As texturas da impermanência no filme “Estou Pensando em Acabar com Tudo”, de Charlie Kaufman

11 outubro 2020 às 00h00

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O mais recente trabalho de Charlie Kaufman como diretor é sua consagração artística e um dos mais interessantes filmes da temporada
Ricardo Silva
Especial para o Jornal Opção
A cada novo trabalho de Charlie Kaufman as reações serão sempre díspares. Dividir a crítica entre si e também dividir o público é uma das proezas que nascem naturalmente dos projetos do diretor, escritor e roteirista. O fenômeno tem sua justificativa: o trabalho de Kaufman é preenchido de obras narrativas de profundo valor cinematográfico e que revelam o gênio que habita as ideias desse artífice audiovisual, que nem sempre é compreendido de forma imediata.

O mais recente trabalho de Kaufman é novamente um exercício narrativo. O diretor transforma um romance considerado infilmável e realiza uma adaptação que foge das classificações. Se apropriando do romance homônimo de Iain Reid, a adaptação de “Estou Pensando em Acabar Com Tudo”, de Kaufman, produz um dos mais ternos e poderosos libelos cinematográficos sobre o tempo, a transitoriedade da memória, a construção da própria subjetividade e a porosidade das lembranças, dos últimos anos, além de homenagens e referências que se sublinham como marca registrada do diretor.
Reid e Kaufman transformaram uma pequena viagem de namorados em início de relacionamento para conhecer os pais dele numa experiência que burla a lógica cartesiana da realidade e a expande de forma flexível. Jake (Jesse Plemons) e a Jovem (Jessie Buckley), um jovem casal na sétima ou oitava semana de relacionamento, pegam estrada para a fazenda dos pais dele. Essa pequena jornada, feita sob uma forte tempestade de neve numa cidadezinha do interior, é atravessada por um conjunto de reflexões e diálogos carregados com referências que vão de Guy Debord e até John Cassavetes.
“Estou Pensando em Acabar Com Tudo” é a frase que ecoa na cabeça da Jovem, e que desvela uma chave de interpretação que serve para ler as entrelinhas do longa. O “acabar com tudo” pode se referir tanto ao seu relacionamento com Jake quanto com um “tudo” mais amplo, que abarque a própria vida. O próprio tom escuro, de iluminação indireta, do filme remete a essa nuance mais sombria sobre os pensamentos dessa personagem que não tem nome mas é constantemente nomeada de diferentes formas, e que se vê projetando uma realidade e também sendo por ela moldada.

Com três atos sobrepostos, cujas pontas se entrechocam e se misturam de forma não-linear durante a trama, a narrativa de Kaufman em “Estou Pensando…” faz jus a uma obra dedicada a investigar a gasosa estrutura da memória e da constituição da identidade. Desde sua estreia na direção em “Sinédoque, Nova York”, Kaufman borra as fronteiras que limitariam a dinâmica das suas histórias e as inverte, subverte e remixa, confabulando enredos que tenham como foco aquilo que é intangível, inalterável e labiríntico: o tempo, as lembranças, a memória, os sentimentos e de como estão entremeados uns nos outros.
Entre as diversas reações dadas à “Estou Pensando…” uma é a das mais corriqueiras quando surgem trabalhos como esse que se ocupam de reflexões por meio de outros exercícios ficcionais: o filme seria pretensioso. Seja em trabalhos com outros diretores — como Michel Gondry e Spike Jonze —, no qual o seu papel como roteirista excêntrico exerceu grande destaque; seja nas suas duas obras anteriores (“Sinédoque, Nova York” e “Anomalisa”) onde atuou na direção, Kaufman sempre se debruçou sobre temáticas carregadas de referências pouco acessíveis abordando assuntos muito específicos sobre trivialidades universais quase sempre ignoradas ou investigadas sob a lógica adestrada pela representação do senso comum da realidade. Porém, curiosamente — pelo menos para este espectador aqui —, é que a obra de Kaufman está longe de ser considerada hermética e repelente a um público curioso. É inevitável pensar no choque da audiência da Netflix vendo “Estou Pensando…”, porém, a linguagem do diretor se esparrama e tem essa capacidade de tocar a todos, mesmo que seja pela via do espanto, da estranheza.
A estranheza é um elemento fundamental na experiência de “Estou Pensando em Acabar Com Tudo”. Tudo no longa soa deslocado, confuso, perdido, embaralhado. Isso, distribuído em cenas silenciosas ou de extensos diálogos em ambiente único, causa atordoamento automático em quem não é familiarizado com a dinâmica visual e narrativa de Kaufman, mas ecoa com muita organicidade para o espectador que já se relaciona com o universo kaufmaniano.

Esse universo se encontra em expansão e engloba a identidade e a sua formação como ponto de partida para um mergulho na fragilidade humana diante do infinito. Em “Estou Pensando em Acabar Com Tudo” a investigação do processo formativo da identidade é diferente e disruptivo com certos procedimentos narrativos de Kaufman, porque o espectador passa a ter numa narradora e protagonista feminina e sua visão sobre os acontecimentos — um evento novo na obra de Kaufman — a real força propulsora da trama.
A narradora de Kaufman e Reid se constitui numa transformação contínua ao longo do filme — seu figurino, sua profissão, suas ambições, alteram-se constantemente —, mas com uma resignação plácida que se modela também a partir dos anseios e expectativas de Jake. A Jovem e Jake atuam como espelhos ontológicos um do outro. Ela é a construção idealizada de complementação perfeita para ele, enquanto ele é, para ela, uma projeção dos seus medos e angústias.
A discussão que Kaufman levanta sobre essas zonas de contato das individualidades, e de como se dá o seu processo formativo, tem horizontes expandidos quando o diretor resolve romper com a prisão da linearidade temporal e passa a fazer atravessamentos no tempo. É o que acontece quando o casal enfim chega na pequena fazenda dos pais de Jake. A estranheza aqui passa a ter outra ressonância: a Jovem se vê numa fotografia de Jake criança, e os pais dele (interpretados de forma fantástica por Toni Collette e David Thewlis) passam a ter idades, aparência e temperamentos diferentes em poucos minutos na mesma conversa — o que é muito bem pontuado na forma como essas cenas foram montadas. Nada está destinado à permanência nesse universo.
A centralidade do filme de Kaufman está voltada para essa estruturação da subjetividade — uma investigação que ele faz desde sempre no seu trabalho —, e de como seus fundamentos não são facilmente identificáveis. Mais do que isso: é impossível definir o que constitui a matéria das lembranças porque elas estão constantemente sendo alteradas, editadas e modificadas com o que nos acontece no presente. O passado sempre será passado, no entanto. O que muda e se transforma é o presente, e apenas no presente.
O material de Kaufman em “Estou Pensando…” é a própria natureza mista e una do ser humano, que se move num redemoinho de esperanças que o atordoa, que o empurra para o confortável mundo das ilusões controláveis, como a esperança.
Neste sentido, Kaufman se consagra artisticamente em “Estou Pensando em Acabar Com Tudo” porque, neste longa, eleva seus temas mais caros a patamares novos, de horizontes expansivos, produzindo um filme capaz de fixar no seu espectador a noção da fragilidade de tudo e da necessidade de desprendimento numa vida onde o único acontecimento que se mantém inalterado é o fato de que tudo está sempre em transformação.
“Estou Pensando em Acabar Com Tudo” é um maremoto simbólico que se debruça num tema espinhoso de forma poética; que explora a profundidade dos sentimentos humanos com uma força tremenda, que são captadas por uma direção meticulosa e que desagua em interpretações poderosas, que deixam seu registro na história do cinema. Não estamos falando de mais um lançamento entre milhares de outros, mas do nascimento de uma obra-prima. Kaufman na melhor performance de Kaufman que ele poderia ter feito até agora.
Ricardo Silva é crítico de cinema e literatura.