O feminino e o masculino na literatura do escritor argentino Ernesto Sabato
18 abril 2014 às 13h04
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Para o escritor argentino a ideia defendida por Simone de Beauvoir, para quem “ninguém nasce mulher, torna-se”, não respeita as diferenças primordiais entre o feminino e o masculino, pois transforma homens e mulheres em opções culturais, e não físicas e psicológicas
Carlos Russo Jr.
Especial para o Jornal Opção
Mais de três décadas são decorridas desde o nosso encontro. Papeamos durante toda a noite. Dom Ernesto, um homem aberto, como ele mesmo se dizia, “era um heterodoxo”. E mais, por sua formação ser em física e em matemática, ele sentia-se à vontade para opinar, “mesmo sem rigor metodológico” sobre quase todos os assuntos, desde arte à filosofia, passando, pela política e pelas religiões. Corajoso, trazia sempre a dialética de seu “existencialismo” como escudo para o combate às ortodoxias.
Pedi-lhe que em uma frase definisse sua ideologia, sorrindo disse-me com empolgação: “Sou um anarquista! Um anarquista no sentido melhor da palavra. O povo crê que anarquista é aquele que põe bombas, mas anarquistas foram os grandes espíritos, por exemplo, Liev Tolstói”.
A temática de nosso encontro principiou por um texto que dom Ernesto publicara há alguns anos, que entre outras temas, tecia críticas à Simone de Beauvoir, para quem “ninguém nasce mulher, torna-se”. Ele se opunha radicalmente a essa negação das diferenças primordiais entre o feminino e o masculino. A ideia, que lhe parecia profundamente ingênua, de que todos os seres humanos nasciam iguais, invadia a sua concepção do campo da sexualidade, pois essa “ideia transforma homens e mulheres em opções culturais, e não físicas e psicológicas”.
“Há muitos anos, creio que em ‘O Túnel’, afirmei que sempre haverá um homem que, embora sua casa desmorone, estará preocupado com o universo. E haverá também sempre uma mulher que, embora o universo desmorone, estará preocupada com sua casa.”
A respeito da revolução feminista, nos anos 1960 e 70, uma realidade vitoriosa, ele me disse: “Caro, em todos os campos, tanto no da política quanto no dos costumes, em tudo que for humano, as revoluções começam com maiúsculas, perduram com minúsculas e acabam entre aspas”. “O inocente e simples fato de mostrar diferenças entre os dois sexos, põe muitas pessoas em guarda e você as ouve resmungar palavras como reacionário, bárbaro… Veja que o dito ‘progressismo’ consiste hoje em manter como vivas ideias definitivamente envelhecidas, tal como a igualdade entre os sexos, que absolutamente são diferentes.”
Em seguida, explanou seu pensar em relação aos arquétipos, ao inconsciente coletivo, que agiriam mais ou menos da mesma forma como as atitudes inatas, chamadas instintos, que animais e homens parecem possuir. “Estabelecer as diferenças entre homem e mulher não implica ignorar a bissexualidade de todos os seres humanos, aquilo que é atávico e, portanto, profundo, o amálgama de atributos masculinos e femininos que existem em cada um de nós. Pelo contrário, para falar em bissexualidade temos primeiramente que falar em masculino e feminino, estabelecendo os caracteres arquetípicos do homem e da mulher, objetos que só existem em estado de pureza no universo platônico, mas que, de alguma forma regem as características dos homens e mulheres reais.”
A conversa caminhou para o lado do Banquete platônico, para um Zeus que separou o andrógeno primitivo, um gigante possuidor de duas faces, quatro braços e quatro pernas, e ao cortá-lo ao meio, em duas partes de igual dimensão e importância, obteve um andrós — o masculino, e um guyné — feminino. “Aquele que era uno foi transformado em um duplo, criando metades complementares, tanto no ‘somma’ quanto no ‘noos’, no corpo e na mente, surgindo o homem e a mulher.”
“Mas já viajamos em demasia; voltemos aos arquétipos. O masculino, esse persegue as ideias puras e abstratas, entes misteriosos que não pertencem ao mundo dos vivos. Enquanto o feminino demonstra não apenas uma incapacidade para a abstração, mas também indiferença e até repugnância.”
“Talvez seja por isso que as mulheres se destacaram nas artes, nas letras, mas muito poucas na filosofia.”
“O arquétipo feminino volta-se para a maternidade e por isso demonstra um interesse tão vivo em relação a tudo o que a cerca, desde que possa ver sentir, tocar. Sua avidez de conhecimento se dirige às coisas em si e não às suas causas remotas. Por considerar o universo com olhos e alma de mãe, os homens para elas não constituem objeto do conhecimento, mas seres capazes de sofrer e gozar, e ela busca ligar-se a eles pelo amor.”
“Já o espírito do homem não é retilíneo, mas dialético e paradoxal. O homem costuma partir de premissas lógicas e realistas para chegar a verdadeiras loucuras, às fantasias, a seus Moinhos de Vento, tais como Parmênides, Colombo, Cervantes e Napoleão. Ao inverso, a mulher é ilógica e irrealista, insensata, mas adere às suas pequenas insensatezes com fúria realista e conservadora. O homem vai da realidade à sem-razão centrifugamente; a mulher, da sem-razão à realidade, centripetamente.”
“Se o instinto feminino é ilógico, ele, entretanto, não falha nos problemas da vida concreta, pois que estes jamais são lógicos. O homem fracassa comicamente querendo aplicar a lógica à vida, não havendo indivíduo mais grotesco na vida cotidiana que o filósofo ou o cientista.”
“Enquanto a mulher confia no irracional, no mágico, dificilmente ela perde a fé. O mundo jamais pode revelar-se mais absurdo do que ela o intuiu pela primeira vez. Já racionalizar o universo e Deus é empresa tipicamente masculina, loucura própria de homens.”
“A mulher foi a inventora de quase todas as artes úteis, desde as primeiras ideias sobre a agricultura e a pecuária, a domesticação de animais, a descoberta das tintas, a cerâmica, a conserva de alimentos, os teares e seus tecidos. Enfim, a indústria é essencialmente feminina enquanto se mantém em escala doméstica. Quando, graças ao impulso capitalista, a indústria transforma-se em uma empresa gigante e abstrata, então, dela o homem se apossa.”
“O comércio, que é baseado no intercâmbio e no movimento, conduz e produz à abstração do valor e, desde sempre conduziu à masculinização do mundo.” O mesmo, aliás, pode-se dizer do capitalismo puro, sem adjetivos, que é o capital financeiro.
“Diz Jung que o amor — ou ódio às coisas — é prerrogativa do arquétipo masculino enquanto o traço feminino se traduz pelo amor — ou ódio às pessoas. Mas a mulher ama os seres que a rodeiam, assim como também as coisas que as rodeiam, como roupas, joias, etc.. Por isso em suas viagens elas desejam transportar consigo ‘todo o seu mundo’. Já o amor masculino é abstrato, julgando-se, muitas vezes, capaz de amar e morrer por toda a humanidade, desde que não seja tocado pelo mais próximo.”
Jung também nos diz que levamos em nosso inconsciente, mais ou menos reprimido, o sexo contrário. “Se essa teoria é certa, as criações vinculadas à inconsciência, como a poesia e a arte seriam, no homem, expressão de feminilidade. O artista seria assim uma combinação da consciência e razão do homem com a inconsciência e a intuição da mulher. E se nessa combinação predomina a inconsciência, a arte é romântica. Caso a consciência predomine, clássica.”
“Podemos até mesmo dizer que no homem o sexo é um apêndice, estando logicamente para fora, para o mundo. Na mulher, o sexo está para dentro, para o mistério primordial. No homem o sêmen é ejaculado, sai para o universo; na mulher, entra, penetra. A projeção masculina significa separação, cisão, desvinculação do homem em relação à sua semente. Na mulher, ao contrário, implica fusão, união.”
“Apesar de a mulher ser essencialmente erótica, para ela a relação sexual tem menos importância que a anímica. Enquanto o homem tende a confundir Eros com sexualidade e julga possuir a mulher quando se une sexualmente a ela, em nenhum momento ele a possui verdadeiramente, pois para ela só importa de fato a possessão anímica, a sentimental. Para o arquétipo feminino, Eros constitui uma relação entre almas, sendo o princípio supremo da mulher.”
“Na prostituição pode-se chegar ao sexo no seu estado puro, e, consequentemente, ao último estágio da coisificação, da desesperação. Perceba meu caro, que, mesmo enfeitados, sonoros, asseados, até os melhores prostíbulos são sempre tristes.”
“Podemos também relacionar o masculino com o diurno e o feminino com o noturno. É claro que os dois princípios coexistem em cada ser humano, mas seriam masculinos o dia, a ordem, a consciência e a razão, a lógica e a definição, os ouvidos e os olhos, a origem do clássico e do essencial. Por isso mesmo o masculino é meio esquizoide ao não se contentar, em geral, com essa realidade e passar a construir outras para si.”
“Finalmente, posso lhe afirmar que a mulher, comumente, não necessita mais do que tem dentro de si: leva o mundo e a humanidade inteira em seu próprio seio. Femininos são a noite e o caos, a inconsciência, o corpo, a brandura, a vida e o mistério, o gosto e o tato, a origem do barroco e do romântico, do existencial.”
“E quanto as virtudes da mulher elas o são pelo altruísmo pela espécie, sua capacidade de sacrifício pessoal pelos filhos e pelos homens sob seus cuidados. Mas não nos esqueçamos que tudo possui um contraponto: devido ao fato de seu mundo ser concreto e pequeno, ele situa-se a um passo das mesquinharias e dos ciúmes viscerais.”
Carlos Russo Jr. é escritor.