O livro de poesia “Roda-Gigante” é uma obra que se mostra renovadora na linguagem                   

Adelto Gonçalves

Especial para o Jornal Opção

Poucos poetas brasileiros talvez tenham sido tão incensados já na segunda idade quanto o gaúcho Rique Ferrári (1985), elogiado que foi por nomes representativos da literatura contemporânea, como Fabrício Carpinejar, Ronaldo Cagiano, Waldemar José Solha, Martha Medeiros e Alexandra Vieira de Almeida, que o apontam como um novo ícone da poesia brasileira. Isso tudo é confirmado pelos versos que constam de Roda-gigante (Editora Penalux, 90 páginas), seu quinto livro, obra que se mostra renovadora na linguagem.

Para o autor, seus poemas procuram apresentar “uma normalização das pequenas mortes de nossas vidas”, desmistificando a ideia de que há apenas um ciclo: “em que se nasce, cresce, reproduz e morre; como nos ensinaram quando crianças”. É um tipo de frases filosóficas que lembra a literatura de Clarice Lispector (1920-1977) ou mesmo a de José Saramago (1922-2010). Segundo Ferrári, seu livro “não tenta nem quer impressionar. Quer apenas ser o que é, trazendo seu próprio leque de percepções, despreocupado de que seja bom ou ruim”.

Para Ronaldo Cagiano, autor do posfácio, o autor “utiliza seus artefatos para alcançar aquilo que de mais dinâmico e comunicador pode e deve deflagar numa obra literária, imbuída em seu compromisso estético e em sua dimensão ética”. Segundo o romancista e crítico literário, “Roda-Gigante” mostra o poeta “em pleno domínio de sua arte”.

O livro está dividido em três partes: “Linha de partida”, “Linha de chegada” e “Oroboros”. A respeito da última parte, Waldemar José Solha, autor do prefácio, recorre à simbologia do oroboro ou ouroboros, uma criatura mitológica, uma serpente que engole a própria cauda formando um círculo e que simboliza o ciclo da vida, o infinito, a mudança, o tempo, a evolução, a fecundação, o nascimento, a morte, a ressurreição, a criação, a destruição, a renovação. Dessa forma, ajuda o leitor a melhor compreender a intenção do poeta. “Evolução volta da para si mesma”, diz Solha. “Tendo isso em mente, criar fica muito mais difícil. Mas Rique Ferrári cria”, acrescenta. Veja-se aqui um exemplo da forma criadora de Ferrári neste excerto de um poema que leva o título “A hierarquia angelical”:

ver fantasmas tem sido muito comum aos adultos / pois anjos / somente quando há falhas no sistema binário celestial: / numa destas noites quentes de setembro / os dentes dos prédios estavam secos de luz / e o quarto acalentou-me num son(h)o / (desses a remeter a um útero) / assim, quando apaguei / naquele felpudo arquejar entre pós-noite e antemanhã / creio / renasci num dos outros lados / – e na brevidade do instante – / percebi a mais bela imagem da hierarquia de anjos / tal um picograma / gramofones espalhados pela cena, um bando de asas / serafins, potestades, arcanjos / como se ali reunidos, numa espécie de gaza divina-humana, forjassem o plano (…)

Rique Ferrári: seu livro “não tenta nem quer impressionar. Quer apenas ser o que é, trazendo seu próprio leque de percepções, despreocupado de que seja bom ou ruim” | Foto: Reprodução

Riqueza plástica de sua palavra

Na contramão da poesia feita por vãs repetições que tem marcado a produção contemporânea brasileira, a obra de Ferrári se destaca não só pela riqueza plástica de sua palavra como também pela capacidade desta em se metamorfosear em tempo, como dizia o poeta sevilhano Antonio Machado (1875-1939), ou seja, numa quarta dimensão, longe do plano em que vivemos. Em outras palavras: como diria o professor Massaud Moisés (1928-2018), durante a leitura de poemas como esses que saem da forja de Ferrári, “ingressamos na correnteza de um tempo que escorre aos nossos olhos, não um tempo referido mas dinâmico, “real”, uma espécie d e presente-eterno exposto à nossa efemeridade”.

Afinal, já o título do livro, “Roda-Gigante”, lembra ao leitor, antes mesmo de se iniciar a leitura, essa dicotomia entre o tempo “real” e o imaginado, pois sugere que as visões tanto podem partir de baixo como de cima, o que permite diferentes formas de contemplação de um objeto, de uma situação ou de uma vida.

É de se lembrar ainda que, em 2017, Ferrári lançou “Rocketman” (Editora Patuá), que reúne 39 poemas e 22 ilustrações que procuram associar os desenhos às imagens idealizadas pelo poeta. São desenhos produzidos por tatuadores conhecidos entre a juventude que cultua essa arte que foi trazida para o Brasil, ao final dos anos 1950, pelo dinamarquês Knud Gregersen (1928-1983), o Tatoo Lucky, que, durante muitos anos, teve loja instalada no coração da zona boêmia do Paquetá, à beira do cais de Santos, a uma época em que apenas os homens do mar se tatuavam.

Naquele livro, Ferrári já prenunciava o estilo que amadurece em “Roda-Gigante”, mostrando uma carga semântica e uma sutileza de estilo que agora se reafirmam. Como bem sabem os amantes da boa música, o título daquele livro constitui uma homenagem a uma obra do pianista e compositor britânico Elton John, “Rocketman”, que fala de alguém que foi para o espaço e se sente muito só, com saudade da Terra.  Nos poemas de Ferrári, no entanto, essa viagem para o espaço, sem retorno, é metafórica e assim deve ser lida.

Já a crítica Alexandra Vieira de Almeida havia percebido isso em percuciente leitura que fez deste livro, observando que o tempo da poesia de Ferrári é dual, revelando a ambiguidade da forma. “Ele faz versos longos que ao mesmo tempo explana de forma ágil e não mecânica”, observou a doutora em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Com tamanhas referências e recomendações em mão, por certo, o leitor não perderá tempo se procurar conhecer a palavra deste jovem representante da nova poesia brasileira.

Rique Ferrári, pseudônimo literário de Thiago Ferrari, nasceu em Bento Gonçalves-RS, mas reside em Porto Alegre. É empresário (produtor de vinhos), sommelier (profissional especializado em bebidas alcoólicas, especialmente vinhos), professor, especialista em arte pré-colombiana, filósofo, neologista nas línguas portuguesa e espanhola e dançarino. É também colecionador de antiguidades, que tem recolhido durante suas andanças pelo mundo.

Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp)/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da mad rugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: [email protected]