Opção cultural

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Magrinha

Antônio José de Moura [caption id="attachment_3117" align="alignleft" width="400"]Cultural_1885.qxd Aeich Thimer[/caption] Há seis dias o general Zarastru assumiu o governo da República, abocando sua parte de leão no acordo previamente selado com o diminuto e misterioso comando da ditadura de revezamento de generais no poder. De óculos escuros montados no narigão de pera, durante a posse Zarastru presidiu solenidades e festejos castrenses, sempre escondido atrás de vidros à prova de bala e protegido por aparato de segurança digno de bunker de todos os ditadores, caso eles se agrupassem para formar um único centro de decisão na Terra. Cercava-o quantidade quase inverossímil de homens e de armas, capaz de guardar a Cor­dilheira dos Andes e abater até mesmo um inseto que quisesse voar sem sua permissão sobre ela. No domingo posterior à posse daquela casca-grossa que até então detivera a chefia do exército, aproveitamos o telão recém-instalado no Cascatinha Bar Show Dançante para permanecermos sem maiores riscos e por algum tempo juntos sob o pretexto de assistir à que, dependendo do resultado, seria a partida final do campeonato carioca de futebol. Vasco e Flamengo, o clássico dos milhões. Quase todos tínhamos televisão em casa, mas deliberamos nos reunir em torno da 24 polegadas do cascatinha porque ela nos permitiria, antes e após o jogo, conversar de assuntos prazerosos — peixes, mulheres, cardumes de uns, escassez de outras, pescaria, caça, imponderabilidades climáticas — e confraternizar, apesar das emoções dentro e fora de nós exasperadas, tão exasperadas quanto as cigarras de um poeta cujo nome esqueci. Refiro-me às emoções soltas em campo, nos pés dos artilheiros e no berro da torcida, cujo contágio e pressão mantínhamos como panela a custo tampada, enquanto, à guisa de água, deitávamos cerveja na fervura, fosse rubro-negra, ou cruzmaltina. No grupo, felizmente não havia nenhum pinguço, somente homem de conceito e respeito. Na tela e no Maracanã tremendo de gritos e de gente, um jogo de arrepiar. Final: 1 a 1 — resultado que transferiu a decisão do campeonato para o próximo domingo. Ainda bem, pois vivíamos naqueles dias entorpecidos de medo, atormentados por imprevistos e sobressaltos, de modo que um Vasco e Flamengo caía do céu como uma espécie de comoção compensadora e talvez providencial para os nossos nervos exauridos. O Cascatinha Bar Show Dan­çan­te fica defronte à Praia da Farofa, um nome que veio calhar bem, devido encontrar-se ela ulteriormente infestada de turistas, de cocô e da promiscuidade dos turistas. Com o tempo, de tal modo suas águas foram afetadas que mudaram de cor e ainda se veem obrigadas a aguentar a impostura dos jet-ski e da cáfila de imbecis pendurados em telefones celulares e outras engenhocas eletrônicas. Naquela época porém nem fedentina era tanta, nem o ar se encontrava tão emporcalhado. Do Cascatinha, construído sobre uma elevação, descortinava-se todo o movimento do porto de Aruanã, já então meio frenético na temporada, mas de certo modo calmo, quase tranquilo, nos mais períodos do ano. A vista se fazia de tal maneira magnífica que, debruçada com seu dono de uma das janelas num cair de tarde, a imaginação se deixava levar rio abaixo ou rio acima, até se perder na linha do horizonte, a crepitar no incêndio de crisântemos e begônias de pura substância etérea, celestial — um incrível, verdadeiro espetáculo de cores projetadas do paraíso original, antes da queda do homem: o pôr-do-sol do Araguaia. Também o nascer do astro-rei em nada diferia do sol-posto, exceto que em vez do lento mergulho parecia levantar-se devagarinho e no entanto poderosamente das águas, noutra metáfora de luz ampliando-se em bola de fogo colossal — quiçá o olho de Deus. Antes de transladarem o lixo e a loucura do que julgam progresso para cá, representado até por boates e discotecas que enchem o ar e as madrugadas de relinchos à laia de música, a cidade oferecia la­zer noturno natural, sadio, que não degradava a paisagem nem o sono das gaivotas. Aruanã era a réplica do Éden. Sem tirar nem pôr. O Cascatinha Bar Show Dan­çante tinha muito de bar e nada de show dançante, salvo de tempos em tempos um bailezinho-família no salão alugado a preço simbólico por ranchos de rapazes e moças, determinados a angariar fundos para algum acontecimento de peso nas efemérides da cidade, incluindo as religiosas. Pertencia a Arióbulo Trinchinchelo, alcunhado o Jacaré. Entre as naturais da terra, ninguém compreendia porque lhe pespegaram e Arióbulo sustentava o sáurio apelido, que assentaria melhor em sua grandalhona cara-metade, a senhora Adrianola. De outro lado, bem considerada as coisas, ninguém também teria peito para chamar a jacaroa de jacaroa, mesmo tratando-se visivelmente de uma espécie aruá gigante de saia, braba como dez leoas, de traseiro que nem dois braços longos dariam conta de abarcar, as narinas salientes, convulsionárias, resfolegantes, ruidosas, e os bugalhos do globo ocular lembrando limões galegos, e dos grandes, dando a impressão de plantados no cocuruto e não perto do septo nasal, se vistos no lusco-fusco da noite ou da manhã. Sem falar nos dentes preênseis, fortes como palhetas de aço e cortantes feito facas. Enfim, uma crocodilona, uma calangona d’água das mais ferozes e temíveis. Virago? Machona? Já excogitaram que sim, porém sem um fiapo de prova a favor. No entanto, tirante este aspecto, saltava aos olhos que Adrianola ilicitamente se livrara da alcunha aderida ao marido, ao passo que nele cairia — justo como dois dedos no nariz — o apelido de Camaleão; além de poltrão, ou da impressão de poltronice que emitia, percebia-se que o mimetismo do mocorongo moleirão derivava dos humores da mulher: de manhã, quando ela amanhecia de cara fresca como as hortaliças no meio das quais se metia, regando, estercando, exterminando lagartas e outras pragas, Arióbulo Trin­chin­chelo se disfarçava em verde, contemplando-a com olhos esgazeados; de tarde, geralmente, Arióbulo punha-se todo cinzento, tal e qual o humor de folha seca da patroa. Noutras horas, a cada hora, o paspalhão assumia a impreterível cor correspondente às disposições e tonalidades de espírito da robustona, inclusive a cor negra, mal a noite caía ou quando a alma dela se fingia de enlutada. Arióbulo Trinchinchelo deveria ser coroado imperador dos seres que desembarcam no mundo com a finalidade única de não incomodarem nem serem incomodados por nada e por ninguém, pois tudo o que pediram a Deus foi um lugar em que se encostar, uma árvore que lhes dê sombra a ignorar sua presença, não ligando a mínima se eles escorregam um pouquinho para apanhar qualquer restiazinha de sol refratado dos galhos. E com a cabeça tomada de largo pensamento: que à noite podem com tato escalar-lhe o tronco, trepar nela, em busca da forquilha na qual vão se enganchar. Dona Adrianola era a árvore da vida de Arióbulo Trinchinchelo, o (sob protestos) Jacaré. E ela, com efeito, o deixava em paz no seu canto, pela recíproca razão de que ele não a estorvava em seu objetivo feminino (embora vigoroso) de mandar. Não obstante o jeitão e disposição a de jacaroa, ou machona, que infundia medo despistado em respeito ao redor, especialmente nas crianças e nos adventícios, dona Adrianola encarava vários aspectos da existências com ternura, e às vezes os envolvia em amor, conquanto fossem um amor e uma ternura tão ásperos por fora que quase sempre permaneciam impercebidos aos olhos que a observassem apressados. E já que falar sem pensar é atirar sem apontar, falemos com cuidado e devagar: sem pôr a mão no fogo, porque as aparências não se cansam de iludir, no fundo dona Adrianola nada possuía de lésbica, mulher-macho ou fanchona. Tão durona pros demais, Adrianola se tomou de amores — um amor terno e derretido de mãe — por sua sobrinha-neta, Mágora, a Magrinha. Mágora, a Magrinha, nasceu aqui, à beira do Araguaia, fez o primário no antigo Grupo Escolar Modelo e depois se mandou pra capital, onde estudou tanto quanto um doutor de Salamanca. Ou mais. E como quem muito lê, treslê, desde o ginásio Mágora, a Magrinha, principiou a manifestar ideias esquisitas, arauta de utopias, porta-voz de verdades e coisas tiradas a proféticas — destoantes; Gogó de Ouro, eis o epíteto que lhe aderira à identidade como o sol à flor, o verde à água do mar; os jornais a chamavam assim, exaltando-lhe os méritos nas artes oratórias, nas quais Mágora ganhara todos os concursos e largos espaços na mídia. Achava língua para tudo, e tão bonitas palavras. Aliás, as palavras lhe acudiam com uma presteza de súditas, uma obediência carola, parecia que Mágora, a Magrinha, nem precisava chamá-las ao pensamento, posto se acharem ali, prontas a lhe sair pela boca, ordenadas, ordeirinhas, cada qual em seu lugar, encaixando-se umas nas outras, como flores num buquê. Daí por que em fulgurações de metáforas as frases cascateavam em sua voz qual água que se derrama em cachoeira a compor cenário que não parece deste mundo, de tão sublime, refratando o arco-íris; e de fato ditas por ela tinham cores, as palavras, cores fortes e harmonia, e também muito vigor. Em resumo: poesia. Deus, vê-la discursando em praça pública era o mesmo que ver um nascer ou pôr-de-sol no Araguaia, impossível descrever tal fenômeno de emoção irisada. E aí, na volúpia da empolgação, ela se transfigurava, e tarari, tererê, que queremos pão e justiça, que a terra é de quem trabalha e não de quem a domina, e liberdade, e oportunidades, e igualdade de direitos para todos, e não sei mais o quê. Mesmo versando matéria de vasta controvérsia, todos ou quase todos dela se encantavam. Muito meiga e fragilzinha, nestes momentos Mágora, a Magrinha, se agigantava, feita de seiva e calor. Tinha olhos castanhos claros, cabelos da mesma cor, rosto ovalado e bonito, mamilos que se adivinhavam durinhos e róseos sob a blusa encarnada, um delta-de-vênus que por nunca exposto acendia sonhos de posse e também de imaginação pictórica, tez de um branco quase diáfano, corpo bem proporcionado e belo apesar de carecer um pouco mais de suculência. E lábios nem muito finos nem tão carnudos, os quais se abriam em sorrisos que qualquer um gostaria de sequestrar e guardar como tesouro ou talismã. Dela os homens se agradavam, pois nascera pra agradar. Tornada insigne em altos estudos e altíssimas virtudes, Mágora, a Ma­grinha, comandava a ligas dos universitários, na capital da província. Tão logo os generais instauraram a tirania de farda, à qual e da qual se serviam os lambe-botas civis, Mágora, a Magrinha, viu-se de súbito dentro de um torvelinho, privada até à morte de um minuto de sossego. Primeiro prenderam-na e a conduziram para uma fortaleza militar distante, a Fortaleza de Lajes, em pleno Atlântico, mas decorridos seis meses de muita lábia e artimanhas, ela com alguns companheiros, e também com a cumplicidade do chefe da guarda e de dois barqueiros, conseguiu render as sentinelas e pisar clandestina em terra firme, no Rio de Janeiro. No curso de seis anos, percorreu labirintos, socada em ocos de perigos clandestinos, sempre procurada pela Organização dos Vigilantes de Mil Olhos (OVMO), a rede de espionagem criada em 1964 como o braço armado e tentacular do regime. Por milagre, e por ventura outros pretextos que produzem os milagres, oculta no breu de certa noite de setembro, enquanto os de Mil Olhos a supunham no estrangeiro, Mágora, a Magrinha, veio ter novamente a estas plagas, metida em disfarces de transformismo de atriz. A tia Adrianola a recebeu e a enlapou em locais tão ignotos e invioláveis, que a julgou trancadinha a sete chaves, podendo afiançá-la invisível. Mas céus! no quarto ano de esconderijo araguaiano, Mágora, a Magrinha, caiu nas unhas dos opressores, por artes de um infame delator, alcunhado ulteriormente de Judas Dedo-Duro. A Judas Dedo-Duro reservou-se destino em essência igual ao do seu avô Iscariotes, o que ao enforcar-se assistiu ao próprio derramamento das entranhas e cujas trinta moedas da traição serviram apenas para comprar campo de sangue, consoante o evangelista e a predição do profeta Jeremias. Ignora-se se morrendo ou não de remorso, mas decerto já picado de remorso, e desprezado de todos, num beco escuro Judas Dedo-Duro amanheceu certo dia casado com a mulher da foice, e de forma ignominiosa: a boca cheia de formiga, a cabeça espatifada por paulada semelhante em efeito a dez cachamorradas de feroz borduna xavante. Há simulacros de conjecturas rebuçando a certeza de quem desferiu o golpe daquela morte vindicante e talvez necessária. Sabemos e conhecemos muitíssimo bem quem a executou e, antes, quem a premeditou em seus mínimos detalhes: o mesmo homem e a mesma mulher que mais tarde dariam cabo do chefe de beleguins que entregara o pecúlio da delação ao imundo e execrado Dedo-duro. Mágora, a Magrinha, morreu por excesso de suplícios — ou descuido, sofisma a que davam o nome de “erro técnico”, coisa comum naquela quadra de terror. Mágora, a Magrinha, a quem os algozes preferiram chamar de subversiva, padeceu e sobreviveu às várias modalidades de tortura institucionalizadas, começando pelo pau-de-arara, em que põem a vítima — joelhos dobrados, abraçados e amarrados — dependurada de uma barra de ferro entre dois cavaletes, submetendo-a a espancamentos e outras formas adicionais de interrogatório que não prescindem nem da eletricidade nem de sevícias rupestremente animalescas. Repetidas vezes, Mágora, a Ma­grinha, sobreviveu ao limite máximo do pau-de-arara — três horas —, findo o qual é impossível evitar-se a morte, o que pasmou os próprios seviciadores. Mágora, a Magrinha, sobreviveu às descargas elétricas da máquina de choque chamada triplicemente de pimentinha, manivela e perereca, de cujos terminais se alongam fios ligados ao corpo da vítima, inventada, como se sabe, pela Gestapo, no apogeu do nazismo, e aprimorada nestes trópicos. Mágora, a Magrinha, sobreviveu à polé ou roldana entre contorções e gritos de dor que lembravam os inimigos da Inquisição na Idade Média: pés amarrados por corda que passa pela polia presa ao teto, o corpinho nu suspenso do chão, de cabeça para baixo, espancado, chutado, queimado com pontas de cigarros, retalhado a gilete e navalha, e ainda por cima acicatado pelos disparos elétricos da máquina de muitos volts. Mágora, a Magrinha, sobreviveu às torturas químicas, ao pentotal sódico, o soro da verdade, às torturas em cuja composição entram o éter e o amoníaco, ao torniquete que é o círculo de folha de aço ajustado ao crânio mediante mecanismo de rosca e parafusos, os quais, à medida que são apertados, produzem dilaceração encefálica e afundamento, a ponto de obrigar a saltar para fora o globo ocular. Mágora, a Magrinha, sobreviveu à cadeira-do-dragão, poltrona tosca de madeira revestida de metal eletrificado, na qual se viu amarrada despida inúmeras vezes, por correias, enquanto, ao elevar o volume da voz através do dispositivo ligado aos eletrodos e apodado por gracejo carcereiro de “microfone dos shows” (o das perguntas de respostas impossíveis), o torturador aumentava a voltagem das descargas da energia doida por eletrocutar o corpo da prisioneira. Mágora, a Magrinha, sobreviveu ao inferno de ruídos e gelidez de nevasca no negro cubículo dito geladeira, onde prisioneiros enlouquecem sem arbitrar ou sequer se situar no tempo. Um invento de tortura, esse, dos ingleses, mas ao qual os milicos do Brasil, para desfrute e deleite dos pinochets do continente, acrescentaram melhorias. Mágora, a Magrinha, sobreviveu ao telefone das manzorras em concha de gorilas que lhe arrebentaram os tímpanos. Mágora, a Magrinha, sobreviveu à palmatória, aos chicotes, sobreviveu aos pedaços de madeira, às cordas molhadas, aos cassetes de borracha recheados com cabo de aço — os infames e infamantes “pênis-de-boi” — que lhe introduziram na vagina, no ânus e em outras partes. Mágora, a Magrinha, sobreviveu a tantas formas de tortura, incluindo velas e cigarros acesos para sua pele apagar, socos e pontapés, agulhas e estiletes. Mágora, a Magrinha, sobreviveu a todos os métodos inomináveis de esfolamento e fraturas, físicas e morais. No entanto, Mágora, a Magrinha, cujo calvário por ineptas as palavras se recusam a descrever —, Mágora, a Magrinha, veio entregar a alma ao Criador exatamente na mais primária das práticas de suplício — a do afogamento. No poço — o nosso poço, ou o que pelo menos deveria ser o nosso poço. Adicionaram-lhe pedras aos pés. Amarrada à corda de náilon deslizando através de roldana suspensa de uma galho de árvore a sombrear o rio — remanso de afluente do Berocan-Araguaia —, calcula-se que durante horas imergiam e içavam-lhe o corpo das águas no último limite do fôlego, a fim de que ela confessasse o que eles inventaram para ser confessado; logo, o inconfessável. Decerto — e esta não é uma dedução fora de lógica — Mágora, a Magrinha, pedia a morte, suplicava pela morte, desde que lhe pusesse fim aos padecimentos sem termo. Contudo, embora sofrendo muito, a vida no corpo de Mágora, a Magrinha, relutava em abandoná-lo. Num tempo contado em séculos, descontrolados, ensandecidos, os verdugos continuaram infligindo a Mágora, a Magrinha, as imersões, ou naufrágios compulsórios. Até que, Cristo, vupt! quando a içaram, numa dessas imersões de quase morta, para nova rodada de perguntas, a vida havia abandonado aquele corpo de menina nua. Um corpo só empanzinamento hidráulico e hematomas, um corpo que vagamente lembrava a inquilina que o habitara. Conforme a praxe em imprevistos assim, simularam e propalaram um suicídio tão inverossímil que nem os jornais sob censura acharam jeito de veicular a versão oficial. De modo solertemente análogo ao empregado na prisão, os esbirros converteram na calada da noite nossa pobre igrejinha em cenário do autocídio forjado e levado a efeito de maneira tão ou mais absurda que a utilizada para a expedição e conhecimento público do atestado de óbito com que pretenderam legitimar aquela morte. De crocodilo ou autêntica, ambas inconcebíveis numa mulher de seu feitio, dona Adrianola jamais deixara escapar uma lágrima. A mulher que nunca chora — oxalá esta lhe calhasse como definição exatíssima. Pois ao recolher o corpo desfigurado de sua sobrinha-neta — e ela o buscou sozinha, junto ao altar, apesar de a cidade inteira encontrar-se à sua volta, solidária — não escondeu o pranto que os seus olhos vertiam. Talvez fossem lágrimas de toda uma vida, represadas só Deus sabe por quê. Ao romper os primeiros passos, com os frágeis despojos da suicida de fabricação nos braços, cingindo-os como se acalentasse uma criancinha de peito, ela parou três vezes e por três vezes volveu o rosto a fim de encarar a Virgem e o Cristo crucificado nos olhos; deixou tombar dois pares de cordas grossas dos cantos das órbitas, que anularam ou incorporaram o choro regular, ao passo que seus lábios mussitaram algo que somente ela e a consciência divina conseguiram captar e entender. Ao transpor o umbral da igrejinha e ganhar a rua, o marido de um salto colocou-se a seu lado, executando-lhe doravante as ordens com uma presteza e vigor de que ninguém antes o julgaria capaz. — O castigo vem a pé. Mas um dia chega. Então, não ficará um para contar o caso do outro — ela rugiu, após o enterro. Sem poder esperar pelo padre, que nos acudia de raro em raro em desobriga, o corpo desceu à sepultura debaixo de nossas rezas e cânticos. A melodia que mais subiu às alturas, porque mal a encerrávamos alguma voz a puxava de novo, foi “Segura na Mão de Deus”: “Se as águas do mar da vida quiseram te afogar, segura na mão de Deus e vai. Se as tristezas desta vida quiserem te sufocar, segura na mão de Deus e vai. Segura na mão de Deus, segura na mão de Deus, pois ela te sustentará. Não temas, segue adiante e não olhes para trás: segura na mão de Deus e vai”. Ao final, todos choravam, dando-se as mãos e cantando “Segura na mão de Deus e vai”. Ao sairmos da missa de sétimo dia, que a nosso chamado padre Zezinho de bom grado oficiou, Arióbulo Trinchinchelo, tão diferente do Jacaré que conhecíamos no Cascatinha Bar Show Dançante, levou a mão à garganta. Tomamos este gesto ritualístico de quem decepa o pescoço, à maneira maçônica, como a chancela do carrasco à sentença exarada e inelutável. Rotina — De modo que ainda nos encontrávamos no bar de Arióbulo e Adrianola — uns, renitentes, comentando lances do clássico dos milhões; os mais conversando de pescarias e outros leves assuntos — quando o homem chegou perguntando por um tal Anterino. Dissemos que não sabíamos, mas o homem não se conformava. Sobre quem ele era, porém, tínhamos certeza — uma certeza que o homem ignorava. Apesar do tempo e dos diferentes disfarces, a nosso ver inúteis, que agora ostentava, apesar da ausência da antiga careca e dos remotos bigodes grisalhos, o que ante olhos comuns fariam dele um perfeito desconhecido, não havia dúvida de que nos defrontávamos com o chefe dos capturadores que suplicaram e remeteram por outro mundo Mágora, a Magrinha. — Quero que informem onde está o Anterino. — Que Anterino, meu? Aqui não mora nenhum Anterino. — O Anterino, um que tem olho de vidro. Mora nessa rua — o homem insistiu. — Nessa rua, não — alguém protestou. — Nessa rua, sim — o homem disse, limpando a boca com as costas da mão. — Aqui não mora nem Anterino nem João Quirino — outro dos nossos falou. — Conheço todo mundo e posso garantir pro senhor que não tem nenhum Anterino na rua. — Fazendo gracinha, é? Se eu disse que mora, é porque mora; tão querendo acoitar? — o presumido forasteiro gritou; e bateu o copo de dose no balcão. Fregueses distanciados assustaram-se e dois que jogavam sinuca, lamentando o empate que adiara a decisão dos cariocas, quiseram ir embora. — Não vai sair ninguém, sem minha ordem — disse o homem, sacando ao mesmo tempo dois revólveres. — Fechem as portas. Avaliei a situação, sem no entanto encarar o homem que procurava Anterino. Olhava-o de banda e, quando sentia seus olhos queimando meu rosto, disfarçava com o pé, de um jeito bobo, esfregando qualquer coisa invisível no chão. Mas quando o homem olhava para o outro lado, examinava-o com um rabo de olho. Não conheço hipnotizadores, mas penso que o homem era um deles. E os dois revólveres em suas mãos também brilhavam. — Fila indiana. Agora, contra a parede! — o homem ordenou, os dedos ágeis brincando com as armas, como se fora caubói. Obedecemos maquinalmente e houve quem exagerasse, ajoelhando-se com as mãos na nuca, o que parece tê-lo irritado ainda mais. — Não sei o que faço que não acabo logo com vocês — ganiu, acertando uma cusparada na eletrola. Deu um tempo e voltou a lembrar-se do Anterino. — Vão ou não vão dizer onde está o jovem? — gritou, colocando com o polegar um dos revólveres no descanso e apontando-o em nossa direção. Um silêncio de casa sem ninguém. O falso desconhecido tirou o dedo do gatilho e depositou a arma no balcão. Sacou a latinha do bolso e conversou em código. — Câmbio! — concluiu. Cinco minutos depois, homens armados de escopeta punham as portas no chão. Varejaram tudo. Nem mesmo uma agulha teria escapado à revista. — Concluía com êxito, Grande Chefe, a Operação Viver-em-Ordem! — o homem soprou na latinha. — Câmbio! E, virando-se, advertiu que se alguém ali abrisse o bico, para dizer que eles andaram atrás do Anterino, ira parar no poço. O poço, ora, o poço! Por alguma razão, o homem cometera um erro — e talvez não somente um “erro técnico”, para usar a nomenclatura deles — ao mencionar o poço no qual, além de outras vítimas, há anos imolaram Mágora, a Magrinha, porque, não sendo adivinha bem mentirosa, ela não pudera fornecer detalhes, pretendidos pelos desalmados, acerca de certo e inexistente Comando Revolucionário de Resgate do Ideário Trotskista, em cuja direção fictícia igualmente a encastelaram. De qualquer modo, por mais perdido no tempo e sossegado no rio, era de causar arrepios para que servira o poço. — Ou então será esfolado vivo — o homem avisou, antes de ir-se com os outros, lembrando que o que acabavam de fazer era coisa banal, sem importância: mero exercício de rotina, para manter os rapazes em forma. Antes, porém, de eles se irem, do fundo do corredor que dava para a cozinha, dona Adrianola olhava com fixidez absurda o homem da latinha falante. Quando ele se retirou com os outros e suas ameaças, ela escarrou satisfeita e chamou o marido para uma conferência. Os dois sumiram de nossas vistas, lá pros fundos, na cozinha. Antônio José de Moura, escritor, é autor de “Sete Léguas de Paraíso” e “Umbra”.

Tortura e genocídio em Dostoiévski

“Recordações da Casa dos Mortos”, romance semiautobiográfico de Dostoiévski, mostra os suplícios físicos e psíquicos dos que foram segregados da sociedade e confinados em uma prisão, revelando a degradação humana, comum a todos os sistemas prisionais

Manoel Bomfim e o antilusitanismo

O historiador Manoel Bomfim foi um desses pioneiros a se debruçar sobre os paradoxos do Brasil República. Anglófono responsabilizava Portugal como fonte do mal que assolava o Brasil

“O Espetacular Homem-Aranha 2”: Stan Lee não merecia isso

Júlio Pereira Especial para o Jornal Opção [caption id="attachment_2510" align="alignleft" width="440"]Andrew Garfield interpreta Peter Parker em “O Espetacular Homem-Aranha 2” Andrew Garfield interpreta Peter Parker em “O Espetacular Homem-Aranha 2”[/caption]   O Homem-Aranha é, pos­sivelmente, o herói mais interessante das histórias em quadrinhos, em boa parte pela relação direta entre o Aranha e o Homem, ou seja, o modo como lida com sua vida pessoal sendo pobre, órfão e excluído no colégio, ao passo que precisa pagar contas, lidar com a namorada e estudar, enquanto vilões tentam destruir sua Nova York natal. Esse conflito fez muita falta no reboot do personagem nos cinemas em 2012. Faltava muito do lado pessoal de Peter. Os roteiristas parecem ter atentado-se a isso ao escrever esta continuação, “O Espetacular Homem-Aranha 2”. No entanto, continua inexistindo toda a dramaturgia intrínseca ao personagem. Compreendam: Marc Webb é o responsável por “(500) Dias com Ela”, uma comédia romântica metida a espertinha. Sendo assim, dá-lhe diálogos pretensamente meigos, que parecem retirados de alguma sitcom genérica norte-americana (especialmente a conversa entre o casal sobre seus defeitos), resultando em momentos constrangedores. A obra resume-se a esse romance tacanho que nunca passa da superfície das comédias românticas hollywoodianas, justificando-se todas as atitudes moralmente duvidosas de Peter em nome desse amor. Todo o conflito interno do personagem em relação à sua promessa ao pai de Gwen Stacy é rapidamente esquecido, assim feito a imaturidade do protagonista em nome do modelo de amor romântico. E o momento no qual o falecido policial aparece na tela numa cena-chave busca, por meio de uma obviedade inevitavelmente cômica, impor um peso moral ao que acontecerá em breve, tendo seu efeito anulado por uma montagem que não dá espaço a essas emoções. Se o arco dramático de Peter Parker é pobre devido ao foco excessivo em um romance pouco convincente, fazendo pouco caso dos seus dramas com os pais, o roteiro sofre do mal do “cinema freudiano”, no qual tudo nos personagens precisa ser explicado: seus traumas de infância, suas marcas na vida. No caso dos vilões, há essa necessidade latente de justificar sua maldade ou ao menos tentar fazê-lo, o que poderia conferir alguma substância ao personagem Electro, uma vez que há um fundo social interessante: um operário pobre, invisível aos olhos da sociedade, emocionalmente marginalizado, tendo a chance de ser percebido, ser importante, assistir a seu rosto na televisão. Já o Duende-Verde surge do nada: sua amizade com Peter nunca se mostra devidamente concreta e sua vingança nunca soa crível, tornando-o absolutamente descartável. Dito isso, vale ressaltar serem duas promessas de personagens, não indo além disso, uma vez que os antagonistas de “O Espeta­cu­lar Homem-Aranha 2” não dizem a que vieram, jamais recebendo importância narrativa, saindo de cena logo após entrarem. Não há um senso de perigo instaurado ao herói, sobrando apenas o romance adolescente e risível. Essa necessidade de Webb de ser moderninho recai diretamente nas cenas de ação. Chamando sempre atenção para a câmera, com vários planos cuja única finalidade é o exibicionismo puro, o diretor parece encarar o filme como um jogo de vídeo-game. E se deslumbra tanto quanto um garoto que acaba de ganhar um Playstation. Não bastassem os efeitos demasiado artificiais (bem mais do que o padrão dos blockbusters), tornando tudo muito inverossímil, há nas batalhas uma sequência de ações interligadas, interdependentes, como se ele precisasse realizar uma ação para passar à próxima, frisadas sempre com slowmotion, algo como um etapismo — lembrando bastante a estrutura narrativa do game “God of War”. Aliás, essa obsessão pela câmera lenta — que sempre trava a ação — chega a fazer rir em uma sequência crucial para o filme, já no desfecho, em que, além da teia assumir a forma duma mão, o que já seria cafona o suficiente, uma trilha apelativa invade a cena, contribuindo para ampliar a vergonha alheia, esvaziando todo o potencial efeito dramático da situação. Investindo em um Homem-Aranha cômico, assim como nas HQ’s, Webb pouco compreende essa veia humorística do personagem, parecendo impor a todo o momento esses alívios de comicidade que, embora bastante eficientes em vários momentos (as gags, quando funcionam, são o ponto alto da obra), podem ser bastante anticlimáticos se inseridos fora de hora. E fica muito nítido quando as piadas são orgânicas e quando forçadas pelo roteiro. Esse clima humorístico, infelizmente, não dura muito, cedendo lugar ao “estilo Nolan” de filmes de heróis, sempre muito sombrio e carregado — o que nunca se sustenta, devido às várias cafonices da obra. Tanto pela vontade de fazer tudo se interligar, dar sentido a cada detalhe na trama e arredondar o filme a ponto das várias conexões se tornarem chatas, quanto pela estética de vídeo-game, “O Espe­tacular Homem-Aranha 2” entra, junto com seu antecessor, numa pilha de filmes de Holly­wood com nada a oferecer. Falta aquele espírito heróico tão caro à trilogia de Sam Raimi, capaz de me fazer cair em lágrimas com uma cena simples do Homem-Aranha salvando uma criança no meio de um incêndio. Impressionava-se pela simplicidade, não por pirotecnia desenfreada. Júlio Pereira é crítico de cinema.

É improvável, mas Golias não era o favorito em sua batalha contra Davi

Livro de Malcolm Gladwell narra, por meio de histórias adversas, como o pastor de ovelhas venceu o gigante filisteu. Obra mostra o modo como o mundo é alterado por pessoas que venceram grandes desafios

Dias perturbadoramente perfeitos

Raphael Montes dá um sopro de frescor no gênero policial nacional, substituindo a banalização da violência por choque e terror psicológico bem-construídos

O que você viveu ninguém rouba

“Nem mesmo você, por mais que se esforce, consegue roubar a si próprio. Você é seu redentor e algoz”

Federer, Morrissey e Roberto Carlos: traduzindo ou induzindo?

Algumas traduções demonstram claramente uma falta de cuidado e, muitas vezes, segundas intenções na reprodução de afirmações

Uma tomografia da Amazônia humana

Com sua natureza fascinante e temível, e seus habitantes inconclusos, os contos de Ray Cunha têm entre si uma espécie de amarração oculta, um cipoal encoberto pela floresta de palavras

Os mortais

cul5Delermando Vieira Chega um tempo em que as ervas medram, crescem como praga invadindo o quintal, o pátio, trepando, com fôlego, nos muros, nos vãos e caibros da casa; e é nesse tempo que as flores, e suas pétalas, murcham e mais parecem faces chupadas, secas em covos de melão, exalando, no pó do ar ferroso, seu aroma de pudim retraído, regado a louros de um sopro que, pastoso e ferido, aderna à lágrima dos arvoredos em chumaços de chapéus sombrios; chega um tempo em que o existir é o inexistir, em que o real, de tão real, real não nos parece, em que, em suma, em nossa porta ouve-se o soar do bater do punho de um espectro visível, cruel e insensível em seu modo, em sua troupe de arcanjos agônicos; e é nesse tempo, justamente nesse tempo, que a angústia nos toca, nos sangra, inaugurando em nós, a farsa do abandono, dos dias sem sol, sem chuva; e é por isso mesmo, nesse tempo, que a dor de estar ausente, embora apensa aos “slides” das horas, à vida em libélulas de som, nos visita, com sua legião grega e seus soldados precisos em suas lanças, em seus elmos, em suas cnêmides; e não nos é concebível a lâmpada de elidir o que de ruim nos é imposto, ainda mais e quando elas, as urtigas, povoam nosso corpo e em nós fazem vibrar a nênia de uma raça primitiva, oriunda, é certo, dos confins da Mongólia; e é aí, meu Deus, que o ser não sabe ser e, por ser o que já não sabe, passa ser a força e os elos da serpente do Nilo, a naja, talvez, ou a víbora que, por Marco Antônio, um dia mordeu Cleópatra. Chega um tempo em que a nossa casa é pura teia e nossos móveis, abandonados, frouxos no escuro de suas formas, encostam-se pelos cantos, e não há vivalma que ali não pressinta o defluir da vida, do que pensa ou pensou; chega um tempo em que tudo é vácuo, e nada é explicado a nada; e fora, ou é, nesse tempo que se encontrava eu, Pedro, Ana , minha irmã, e Thiago, meu pai; e fora muito antes desse tempo que Maria, minha mãe, deixou de existir, se é que existir era estar ali, era estar aqui, era “nascer” para além do sol, do abstrato em que nossos olhos cabem; e fora, ainda, por esse tempo afora que meu pai, juntamente comigo e Ana, pôs-se a ruir na faúlha do que naqueles dias se alongava; e vendo ele que as teias, as traças, os escorpiões, a tudo cobriam, e sentido, no peito, o vazio se erguendo, se construindo, à sonata empírica dos bruxos, das sombras em estado grávido, entendeu que a nós fora dado o direito livre de escolha, entre existir e inexistir. Crente, então, nessa fé, e diante de tamanho desespero, desceu conosco àquelas terras vermelhas, por dentro da mata vermelha, à espera de ali encontrar a grande fonte, ou seja, o verdadeiro sentido de existir; e ficamos, assim, vagando em círculo; e, quanto mais andávamos, mais a mente se nos apagava, se nos diluía. Vagamos durante vários dias até que, de repente, nos vimos debaixo da porta, da gigantesca porta que dava entrada para o vale, o fantástico vale de luz e ilusões, que mais parecia um pulmão se inflando, se aquecendo, num processo de inspiração e expiração. À medida que avançávamos, à medida que o tempo chegado ficava para trás, em nós o coração se encantava, enraizava-se com sopro de flautins dourados. Com muito susto, assombro que aos deuses desperta, flagramo-nos no colo daquele reino, daquele vale enunciado em framboesas e alfazemas, onde, carregadas, as jabuticabeiras pendiam-se frouxas, sedosas, e as parreiras, enquanto verdes e molhadas, exsudavam em seu suor, em seus pelos de cachos copuliformes, sensíveis, enfim, ao vento amaciando as têmporas, os figos, num estremecer de espumas oleosas; a luz, naquelas bandas, era dócil, tênue como a face de um deus; e era dela, de sua aura esmagada em ponches de maçã, do ventre de seus fios em marfim, que a Grande Mão se edificava e em salmos de sangue proclamava a aurora com sabor de pêssegos carnudos; e fora lá nesse tempo, muito longe do tempo chegado, que encontramos a fonte da magia ocidental, dos pífaros aguados em percucientes de brisa, a jorrar a água que deifica e fortalece a herança da alma na Terra; e fora dela, do esguicho de suas águas em arco-íris e, terminantemente, à poeira luminosa vazando as asas das crisálidas em festim, que bebemos, saciamos nossa sede; mas, como no espaço se concebia, se determinava, não nos era permissível assentar morada por lá, uma vez que, depois de estarmos alimentados, aquele vale se inchava, se inflava, feito balão, pressionando-nos, fazendo com que nos evadíssemos, fugíssemos de seu interior; então, depois de havermos matado nossa sede, reativado nossa força, a este tempo chegado voltamos; e, passado algum tempo, tudo dentro deste plano se nos voltava a violar, e nos fazia arder em lenhos de resinas incendiadas. Dia-após-dia, retornávamos à fonte, logo que nos víamos de novo enfraquecidos. Como sempre, ela nos dava de beber, expelia do espírito de suas entranhas; e, assim, meu pai, naquele vale, erguia, primeiramente, suas mãos em forma de cuia e dela recebia o alento, enquanto eu também o seguia, acompanhado de perto por Ana; e vários dias ficamos voltando àquele reino de magia ocidental. Um dia, não me lembro quando, sei que corria no céu uma fumaça escrita em cuneiforme, retornamos à fonte; mas ela, em sua sabedoria transcendental, não mais verteu de sua água a meu pai. Depois de levantar as mãos em cuia, muitas e muitas vezes, ele, enfraquecido e estonteado, recuou comigo e minha irmã àquele tempo chegado. Noutro dia, pela mesma hora, volvemo-nos a essa fonte; no entanto, nada de água, alento, para meu pai; jorrou ela apenas para mim e Ana; mais enfraquecido, meu pai retrocedeu a este tempo chegado; e, ocorridos os dias, mirou-se ele no espelho empoeirado da sala sufocada de ervas; porém, sua imagem não se refletiu; abatido, destituído de energia alguma que pudesse faze-lo resistente, olhou para nós com olhos de sabão em pó, empacotados e brancos, indo, em seguida, em direção à porta, ao tampo-de-abertura deste tempo chegado; como quem é apagado pela borracha da mão se achando no erro, desapareceu, esquivou-se entre as sebes do lugar, e nunca mais o vimos! Uma semana depois, quando Ana e eu (ao voltarmos daquela fonte ocidental) estávamos sentados à porta da casa tomada por ervas, uma pomba luminosa veio e pousou no parapeito da janela ardida em feixes, em aros de estanho vil, e, ali, como se nos conhecesse há muitos anos (e seus olhos muito se assemelhavam aos de meu pai), ficou a nos observar, vigiando, atenta, nossos gestos, nossos movimentos; era bastante suave seu ruflar, bater de asas e, no seu voo de luzes, preocupou em estar sempre perto de nós; mas os fluídos emitidos de sua aura, do eixo de seu ser, não lhe premeditavam que em si Sat era sadia, que em si Ananda ainda era leve, frágil como casca de ovo. Chega um tempo em que a desolação é total, em que nunca sabemos se já estamos, ou estamos, em que nos vem o pensar de onde viemos e até quando iremos; e fora por este tempo, e devido a ele somente, que íamos todos os dias àquela fonte ocidental, numa eternidade que só o Céu e a Terra hão de provar; e, por não compreendermos este fato, ansiávamos o ápice da existência, mesmo que fosse por um segundo, mesmo que nos fosse árduo o instante de admitirmos que não estarmos vivendo e, por imaginarmos assim, dessa maneira tal, é que fomos à fonte, naquele meio-dia de setembro, com o intento de lá sorvemos o alento; para nossa tristeza, nossa desilusão, ela não mais jorrou para Ana e, como espectadores do Infinito, postamo-nos ante ela estáticos, e mudos, na persistência, ou espera, do ato de Ana, de sua mão pênsil em forma de cuia; a fonte naquele dia jorrou apenas para mim; desencantados, retornamos à tarde a este tempo chegado. Voltamos, noutro dia, à fonte, àquele mundo de fascínio e encanto, mal o sol surgira; no entanto, ela, a fonte, jamais jorrou para Ana; e não me era possível ceder de meu alento, ou seja, do que ela me ofertava, à minha irmã, pois o que me era dado era dado rapidamente, e, rapidamente, eu deveria bebê-lo; não havia tempo para ceder a ela; e Ana, então, uma semana após, quando esgotada na sala da casa em ervas, mirou-se no espelho em que meu pai antes se mirara, e sua imagem também sequer se refletiu; sentindo-se abatida, feito um elefante que, pressentindo a morte, a vida, chegando, caminha no rumo de seu cemitério, ela desapareceu, sumiu na névoa, no calor das tabocas ardendo. Vencidos os dias, outra pomba, voando em tênues raios de luz, pousou no parapeito das janelas em ervas, e ali permaneceu, o coração pulsando na pele iluminada do peito; eram, agora, duas pombas em luz sutil; e uma delas, se estou certo, tinha o perfil igual ao de Ana; aquilo me fez pensar no que era existir. Chega um tempo em que tempo é de repensar, e é deste tempo que ora falo; a quem interessar, deixo escrito no pano de algodão branco da mesa: há dias vou àquela fonte ocidental, e ela até hoje nunca me negou seu alento e em mim, por mais que eu não queira, Ananda é forte, vibra como lírios no campo, enquanto Sat se me soa ininterruptamente; por mais que eu procure, não compreendo ainda o que é existir, sobretudo porque Thia­go e Ana já não se fazem mais presentes, e a solidão, por cá, é abismo, ferrete imóvel no ar, entre os vãos dos caibros; e nada é mais triste do que não ter alguém pra conversar, dizer alguma coisa, a não ser aquelas duas pombas, sobre o parapeito da janela, que não sei se são ou se realmente são; e o pior de tudo é ter, ainda, a amarga certeza de que aquela fonte ocidental jamais me negará seu alento! Derlermando Vieira é escritor. via Revista Bula

Lançamentos

De 27 de abril a 3 de maio

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Para o escritor argentino a ideia defendida por Simone de Beauvoir, para quem “ninguém nasce mulher, torna-se”, não respeita as diferenças primordiais entre o feminino e o masculino, pois transforma homens e mulheres em opções culturais, e não físicas e psicológicas

Por que conhecer o verdadeiro Big Brother

“1984”, de George Orwell, oferece uma visão atormentadora dos rumos políticos do mundo e uma reflexão de vanguarda sobre a condição humana e a possibilidade de desumanização da contemporaneidade

O diário intimista e melancólico de Cyro dos Anjos

Em “O Amanuense Belmiro”, obra-prima da literatura brasileira que completará 77 anos em 2014, Cyro dos Anjos constrói uma narrativa em que as peripécias são pretextos a longas reflexões sobre a natureza humana

Chato, longo e equivocado

“Entre Nós”, de Paulo Morelli, mistura reflexões ocas e dramas de classe média