O escritor francês relata a história de duas mulheres diferentes no romance “Madame Bovary” e no conto “Uma alma simples”

Simone Athayde

Especial para o Jornal Opção

Emma Bovary é, com certeza, um dos personagens femininos mais conhecidos da literatura mundial. É a figura central do romance “Madame Bovary” (Penguin/Companhia das Letras, 496 páginas, tradução de Mario Laranjeiras). A esposa adúltera e fútil, que despreza o marido simplório e ingênuo, é polêmica: “amada” e “odiada”, “libertária” e “covarde”, todos esses adjetivos e outros são constantemente integrados à sua lista de caráter, mas ela também pode ser vista como símbolo da condição feminina ao ter sua personalidade moldada pelas circunstâncias sociais que se sobrepunham à vida das mulheres e que estavam além do poder delas de contestação.

Emma Bovary pertencia à pequena burguesia e, como mulher casada, não podia trabalhar fora, nem se dedicar aos serviços domésticos ou ao cuidado dos filhos, num padrão que, aos moldes de hoje, pode parecer bastante tedioso e improdutivo. Ela tinha tempo de sobra para comparar sua vida sem-graça à vida das heroínas dos romances da época e, influenciada pela leitura desses romances, desejava evadir-se para um mundo idealizado. Essa característica de escapismo recebeu o nome de bovarismo pelo filósofo Jules de Gaultier e hoje se presta à psicologia para se referir a pessoas que vivem num estado de insatisfação crônica e, por isso, preferem viver de fantasias.

Já do outro lado da camada social, o problema na vida das mulheres desafortunadas, as muito pobres, sem-família e sem-dote, era o não-tédio de uma vida sempre atarefada e sem espaços para a evasão do ego, da qual outra personagem de Flaubert, a Felicité do conto “Uma alma simples”, é um exemplo perfeito.

É bem interessante e prova de grande talento que o mesmo autor tenha conseguido caracterizar tão bem duas personagens antagônicas em essência. Como o próprio título do conto sugere, Felicité é realmente uma alma simples.

Vinda de uma infância miserável e explorada, Felicité consegue, às custas de trabalho duro e honesto, ser contratada por uma viúva mãe de duas crianças. Aquele ambiente, depois do que a criada vivera, passa a ser uma espécie de lar bem-aventurado: “A doçura do ambiente tinha fundido sua tristeza”, e ela deixa de viver sua vida para viver a dos patrões, passa a amalgamar-se nas necessidades e problemas deles, com uma dignidade e lealdade própria dos corações simples e santos. “Felicité levantava-se ao alvorecer, para não perder a missa, e trabalhava até à noite, sem interrupção; depois, terminado o jantar, arrumada a louça e bem fechada a porta, cobria a lenha de cinzas e adormecia diante da lareira com o rosário nas mãos […] Aos vinte e cinco anos, parecia ter quarenta. Depois dos cinquenta, não se poderia lhe atribuir nenhuma idade, e sempre silenciosa, o busto direito e os gestos comedidos, parecia uma mulher de madeira, funcionando como um autômato.”

Felicité era analfabeta, e a falta de escolarização e de estímulos culturais fez com que seu entendimento ficasse muito obtuso para as questões do mundo. O autor, à medida que intercala a descrição da passagem dos anos, mostrando a criada na casa onde vive e trabalha, vai pincelando detalhes da vida passada dela: um único amor rude e não concretizado, uma irmã que conhece já adulta e que se mostra interesseira, um sobrinho que parece ser realmente afetuoso, mas que morre cedo assim como a adorada filha da patroa. O transcorrer da leitura faz com que o leitor tenha empatia pela personagem e se compadeça de sua vida limitada e sem afeições legítimas. É justamente nesse ponto: as amarras sociais impostas às mulheres como fator de impedimento para habilidades, possibilidades e realizações que se localiza o ponto de confluência entre as personagens Felicité e Emma. Tais limitações sociais, da qual as duas são símbolo, ainda persistem na realidade dos dias de hoje, explícitas em certas culturas e comunidades, de forma mais branda em outras.

Flaubert: escritor francês | Foto: Reprodução

A relativa liberdade da qual Emma Bovary possuía se referia apenas àquilo a que podia realizar no âmbito da sua casa, que era pequena demais para seus desejos. Ela sempre esperou da vida mais paixão e mais riqueza do que a sua medíocre realidade foi capaz de lhe oferecer.  “Antes do casamento, havia pensado que sentia amor; contudo, como a felicidade resultante desse amor não surgia, com certeza tinha se enganado, pensava ela. E buscava saber qual era, afinal, o significado correto, nesta vida, das palavras felicidade, paixão e arrebatamento, que nos livros pareciam tão bonitas.” O que sobrava para essa mulher casada e de alma sedenta, num tempo de padrões rígidos onde qualquer desvio descoberto significava a exclusão social?

Já Felicité encontra a paz na falta de grandes expectativas e paixões. As limitações intelectual, emocional e financeira da sua vida tiveram origem no meio miserável e na falta de oportunidades de sua infância. Ao contrário de Emma, que tudo anseia, os anseios de Felicité são pequeninos e relacionados à afetividade, nunca à luxúria, e seus pequenos momentos de amargura ou revolta logo se dissipam ou ficam silenciosamente guardados, pois é no bem cumprir de suas obrigações que está a essência de seu caráter.

O mundo contemporâneo tem deitado por terra os papéis sociais fixos e há uma fluidez identitária que Zygmunt Bauman muito bem descreveu em sua tese sobre a modernidade líquida. Se por um lado o tédio e a necessidade de manter um casamento já não representam mais problemas em grande parte das sociedades, por outro lado, mesmo com uma maior flexibilidade social e oportunidades de ascensão, ainda há muitas Felicités por aí, porque a miséria é um mal para o qual ainda não encontramos remédio.

Simone Athayde é escritora, membro da Academia Anapolina de Letras e da União Literária Anapolina. É colaboradora do Jornal Opção.