Manoel Bomfim e o antilusitanismo
26 abril 2014 às 15h17
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O historiador Manoel Bomfim foi um desses pioneiros a se debruçar sobre os paradoxos do Brasil República. Anglófono responsabilizava Portugal como fonte do mal que assolava o Brasil
Adelto Gonçalves
Especial para o Jornal Opção
Por que ler (ou reler) Manoel Bomfim (1868-1932) quase um século depois? Porque, entre outras razões, esse médico, historiador, psicólogo e professor, nascido em Aracaju, foi um dos primeiros a pensar o Brasil. Por isso, ao reeditar pela primeira vez “O Brasil na História: Deturpação das Tradições, Degradação Política”, escrito em meados da década de 1920 e publicado em 1930, a Editora PUC-Minas, em parceria com a Editora Topbooks, presta um relevante serviço à história e à cultura do país.
Podemos discordar de muitas ideias de Bomfim, que, naturalmente, como todos nós, foi escravo do “espírito do tempo” (Zeitgest), de que dizia Hegel (1770-1781), como bem observa a historiadora Mary Del Priore na apresentação que escreveu para esta segunda edição do livro, mas não deixaremos nunca de nos solidarizar com ele em suas observações sobre o Brasil de sua época, como resultado de três séculos de colonização e 67 anos (de 1822 a 1889) de um Império que pouco mudou os costumes e práticas colonialistas e uma República que, nascida sob o tacão de militares, em iniquidades não tem ficado atrás do regime monárquico.
Tal como hoje, éramos uma nação atrasada, com uma parcela majoritária da população mergulhada no analfabetismo — hoje, diríamos analfabetismo funcional —, bucha de canhão para os conflitos que as oligarquias arrumavam e até para a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), além de mão de obra praticamente escrava (ou neocrava) e desqualificada para o trabalho no campo e nas grandes cidades que então se formavam.
Anglófono, Bomfim via em Portugal toda a fonte do mal que assolava o Brasil. Dizia que, antes da expansão colonial, “a burguesia de Londres havia abatido o mais formal no poder da coroa”, entendendo que a revolução liberal de 1689 havia acabado com os restos de privilégios da aristocracia inglesa. Por isso, segundo ele, ao contrário de Portugal, onde a aristocracia continuou a usufruir de todos os privilégios sobre a uma massa ignara — reduzida a se resignar com as migalhas que os chamados nobres mandavam atirar aos porcos ou a emigrar —, a Inglaterra não se degenerara, construindo um regime de estado “o mais livre no mundo moderno”.
O antilusitanismo de Bomfim é tão acendrado que, para ele, os 60 anos do Portugal espanhol constituem o período de formação essencial do Brasil. “Mas, inacabada essa formação, quiseram os fados que houvesse um Portugal restaurado, para viver exclusivamente desta colônia. E esse Portugal, de mercantis degradados, entregue à saudade má dessas Índias perdidas; esse Portugal, a projetar sobre o Brasil a sombra sinistra do seu declínio, deu-nos todos os males de uma vida estiolada, fora dos estímulos em que o Ocidente se refazia”, escreveu.
Desta sorte, segundo ele, era o Brasil distorcido da sua marcha natural — “acorrentado ao cadáver de uma nação que, mesmo em glória, nunca fora uma civilização completa”. Para Bomfim, “menos que Roma em face da inteligência grega, Portugal não teve energias para outra coisa além das suas conquistas de comércio”. Mais adiante, disse: “Negreiro, escravocrata, absolutista, bragantista, liberal, cortista, monarquista… o português encarnou, em todas as crises, o renitente inimigo do Brasil, empenhado em mantê-lo na mesquinha situação que o obrigue a servir de pasto ao mercantilismo de parasitas obsoletos”.
Só que, mesmo depois do afastamento dos Braganças do poder, os brasileiros — leia-se aqui: os donos do poder — continuaram roubando, extorquindo, manipulando eleições e enriquecendo com o trabalho neoescravo, mantendo a “lôbrega e mentirosa democracia” da Primeira República (1889-1930) em que Bomfim viveu ao final de sua vida. E, depois, com o conturbado e fascistizante período getulista (1930-1945), pouco mudaria, ainda que tenham sido dados alguns direitos aos assalariados miseráveis, mais por imposição dos tempos do que por vontade de reformar efetivamente o país. Sem contar a tragédia que constituiu a ditadura militar (1964-1985).
Bomfim não via mérito nenhum nos aventureiros lusos que, com Vasco da Gama (ca. 1460-1469-1524), avançaram em direção às Índias e que, de passagem, se viam alguma ilha desprotegida, desciam para fazer a pilhagem. Dessa forma, Luís de Camões (ca. 1524-1525/1580) teria exagerado ao lhes louvar os feitos mercantis, a ponto de hiperbolizá-los, ao escrever que, “se mais mundo houvera, (o homem lusitano) lá chegara”. Mas, ao mesmo tempo, vê patriotismo nos paulistas dos séculos 17 e 18 que se embrenhavam nos matos para matar ou escravizar indígenas, tornando-se também o “terror dos espanhóis” e avançando os limites do Tratado de Tordesilhas, a tal ponto que, se não houvesse a Cordilheira dos Andes, o Brasil talvez hoje tivesse também saída para o Pacífico.
Bomfim, em seu desabrido antibragantismo, deixa de ver a ação da miséria humana nos grandes acontecimentos, como se todos os reinóis fossem maus e todos os nascidos na América portuguesa bons. E não percebe que, no movimento de 1789, eram as mãos dos arrematantes de contratos João Rodrigues de Macedo e Joaquim Silvério dos Reis que moviam os cordéis da conjuração, aqueles que mais lucrariam com a separação de Minas e das capitanias que pudessem aderir ao movimento, pois, como grossos devedores, ficariam livres das dívidas, que haviam acumulado ao deixar de repassar para os cofres da Coroa os impostos que arrecadavam em nome dela. Depois de por anos dividir com os governantes os cabedais que seriam do Reino, como dizia Critilo, alter ego do ouvidor Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), ao denunciar (e trair) o ingênuo Tiradentes e outros, pulando para o outro lado da cerca, Silvério acabou por conseguir o que mais queria: livrar-se das dívidas…
Para Bomfim, a independência de 1822 também não passou de um arranjo entre as elites, ficando o País “sob o governo de legitimíssimos (sic) representantes da metrópole”, sem nenhuma alteração no pessoal do Estado. Para ele, a independência não passou de escamoteação em favor dos Braganças e dos portugueses em geral, não sendo, portanto, o natural desenvolvimento da nossa evolução nacional, senão um atentado contra essa mesma evolução. Em outras palavras: “o Estado do Brasil foi organizado com a nata dos canalhas e ineptos, de que se compunha a degradada classe dirigente do Portugal de 1808”.
Como se vê, é preciso algum cuidado ao ler Bomfim hoje, pois só se pode fazê-lo com os olhos de ontem. E relativizar tudo o que escreveu porque, afinal, os ladravazes do Império nada mais foram do que precursores dos ladravazes da República. Foram tantos os ladravazes e tamanha a fúria com que avançaram (e avançam) sobre as burras públicas que não sobrou espaço para se exercer nos séculos 20 e 21 um capitalismo menos selvagem, ao contrário do que se vê nas nações mais desenvolvidas. Hoje, o antilusitanismo de Bomfim não procede porque, guardadas as devidas distâncias, o que construímos foi um imenso Portugal.
Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo.