nem futuro), tentando organizar e reconstituir vivências pretéritas. É assim que se inicia o romance (ou como queira qualificar) de Câmara, com um narrador-personagem, um personagem-narrador, um narrador, um personagem. Isso mesmo, impossível dizer de imediato. Leia e tente descobrir!
Segue-se com prováveis “capítulos”, aparentemente desconexos. Os personagens de Câmara, ou seríamos nós? Cada qual com sua personalidade, sua mania, sua orientação sexual, seu amor, sua dor… uns amam e gritam; outros, silenciam; uns têm medo e outros, coragem… Como se fossem as horas do dia de Escobar, as cenas representadas por Escobar e pelo coro da plateia são grafadas em atos e cenas, ou seriam páginas?. Coração e desejos divididos entre dois amores (ou seria um amor e um passatempo casual?), traição, crise existencial, suicídio, homossexualidade, relação entre ex-professor e aluna (ambos comprometidos) apenas por diversão e/ou amor; obesidade, análise, veganismo, tabagismo, cruel e exagerado assassinato, abandono paternal, criação por mãe biológica e por mãe adotiva… todos problemas atravessados pela humanidade e, talvez, pelo nosso protagonista. Quem sabe!?
“A maior riqueza e genialidade da obra não estão nos elementos que a compõem, mas, sim, na maneira como o autor teceu a história, ou seja, como ele articulou uma ficção que não tem início nem fim, apenas o meio, a uma série de técnicas narrativas e gêneros literários”
Eis, sem mais delongas, o que se encontra na prosa inovadora de Márwio: dezenas de referências a artistas dos mais variados segmentos, visões antagônicas sobre o amor, rupturas sintáticas e semânticas, finais abertos no enredo, influência de texto teatral, foco narrativo em primeira pessoa, diálogos no discurso indireto livre, narrador intruso, fluxo de consciência, transgressões, cortes. No entanto, a maior riqueza e genialidade da obra não estão nos elementos que a compõem, mas, sim, na maneira como o autor teceu a história, ou seja, como ele articulou uma ficção que não tem início nem fim, apenas o meio, a uma série de técnicas narrativas e gêneros literários.
A princípio cogitei a hipótese que de sua prosa anterior pudesse me interessar mais, mesmo só tendo lido resenhas a respeito e, claro, pela temática geral e dos enredos de cada conto; no entanto, o lançamento on-line e algumas resenhas lidas antes da aquisição do segundo livro, afinal, desde sua pré-estreia já causara boa repercussão, despertou minha curiosidade. Após lê-lo em algumas horas, confesso que degustei uma narrativa diferente do que imaginava, tanto em relação à história e todo seu desenrolar quanto em relação à estrutura; nada que o diminuísse.
Vê-se, como já discorrido, apesar de superficiais, as numerosas referências culturais, a diversidade temática da obra e os recursos narrativos utilizados. Não que isso seja uma deficiência de Escobar, pelo contrário, creio que sejam estes justamente os propósitos: desabafar, confundir o leitor (no sentido de não deixar claro quem é Márwio e quem é Escobar, qual é o começo e qual é o fim da história), inovar em relação aos gêneros literários e suas estruturas, indicar referências, provocar sobre as temáticas (atuais, polêmicas e delicadas).
A literatura é isto: não é a resolução final, é também a resposta, pergunta, dúvida, estranhamento, identificação, repulsa… E quem a analisa? Essa eu respondo: os críticos e os leitores. A minha opinião, e a de outros colegas críticos, você encontra no mundo web e nos principais veículos literários do país (jornais, sites, blogs, etc.); mas e a sua visão sobre Escobar, qual é? Ah, ainda não leu? O que está esperando, então? Faça-o tão logo, não se arrependerá! Aliás, após ler e opinar, aguarde, pois quem sabe, em um futuro breve, não venha uma peça teatral sobre Solidão e Escobar. Márwio, diretores e dramaturgos de plantão; dica de ouro, não?!
Guilherme Mapelli Venturi é graduado em Letras, pós-graduado em Língua e Literatura, graduando em Biblioteconomia e Ciência da informação, escritor, revisor, diagramador, resenhista, gestor da Nós textos & cia.