Opção cultural

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Livro-reportagem apresenta a história de crianças sob uma nova face do trabalho na infância

No próximo dia 12 de junho é celebrado o dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil; ONU declara 2021 o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil

Maria Braga Horta e sua trajetória luminosa

O bardo mineiro Carlos Drummond de Andrade reconheceu os “métodos artesanais” da poeta

Romance “Larissa Start”, de Rafael Caputo, discute temas como suicídio, eutanásia, perdão e amor

Romance do professor reúne em sua narrativa reflexões sobre o sentido da vida e como a inteligência artificial poderia auxiliar na redução do número de suicídios

Editais culturais com ideário humanístico

Os R$ 50 milhões da Aldir Blanc, operacionalizados pela Secult, serão distribuídos para 2.400 projetos com apelo cultural, beneficiando cerca de 15.000 fazedores de cultura

Quatro histórias de amor sobre as mais diversas formas de amar

Lançamento da escritora e mediadora de leitura Cléo Busatto surpreende público infantojuvenil com narrativas aparentemente independentes, mas que se revelam interligadas ao fim da história

Mare of Easttown preenche um pouco do vazio de séries deixado pela pandemia em 2021

Nova série de suspense da HBO traz Kate Winslet no papel de uma investigadora que não está preocupada em agradar ninguém

Entre intrigas palacianas no Império Romano e o proselitismo cristão

Propaganda na Antiguidade: “Não bastava ao imperador propalar suas virtudes em prol da ordenação do Império. Precisava traduzir as virtudes em ações" Ademir Luiz Especial para o Jornal Opção Ana Teresa Marques Gonçalves é uma das mais produtivas e conceituadas pesquisadoras da área de História Antiga no Brasil, autora de diversos artigos acadêmicos e do livro “A Noção de Propaganda e Sua Aplicação nos Estudos Clássicos — O Caso dos Imperadores Romanos Septímio Severo e Caracala” (2013). Graduou-se em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1991, defendeu na USP o mestrado em 1997 e o doutorado em 2002. Professora titular de História Antiga na Universidade Federal de Goiás, é especialista em História Romana, com pesquisas sobre Antiguidade Tardia e dialogando com o período medieval, Ana Teresa Marques Gonçalves lançou em 2020 dois livros, que apresenta nesta entrevista. Cinéfila reconhecida e leitora incansável, também comenta sobre filmes e livros que se passam na Antiguidade Clássica e na Idade Média. [caption id="attachment_331416" align="aligncenter" width="620"] Ana Teresa Marques Gonçalves: uma das mais importantes scholars da universidade brasileira | Foto: Reprodução[/caption] Qual o atual panorama dos estudos acadêmicos sobre História Antiga no Brasil? Hoje contamos com especialistas em História Antiga em quase todas as instituições acadêmicas de ensino e pesquisa no país. Temos vários Programas de Pós-Graduação em História que estão promovendo a formação de novos especialistas. Contudo, as instituições de ensino e pesquisa públicas estão sendo sucateadas, os profissionais desvalorizados, as bolsas e demais fomentos cortados...Ou seja, estamos passando por um período difícil, em que cabe a nós demonstrarmos nossa importância social à comunidade brasileira. Não há futuro num país que desconhece seu passado. As pesquisas permitem que ampliemos nosso rol de conhecimentos, bem como ajudam a criar uma consciência crítica por parte expressiva de nossos jovens. Sempre me emociona ver o desenvolvimento cognitivo do aluno, quando ele realmente passa a compreender algo que até então ele simplesmente repetia como um saber introjetado. A sra. foi (e é) uma das principais responsáveis por estabelecer uma base para pesquisas acadêmicas em História Antiga em Goiás, ensinando, pesquisando e orientando trabalhos na graduação e na pós-graduação ao longo de vinte e cinco anos. Como a senhora avalia esse cenário hoje? Quais as principais dificuldades enfrentadas durante o processo? Existe uma característica reconhecível para essa “escola” de pesquisa e ensino?  Comecei a lecionar na UFG em janeiro de 1995, ou seja, há mais de 25 anos. Ainda possuíamos um mestrado em História Agrária. Com a abertura de concursos e a vinda de novos professores, oriundos dos mais diversos rincões do país, conseguimos atrair especialistas em várias áreas, o que me permitiu começar como professora de História Antiga e Medieval e depois assumir somente atividades vinculadas à minha especialidade: os estudos clássicos. Com a implantação de novas linhas para o mestrado, incluindo estudos mais vinculados às Histórias Social e Cultural, e a implementação do doutorado, pudemos passar a formar alunos especialistas em Antiguidade. Sempre houve bastante procura pelos estudos clássicos, visto que gosto de ir formando os alunos desde a Graduação, com o desenvolvimento de pesquisas de iniciação científica e de monografias de final de curso. A vinda de discentes de outros Estados para se pós-graduarem na UFG também garantiu a troca de experiências com estudantes com outras formações acadêmicas, o que só abrilhanta o curso. Hoje a diminuição das bolsas de pesquisa dificulta o desenvolvimento dos estudos. Também temos recebidos cada vez menos verbas para aquisição de livros e de outros materiais de pesquisa. A especialização em História Antiga requereria ao menos um período de estágio no exterior, mas nem sempre este deslocamento tem sido possível. O que nos auxilia muito atualmente é o acesso virtual aos catálogos de inscrições epigráficas, aos catálogos numismáticos, aos documentos textuais em latim e/ou grego, mas nada substitui uma visita presencial a um sítio arqueológico...Fico realmente preocupada com o futuro de meus novos mestres e doutores e sua dificuldade cada vez maior de se encaixar numa instituição de ensino e pesquisa. Sempre me vi como uma multiplicadora de conhecimentos e de oportunidades, mais do que como construtora de uma “escola” aqui em Goiás. Acho fundamental que o aluno escolha seu objeto de pesquisa a partir de seu próprio interesse. Costumo apresentar um cardápio de opções de temas de pesquisa e deixar o aluno se encantar por algum...Por isso, acabo orientando em temas e autores tão diversos. Mas ao ensiná-los também aprendo muito! Adoro me dispor a pesquisar um autor clássico pouco conhecido! Tal empreitada sempre me estimula. A sra. está lançando dois livros ao mesmo tempo pela Paco Editorial: “Formas de Oposição aos Imperadores Romanos Durante os Governos dos Severos — Uma Análise da Obra de Herodiano” e “A Arte Poética a Serviço do Proselitismo Cristão — Relendo os Poemas de Aurélio Prudêncio Clemente (séculos IV e V)”. O primeiro, sobre Antiguidade Clássica, é a esperada publicação de sua dissertação de mestrado defendida em 1996, enquanto o segundo, sobre Antiguidade Tardia, é o trabalho que apresentou para avaliação da banca de promoção ao cargo de professora titular de História Antiga na Universidade Federal de Goiás. É possível traçar um resumo da trajetória intelectual que a conduziu de uma pesquisa para outra?  Desde criança via minha mãe, também professora, montando aulas, corrigindo trabalhos de alunos. Sempre achei divertidíssimo ajudá-la. Nunca tive dúvidas de que também seria professora. Ganhei de meu avô materno uma enciclopédia chamada “Saga”, que contava a História do Brasil de forma bem simples e divertida, e, ao ler seus volumes como quem lê um romance, encontrei minha área de especialização. Em 1987, ingressei no curso de História na UFRJ (quatro anos de bacharelado mais um de licenciatura), no qual fui monitora de História Antiga II-Roma e produzi uma monografia de final de curso sobre os Breviários de Eutrópio e Aurélio Victor, formulados no IV século. Numa visita a um sebo na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, comprei um livro antigo do Gaston Boissier em francês sobre a oposição aos imperadores romanos. Na realidade, ele defendia que não havia oposição organizada aos príncipes. Eu estava começando a planejar meu mestrado na USP e me lembrei que vários soberanos tinham sido assassinados. Algum tipo de oposição tinha que ter se formado. Assim achei meu tema de estudo, que gerou a dissertação publicada somente ano passado. Mas faltava refletir sobre quais estratégias permitiam que os imperadores permanecessem no poder, já que sua ascensão era oficialmente por aclamação e aceite comunitário, e eles eram magistrados a serviço do povo romano. A dissertação havia me possibilitado analisar as formas de se tirar um príncipe do poder de comando imperial; a tese me levou a estudar os sistemas que permitiam a permanência de um imperador no exercício do poder imperial. Nesta ocasião já havia me interessado pela dinastia do Principado romano menos estudada no Brasil: os Severos. A falta de traduções das obras sobre o período para o português havia limitado muito o desenvolvimento de estudos sobre os fatos ocorridos entre os séculos II e III d.C. E a dificuldade de acesso e a ausência de muitos estudos sempre foram afrodisíacos intelectuais para mim. Seu livro mostra que a dinastia dos Severo foi marcada pela instabilidade política em grande parte motivada pela instabilidade nas relações familiares. Quais grupos sociais se opuserem à dinastia e como essa oposição era articulada? Karl Galinsky, numa obra intitulada “Augustan Culture”, demonstra como o imperador nunca deixou de ser visto como um magistrado, que precisava do apoio de elementos vindos de vários estratos sociais para ascender ao comando imperial e para permanecer no poder. Não havia eleições como no mundo moderno. A formação de redes de apoio era fundamental para a manutenção do e no cargo. Precisava-se angariar apoios entre os senadores, os equestres, membros da plebe de Roma, elementos oriundos das forças armadas, das aristocracias provinciais. Esta rede de solidariedade era estabelecida e mantida por meio de trocas constantes de benesses. Com a expansão dos territórios administrados pelos romanos, tornou-se cada vez mais importante ter um comandante único que desse a palavra final sobre várias questões. Cabia ao imperador distribuir honras e cargos, definir comandos militares e expedições bélicas, propor novas leis e garantir o cumprimento das já existentes, definir tributos. A ordenação da administração garantia a manutenção da abundância. Interessava aos vários grupos sociais que constituíam a sociedade dos cidadãos romanos a existência de um soberano, de onde emanavam estas decisões. Sua retirada do cargo só podia ser feita por sua supressão capital, visto que como magistratura vitalícia, não havia outra forma de impedimento, por isso o uso do assassinato por meio de motins pretorianos, conspirações palacianas, entre outros expedientes, tornou-se tão frequente. O retorno à ordem se dava pela troca do Príncipe. E a ascensão e a supressão dos imperadores levavam à necessidade de elaboração e reelaboração de redes de apoio e de oposição frequentes. Como demonstra Paul Veyne, no capítulo sobre “O que é um imperador Romano?”, do livro “O Império Greco-Romano”, o inimigo de ontem podia se transformar no amigo de hoje, de acordo com as alianças que se estabeleciam conforme os interesses políticos e econômicos iam se cristalizando. O imperador escolhia alguns senadores e equestres para integrarem seu Concilium Principis, bem como contava com familiares e outros cortesãos no Palácio. Esperava-se que o Príncipe vigente fosse formando seus familiares para serem futuros imperadores, ao lhes atribuir várias funções e cargos públicos. O casamento entre membros de famílias aristocráticas formava mais uma rede de apoio ao soberano. No caso dos Severos, Septímio casou-se com Júlia Domna, filha de um grande sacerdote de Emesa, na rica Síria, porque, segundo Dion Cássio, na “História Romana”, seu horóscopo indicava que seria esposa de um soberano. Septímio nasceu de nobre família norte africana, especificamente de Leptis Magna, na atual Líbia, enquanto sua segunda esposa era oriunda de nobre família oriental. Assim se estabeleciam alianças entre aristocracias provinciais. Eles se conheceram enquanto Septímio rodava o Império em seu cursus honorum, recebendo cargos e funções que o obrigavam a viajar por vários territórios imperiais, conhecendo inúmeras províncias e estabelecendo alianças com membros dos mais diversos estratos sociais. Do casamento, surgiram dois herdeiros: Caracala e Geta, que foram sendo formados para serem imperadores. O problema é que os dois se detestavam, chegando a ocupar alas diferentes dentro do Palácio. Esta instabilidade na família imperial era ruim para o Império, visto que se formaram grupos de apoio e de oposição a ambos. A instabilidade era a mãe do conflito, e este era o pai da desordem. E desorganizar o ambiente público era abrir portas para a diminuição da abundância. Após a morte de Septímio em Eburacum, atual York, na Bretanha, os filhos não conseguiram dividir o poder e Geta acabou assassinado a mando de Caracala. Não bastava realizar obras públicas, expedições militares e\ou distribuir cargos e benesses; era fundamental divulgar estas concessões. Por isso, o estudo das formas de propaganda utilizadas pelos Príncipes para tornar conhecidos seus empreendimentos à frente do comando imperial tornou-se o tema de outro livro lançado em 2013, fruto de minha tese de doutorado. Dos seis imperadores da dinastia dos Severos, apenas o primeiro, Lúcio Septímio Severo, morreu em função de uma doença. Todos os outros foram assassinados. A maioria em campanha ou vítimas de intrigas palacianas. Isso demonstra que, nestes casos, a oposição meramente política era pouco efetiva ou os opositores participaram de algum modo desses episódios?  Caracala, herdeiro de Septímio, foi assassinado a mando de um de seus prefeitos do Pretório, Opélio Macrino, atrás de uma moita, quando voltava de uma visita a um templo dedicado à deusa Cibele. Macrino acabou assassinado a mando de Júlia Mesa, irmã mais nova de Júlia Domna, que queria colocar seus netos Heliogábalo e Severo Alexandre no poder. O primeiro acabou assassinado por soldados que aclamaram em seguida seu primo, que também acabou morto por membros do exército. O próprio Septímio morreu de Gota na Bretanha, mas não sem antes quase ser suprimido pela ação de venenos e em batalhas contra os Partos. Eram os que mais tinham acesso ao soberano, como pretorianos, cortesãos, familiares e senadores, que conseguiam consumar os assassinatos. A oposição não era ao sistema político em vigor, mas a quem ocupava o cargo de Príncipe, por isso após a eliminação de um imperador, outro comandante era aclamado rapidamente, pois a vacância no poder poderia gerar instabilidade e esta ausência de concórdia era ruim para a administração imperial. Os grupos oposicionistas normalmente integravam membros de vários estratos sociais, que objetivavam ter mais acesso a benesses (cargos, funções, verbas, comandos militares, etc.) pela mudança do governante.

A origem do marketing político
O que hoje chamamos de “marketing político” teve origem na Antiguidade. Os exemplos são os mais diversos. Alexandre Magno espalhou seu rosto pelo império por meio da cunhagem de moedas, prática que se disseminou. Otávio Augusto encomendou o poema épico Eneida a Virgílio para celebrar seu próprio governo, como novo ponto de chegada da história de Roma. Qual era o papel da propaganda durante a dinastia dos Severo? Não bastava ao imperador demonstrar e/ou propalar suas virtudes em prol da ordenação do Império e da administração das províncias. Ele precisava traduzir estas virtudes em ações, como a realização de construções públicas, de embates militares, de festas em honra às divindades, de viagens para conhecer as aristocracias provinciais etc. E estes empreendimentos deveriam ser conhecidos pelos cidadãos e demais moradores do território imperial. Esta divulgação das ações imperiais denominamos de propaganda. Como o poder do príncipe dependia de suas alianças políticas e econômicas, e estas, por sua vez, dependiam de uma boa imagem, de virtuoso e  provedor, tornou-se fundamental que o soberano propagasse suas boas iniciativas à frente do Império e para isso usou-se todos os suportes disponíveis à época: a realização de festas; a construção de arcos do triunfo, entre outras obras públicas que visavam enaltecer a figura do imperador; a emissão de moedas, nas quais, no anverso temos a efígie do soberano, e no reverso a divulgação de um feito; a distribuição de epígrafes; dentre outras possibilidades. Todos os soberanos buscaram usar o que podiam para passarem aos súditos uma imagem positiva de seus governos, buscando garantir a manutenção das redes de apoio a suas gestões. A dinastia dos Severos caracterizou-se pela presença de mulheres fortes, como Júlia Domna, Júlia Mesa, Júlia Soêmia e Júlia Avita Mamea. Qualquer uma delas poderia ser tão popular quanto Cleópatra. Qual papel elas desempenharam no cenário político da época e como foram descritas por Herodiano?  Temos vários livros dedicados às Júlias...Herodiano e Dion Cássio são alguns dos autores antigos que defendem que algumas delas chegaram a frequentar reuniões do Senado...Sabemos que as duas últimas morreram junto com os filhos e estavam ao lado deles nas tendas das campanhas militares. Domna também acompanhou Septímio em todas as viagens, inclusive nas contendas militares. Segundo Filóstrato, ele escreveu a vida de Apolônio de Tiana a seu pedido. Mesa organizou e financiou o assassinato de Macrino e de seu filho Diadumeno. O relato de Dion Cássio relativo ao assassinato de Geta, no seio de uma conspiração palaciana, no colo da mãe Júlia beira a confecção teatral. Essas mulheres pertenciam à elite síria e foram criadas no interior de uma domus romanizada. Todas se casaram com membros da elite e tiveram filhos e\ou netos que ascenderam ao imperium. Ou seja, antes de mais nada, eram vistas como filhas, mães, esposas de homens relevantes politicamente, e aprenderam a se virar no mundo da corte. Tinham muitas propriedades e souberam utilizar sua riqueza para estender suas alianças familiares/políticas. Cleópatra, além de grande estadista, soube usar todo o poder da sedução oriental, como aparece na “Vida de Júlio César”, na biografia dedicada a este na obra de Suetônio, “As Vidas dos Doze Césares”. As Júlias souberam utilizar todos os instrumentos que tinham a mão: casamentos, maternidade, alianças e riqueza para estabelecerem redes de sociabilidade capazes de lhes dar destaque e prestígio. O proselitismo cristão dos primeiros séculos se dava, sobretudo, por meio de cartas enviadas a comunidades, como as escritas por São Paulo, ou narrativas em prosa, como os relatos dos Evangelhos. A opção de Aurélio Prudêncio Clemente por escrever o que chamava de “poemas prosaicos” representou uma evolução estética deliberada? Havia uma preocupação de escrever com “arte” para conseguir um melhor efeito de conversão? A tese que produzi para promoção à professora titular de História Antiga na UFG em 2019 foi um retorno aos estudos de Antiguidade Tardia, que já havia exercido na monografia de final de curso na UFRJ. Conheci os poemas cristãos de Prudêncio ao orientar uma aluna no TCC. O uso de cânones clássicos nos assuntos tratados e nos formatos utilizados pelo poeta cristão me chamou muito a atenção. As referências aos deuses pagãos, a forma poética, a repetição de epítetos, entre outros elementos comuns à retórica clássica numa obra de divulgação dos princípios cristãos necessitava de uma análise. O fato de Prudêncio ser quase desconhecido no país e de sua obra ainda não ter sido traduzida para a língua pátria fomentaram minha vontade de estudá-lo. Da mesma forma como os imperadores romanos buscaram divulgar suas boas obras e suas imagens positivas, os convertidos ao Cristianismo intentavam convencer outros a aderirem à fé cristã e para tanto usaram todos os suportes disponíveis: pregações, cartas, festas, construções, homilias, poemas...Se converter ao Cristianismo era se ocupar com uma nova forma de vida, se dispor a novas práticas sociais e se abrir para um novo imaginário. Mas para conseguir a adesão de prosélitos era necessário usar as ferramentas que se dispunha à época: as línguas vigentes e o imaginário corrente. Para converter era fundamental convencer, e para convencer imprescindível falar a partir do que se conhecia, do que se entendia. Assi, como demonstrou Averil Cameron, a retórica cristã foi construída a partir da retórica clássica, que era compartilhada pelos habitantes do Império. E este novo ideário e as novas posturas deveriam ser propagandeados, divulgados por intermédio de todos os suportes disponíveis. Identificamos na obra prudentina, por exemplo, poemas longos para serem lidos e\ou ouvidos em momentos de lazer; poemas curtos para serem decorados e recitados em vários momentos do dia; pequenas legendas poéticas para imagens visuais. Deste modo, o poeta convertido se coloca como propagador da nova fé, usando sua arte, seu talento, sua técnica para elaborar poesias. Era uma forma de chamar a atenção dos ainda não convertidos e de fomentar a crença dos já conversos. Não se trata de uma evolução, mas da disposição de se usar todas as ferramentas disponíveis para se fazer a obra do Senhor, como eles acreditavam que deveria ser empreendida. No poema “Peristephanon” ou “O Livro das Coroas”, Aurélio Prudêncio Clemente exalta o papel dos mártires cristãos, comparando-os com heróis pagãos. Como explicar essa aproximação? A imagem dos heróis pagãos ainda exercia muito fascínio e foram utilizadas como ferramenta de conversão? Como isso acontecia?  O herói clássico é antes de tudo um ser atormentado. Lembremos de Aquiles, irado após a morte de Pátroclo; Heitor vendo Tróia ser fustigada pelos Helenos; os trabalhos de Héracles; Odisseus (Ulisses) em seu retorno para Ítaca. Os cristãos também precisavam de exemplos de boas condutas e de contra-exemplos de más condutas a serem evitadas, visto que ainda se compreendiam a partir dos cânones clássicos, ainda vibravam a partir do imaginário latino. Desta forma, parece-nos natural que os escritores cristianizados procurassem criar heróis cristãos tomando como fôrma a retórica clássica. Os mártires acabaram ocupando este papel. Mas não só: percebemos como Eusébio de Cesaréia constrói o imperador Constantino, que permitiu liberdade de culto aos cristãos, como um herói cristão por excelência em sua biografia de Constantino, bem como Lactâncio, na obra Sobre a Morte dos Perseguidores, produz um rol de Príncipes que tiveram doenças e mortes terríveis ao perseguirem os que professavam o Cristianismo. O exemplo é uma arma pedagógica potente! Os mártires, ou seja, os que foram torturados e\ou mortos ao se oporem a negar a fé em Cristo, foram alçados à posição de exemplos de coragem, de determinação, de fé numa outra vida ao lado da divindade cristã. Nos poemas de Prudêncio e nas vidas dos mártires, como a Legenda Aurea, temos acesso a conjuntos de relatos de vidas de convertidos que morreram em prol de uma crença, que serviram de tema e mote para diversas homilias. Com o tempo, passou-se até mesmo a peregrinar para visitar as tumbas dos mártires. De igual maneira, foram se instituindo festejos em memória destes mártires. A recordação constante de sua coragem e prontidão, pois se morria com muita determinação, garantia a construção de uma memória de exemplos a serem seguidos. Não era uma fé suicida, mas colocar a vida a serviço do Senhor. As mártires femininas, por exemplo, tinham seus feitos comparados à coragem masculina e desse modo seu prestígio era renovado. Pertencer a uma família que possuía um martirizado era ter seu status aumentado no seio da comunidade cristã. Por que a luta do bem contra o mal pela alma humana era considerada por Aurélio Prudêncio Clemente como “a conquista da última fronteira”?   Na poesia prudentina, a verdadeira luta épica se dava entre o Bem e o Mal pela gerência da alma humana. O mundo era um campo no qual os seres eram disputados pelas hostes divinas e satânicas. Não bastava vencer em número, formando uma grande comunidade de conversos, mas fazer com que a conversão fosse para sempre, visto que as tentações se sucediam e os combates eram diários e frequentes. Por isso a necessidade de oferecer aos convertidos imagens visuais e literárias dos verdadeiros princípios, para que os cristianizados se mantivessem no bom caminho. Era como o poder do imperador: não bastava ascender ao cargo, mas era imprescindível se manter no cargo. A propaganda, a divulgação dos bons feitos e das virtudes adequadas a um bom governo, era uma arma imprescindível para a instituição da soberania. De igual forma, a propagação do ideário cristão deveria ser constante e garantir a permanência do convertido no seio da comunidade. O converso tinha que introjetar certos valores, práticas e noções que o diferenciavam do pagão, e a reiteração destas ideias criava um imaginário que norteava as ações humanas. Estas ações deveriam reproduzir no mundo real o que se implementava na alma dos conversos: a adesão à nova fé. E conquistar de forma vitalícia a alma humana era manter o convertido no justo caminho em direção à salvação, por isso tal conquista se convertia na última fronteira para a expansão do Cristianismo entre os homens. [caption id="attachment_331414" align="aligncenter" width="500"] Irene Pappás no filme "As Troianas" | Foto: Reprodução[/caption]
Filmes como instrumentos pedagógicos 
A sra. é conhecida por ser cinéfila. É possível usar filmes como forma de ensinar História Antiga para além da mera ilustração? Quais filmes ou séries sobre o período recomenda? Indubitavelmente, é possível usar filmes como instrumentos pedagógicos. Sempre indico “As Troianas” (do diretor Michael Cacoyannis), de 1971, com a atriz grega Irene Pappás como Helena de Tróia, ou “Gladiador” (Ridley Scott), de 2000, principalmente nas cenas de batalha, que tiveram consultoria da Universidade Yale, e na reconstrução do Coliseu. Mas faço questão de ressaltar que estes filmes não foram produzidos como fontes históricas, mas para conquistar bilheteria e como fonte de distração e lazer. Portanto, devem ser apresentados (diretor, data, produtora, atores etc) e analisados no que têm de bom e de ruim, de pertinente e de transgressor. Por exemplo, Cômodo não morreu na arena do Coliseu, como se mostra em “Gladiador”, mas dentro do Palácio, numa conspiração da qual fizeram parte familiares, senadores e pretorianos. Identifico os filmes como instrumentos para fomentar a curiosidade e o interesse dos discentes, e não se realiza o processo de ensino/aprendizagem sem a curiosidade dos alunos devidamente despertada. No filme “Tróia”, outro exemplo interessante, a concepção moderna de herói exige que a dramaturgia apresente um vilão que a ele se contraponha. Assim, Agamemnom e Menelau acabaram alçados a esta posição, em oposição a Aquiles e Páris, numa versão muito contemporânea da “Ilíada”. No filme “Hércules”, com Dwayne “The Rock” Johnson no papel principal, criaram um rol de amigos para o personagem em seus trabalhos e em suas batalhas, ressaltando um valor comunitário que é nosso e não dos gregos. Na série de televisão “Roma”, o que mais atraiu a atenção dos telespectadores foram as inúmeras cenas de sexo. Assim, apesar de cinéfila assumida e de citar vários filmes em sala de aula, sempre buscando ressaltar o que segue os cânones didáticos e o que foi aderido para vender ingressos e tornar a estória mais palatável pelo público atual, evito pesquisar ou escrever sobre o tema, pois acabo sempre assistindo aos filmes com temas históricos duas vezes: uma como historiadora profissional, observando todos os acertos e todos os defeitos, e outra como amante da sétima arte. E o prazer de me divertir com o audiovisual sempre supera o trabalho de me atentar aos equívocos. [caption id="attachment_331430" align="aligncenter" width="620"] Nicole Loraux, historiadora francesa, "defende que usemos os anacronismos de forma criativa e os controlemos, ao saber que eles acabam sendo inevitáveis na construção de uma narrativa contemporânea compreensível"| Foto: Reprodução[/caption] Pesquisadores reconhecidos no cenário acadêmico se aventuram na literatura, enfocando a Antiguidade e a Idade Média. Umberto Eco e Christian Jacq são os exemplos mais famosos. A senhora considera que eles foram bem-sucedidos em transpor seus conhecimentos para a forma de narrativa de ficção ou não conseguiram escapar das armadilhas do anacronismo? Gosto muito de um artigo de Nicole Loraux, intitulado “O Elogio do Anacronismo”, no qual defende que, ao traduzirmos uma fonte para a língua pátria, já estamos cometendo anacronismos; ao usar nossos conceitos para explicar um fato ocorrido no passado, para que se torne inteligível hoje, já produzimos anacronismos. Por isso, a autora defende que usemos os anacronismos de forma criativa e os controlemos, ao saber que eles acabam sendo inevitáveis na construção de uma narrativa contemporânea compreensível. Como não amar “O Nome da Rosa” (inclusive o filme com Sean Connery). Para conhecermos o mundo antigo, usamos amplamente vários gêneros literários: peças de teatro, poesias, cartas etc. Tenho certeza que as obras advindas da ficção histórica também servirão aos historiadores pósteros para nos conhecerem melhor.

“Incidentes em Antares”, de Erico Verissimo, completa 50 de publicação com temática ainda atual

Escritor utilizou o realismo fantástico para tecer críticas à ditadura civil-militar e à chegada das empresas estrangeiras no Brasil

A Farândola Teatro apresenta o espetáculo “Malagueta na Labuta”

A palhaça Malagueta não lida apenas com vassouras e espanadores, ela ressignifica seus instrumentos, associando o trabalho doméstico a arte

Professor da UFG lança coletânea de HQs inspirada na pandemia

Realidade hipertecnológica e o ataque à conservação do meio ambiente também estão entre as temáticas

“Riders of Justice”: drama dinamarquês nos ensina que nem tudo precisa fazer sentido na vida

Dirigido por Anders Thomas Jansen, o longa-metragem traz Mads Mikkelsen como pai durão e vingativo

A história dos contos perdidos e redescobertos de Sonia Sant’Anna

Recebi uma série de documentos e, no meio deles, escritos da consagrada autora de romances históricos

60 anos de Brasília e suas relações com o Entorno do Distrito Federal

Doutor pela UnB, o arquiteto Pedro Henrique diz que, apesar de “fora” do eixo, Caldas Novas e Pirenópolis estão vinculadas à metropolização conjugada por Goiânia e Brasília Ademir Luiz Especial para o Jornal Opção O arquiteto e pesquisador Pedro Henrique Máximo é um dos mais promissores jovens acadêmicos brasileiros. Sua tese de doutorado “O Entre-Metrópoles Goiânia-Brasília: História e Metropolização”, defendida na Universidade de Brasília (UnB), orientada pelo professor Ricardo Trevisan, venceu o Prêmio Brasília 60 anos. Nesta entrevista, o professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Goiás fala sobre o conceito de entre-Metrópoles, sobre Brasília ser ou não uma cidade “necrosada”, as relações entre os municípios do Entorno do Distrito Federal com Goiânia e Anápolis. [caption id="attachment_329874" align="aligncenter" width="370"] Juscelino Kubitschek e Lucio Costa: o presidente e o arquiteto que foram decisivos para a construção de Brasília | Foto: Reprodução[/caption] Sua tese “O Entre-Metrópoles Goiânia-Brasília: História e Metropolização”, orientada pelo professor Ricardo Trevisan, venceu o Prêmio Brasília 60 anos. O que significa o conceito de “entre-Metrópoles”? O entre-Metrópoles foi uma compreensão que surgiu antes mesmo de entrar no doutorado no Programa de Pós-Graduação da FAU-UnB. Como iniciei um curso de Artes Visuais na UnB, em Brasília, em 2009, ao mesmo tempo que cursava Arquitetura e Urbanismo na UEG (Anápolis) desde 2007; e depois, morando em Goiânia, trabalhando em Goiânia e Anápolis e cursando mestrado na FAU-UnB (2012-2014), sempre me referi a essa minha vida “nômade” como “vida em trânsito entre-Metrópoles”. Essa noção de vida urbana expandida, dilatada pelo território, foi o cerne da questão que queria investigar no doutorado, porque sempre notei uma imensa quantidade de pessoas que diariamente se deslocava entre elas. À época cerca de 65 mil pessoas/dia. Então, me perguntava: como as coisas (usos, funções, equipamentos, infraestruturas etc.) estão distribuídas no território a fim de mobilizar tal dinâmica regional?

Pirenópolis, Caldas Novas e Rio Quente
Ricardo Trevisan, meu ilustre orientador, foi quem me auxiliou a entender que os motivadores urbanísticos e territoriais dessa vida urbana expandida poderiam se tornar objetos de tese. Para mim era uma impressão, mas para ele era a possibilidade de aprofundar estudos sobre o fenômeno regional de “eixo Goiânia-Brasília”, termo que refutei na tese (e continuo refutando). Então, o entre-Metrópoles é uma espessura espacial (de abrangência regional ou até mesmo territorial) sujeita e subordinada aos desígnios e processos de metropolização do espaço, que são, neste caso, conjugados pelas metrópoles Goiânia e Brasília. O entre-Metrópoles não se configura no formato de eixo (linha ou vetor), mas de modo radial. O espaço entre elas é aquele que materializa as tensões exercidas por elas, mas não somente. Pirenópolis está apartada do eixo. Caldas Novas e Rio Quente também. No entanto, apesar de “fora” do eixo, estão profundamente vinculadas à metropolização conjugada por Goiânia e Brasília. [caption id="attachment_329889" align="aligncenter" width="620"] Pedro Henrique Máximo, arquiteto e professor: "Brasília trouxe uma terceira onda de modernização para a hinterlândia brasileira" | Foto: Arquivo pessoal[/caption] Um dos debates teóricos mais importantes de sua tese é a diferença entre urbanização e metropolização. Como compreender essa diferença no eixo Brasília-Anápolis-Goiânia? A urbanização compreendida na tese diz respeito ao processo histórico-geográfico de consolidação das áreas urbanas por parte da imigração e crescimento populacional, mas não somente isso. Diz respeito, sobretudo, a um fenômeno normalmente sombreado por essa discussão que é a instalação e expansão da sociedade urbana ou do urbano como característica fundamental deste fragmento do território nacional. Estes dados, na tese, podem ser vistos a partir das discussões urbanísticas e de planejamento que pautaram a expectativa da organização dos modos de vida específicos nas cidades e enfrentamento das consequências dos processos migratórios e dilatação do território. A metropolização, por sua vez, diz respeito aos conteúdos que circulam pelo território impulsionados pelas metrópoles e que se materializam nelas e nos espaços por elas subordinados. A título de uma exemplificação simplória, os cortes de cabelo. Para que se reproduza o corte de cabelo de uma jornalista do jornal do meio-dia produzido pela equipe de preparação das emissoras em uma cidade pequena, é necessário a atualização intraurbana das técnicas de cortes, portanto, uma modernização do fazer que se dá nos salões e expostos nas ruas e espaços de encontro da cidade por quem decide cortá-lo. Em um nível mais complexo, os postos de combustíveis nas cidades pequenas passam a assimilar espaços acoplados, as lojas de conveniência, expressivamente comuns nas metrópoles, às vezes com a mesma qualidade de serviços e produtos. Em um nível de maior complexidade ainda, temos os condomínios de chácaras, as chamadas “segunda residência” ou “casa de final de semana” que está para além das áreas delimitadas administrativamente como urbanas em Teresópolis de Goiás, Abadiânia e Alexânia, mas também em Corumbá de Goiás e Pirenópolis. Estes locais de lazer e descanso se opõem diametralmente à metrópole. Por se oporem, estão dialeticamente relacionados a ela. A urbanização é a abertura à metropolização. Ambas estão intimamente relacionadas. [caption id="attachment_329875" align="aligncenter" width="620"] Oscar Niemeyer e Lucio Costa: dois dos arquitetos responsáveis pela construção de Brasília | Foto: Reprodução[/caption]
Brasília e a terceira onda de modernização
Anápolis e Goiânia antecedem historicamente Brasília. Qual o impacto da construção de Brasília para as duas cidades, considerando que na época da transferência da capital federal para o Centro-Oeste, Anápolis era maior e mais importante economicamente do que Goiânia? Brasília trouxe uma terceira onda de modernização para a hinterlândia brasileira, seguida do impacto da Ferrovia Goyaz e da construção de Goiânia. As ondas duram tempos diferentes a depender do impacto. Brasília trouxe uma onda que ainda repercute no território, mesmo 61 anos depois. Mas vou me deter ao impacto imediato do período de construção aos primeiros anos de Brasília: 1) modernização das infraestruturas — é possível elencar desde a implementação das rodovias federais à implantação e ampliação de aeroportos; à mobilização explosiva da estrada de ferro, mas também seu posterior declínio; à providência de melhores condições de produção e fornecimento de energia elétrica; à criação de represas de abastecimento de água; implantação de empresas de mineração nas imediações do Distrito Federal que serviam também a Goiânia e Brasília, entre outras, que configuraram no território uma imensa bacia de empregos; 2) mobilização populacional — movimentos de imigração configuraram uma verdadeira constelação urbana inicial, com a criação de cidades novas no interior do Distrito Federal, em Goiás, como Abadiânia, Alexânia e Cocalzinho de Goiás além do fortalecimento, consolidação e expansão das cidades preexistentes, como Goiânia e Anápolis. O impacto mais visível e perceptível no cotidiano de Goiânia e Anápolis certamente foi esse; 3) refinamento urbano-arquitetônico — Brasília trouxe um refinamento urbanístico e arquitetônico para a região, mesmo em cidades pequenas e novas, que foi sentido de imediato, à época ainda da construção da rodovia Brasília-Anápolis, antes do início da construção da nova capital. Novos técnicos, profissionais e empreiteiras chegavam à região, e com eles, saberes técnicos já praticados nas cidades mais desenvolvidas no território brasileiro passaram a ser praticados, em especial em Anápolis, por desejo de sua burguesia endinheirada. A arquitetura erudita se tornou mais comum nas cidades. A arquitetura popular deu um salto. A grande maioria das populações urbanas ali queria viver em um fragmento da modernidade trazida por Brasília. Vou me deter nestes três, mas teriam outros tão importantes quanto. Qual o papel exercido pela estrada de ferro no entre-Metrópoles? Ele mudou a partir da opção do governo de Juscelino Kubitschek pelo transporte rodoviário?  Durante a construção de Brasília, a Estrada de Ferro operou em seu máximo potencial. Ajudou diretamente no processo de configuração espacial inicial do que viria a ser o entre-Metrópoles anos depois. Produtos específicos para tirar Brasília do papel eram trazidos para o interior do Brasil por ela e, neste sentido, ela foi fundamental, inclusive para o cumprimento dos prazos estabelecidos para não deixar a nova capital como um grande canteiro de obras fantasma repleto de edifícios e infraestruturas incompletos. No entanto, posteriormente, entrou em ostracismo. O modo selecionado por Kubitschek, o rodoviário, tinha relação direta com as indústrias automobilísticas localizadas em São Paulo. Uma aposta, à época, extremamente modernizante para a economia e para a experiência no território. No entanto, se mostra falha, limitada e ultrapassada para nossos dias, especificamente para o setor logístico. É necessária uma combinação de infraestruturas de modos de transporte diferentes dada a complexidade que os territórios produtivos da hinterlândia foram conquistando ao longo do tempo. [caption id="attachment_329879" align="aligncenter" width="620"] Congresso Nacional, em Brasília | Foto: Reprodução[/caption]
Brasília deveria ter sido “tombada”? 
No livro “História da Arte Como História da Cidade” (Martins Fontes, 288 páginas), Giulio Carlo Argan define Brasília como uma cidade necrosada, justamente em função de ter nascido “tombada”. Em sua tese, Brasília ser reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade surge positivamente. Como equalizar essas duas perspectivas?  Parece inconcebível uma jovem cidade nascer e logo depois ser tombada com apenas 27 anos de idade. Este susto causado em 1987 à comunidade global, por sua vez, é causa de desconhecimento. Carlo Argan, ilustríssimo intelectual, provavelmente desconhecia a densidade histórica e o volume de pesquisas que levaram ao reconhecimento de Brasília como Patrimônio Cultural da Humanidade por parte da Unesco e sua posterior inscrição no Livro do Tombo Histórico por parte do IPHAN, em 1990. As restrições impostas por seu reconhecimento e tombamento não são as mesmas para uma cidade italiana. Brasília foi tombada, resumindo, nas escalas de sua paisagem. Não está fechada às transformações urbanísticas, pelo contrário. Se compararmos o Eixo Monumental de 1987 com o Eixo Monumental de 2021 levaremos um susto. A patrimonialização de Brasília não a congelou no tempo, não necrosou seu tecido urbano, mas garantiu, a partir de suas escalas, certas permanências evidentemente inovadoras e características para que as gerações futuras possam gozar de sua especificidade como cidade de origem modernista. Isso, para um país cujo setor imobiliário, como bestas-feras famintas, enxerga em cada metro quadrado de solo urbano a possiblidade de exploração e lucro, é um ato de resistência. Carlos Lacerda (que foi governador da Guanabara), sobrevoando Brasília, teria dito: “Então é aqui que o governo se esconde”. Gilberto Freyre considerava Brasília como uma cidade que não levou em consideração as pessoas comuns em sua concepção urbanística, privilegiando um discurso arquitetônico apologético ao poder do Estado. Como analisa essas críticas? Lembro-me bem dos adjetivos de Claude Lévi-Strauss sobre Goiânia quando a visitou em 1937: bárbaro, desumano etc. Estava errado. Intelectuais do gabarito de Argan, Jane Jacobs, Marshall Berman erraram quando se referiram a Brasília. É o caso de Gilberto Freyre. Brasília foi concebida em sua totalidade, mas as escalas, que a meu ver são as técnicas mais importantes do planejamento, foram preservadas. Há a escala Monumental, trecho destinado à manifestação do poder e imponência do Estado. Mas há a escala residencial, trecho destinado às pessoas e adequado ao caminhar humano. A segregação socio-territorial, que pode estar implícito no termo “pessoas comuns” não é problema de projeto, mas de gestão. Temos que separar estes fatores para criticá-los e atacá-los à medida que são responsáveis por certas características que a cidade ganhou ao longo do tempo. Já sobre a fala de Carlos Lacerda, pouco tenho a comentar. Diretamente interessado na permanência da capital federal no Rio de Janeiro, pouco contribuiu para um debate sério sobre o desenvolvimento da nação, a não ser reforçando a consciência da classe média brasileira de que o problema nacional é a corrupção. Uma ladainha cansativa, pouco esclarecedora e nada resolutiva. A fratura produzida pela desigualdade territorial só poderia ter sido resolvida com a ocupação das áreas esvaziadas. Equação simples. [caption id="attachment_329873" align="aligncenter" width="620"] Brasília e seu Entorno: conexões | Foto: Reprodução[/caption]
Asterisk City, Vector City e Knot City
O sr. definiu Goiânia como “Asterisk City”, Brasília como “Vector City” e Anápolis como “Knot City”, a partir de suas características históricas, arquitetônicas, urbanísticas e geográficas. Em linhas gerais, o que cada uma dessas definições representa? Goiânia, a Asterisk City, é fruto de seu planejamento inicial, assim como Brasília, a Vector City. Attilio Corrêa Lima projetou o Setor Central e o seu primeiro asterisco, a Praça Cívica, ponto para o qual convergem e irradiam vias. Sua expansão se deu por asteriscos. A malha viária de Goiânia é repleta de asteriscos, de norte a sul, de leste a oeste. Uma constelação. Lucio Costa projetou Brasília como o cruzamento de duas rodovias, dois eixos, dois vetores: norte-sul, Leste-Oeste. Este modelo vetorial foi replicado nas cidades-satélites e na proposição da trama de rodovias do Distrito Federal, estipulando uma experiência urbanística em vetores. Sobre ambas, Asterisk e Vector Cities, falamos da imagem original. Estas imagens foram produzidas por seus desenhos e por suas rasgaduras no chão ao serem implantadas, momentos devidamente fotografados e difundidos no imaginário popular por meio de jornais e revistas. Já Anápolis é a Knot City, a cidade nó que solda o território. Cidade preexistente que atuou como ponto de convergência das políticas territoriais para a consolidação do território goiano. É também a Knot City por reproduzir de modo sintomático mais evidente a pressão e a tensão da metropolização exercidas por Goiânia e por Brasília. Em Anápolis há vetores e asteriscos conjugados numa trama difícil de ser compreendida, dada sua relação com a superfície do solo.
Os fenômenos das cidades místicas
Sua tese analisa a presença de elementos como o Outlet Premium Brasília, enfocando a questão do consumo. Neste contexto, como pensar o consumo para fins “espirituais” em cidades como Abadiânia e mesmo do Vale do Amanhecer em Planaltina? Qual o papel dessas cidades “místicas” no eixo entre-Metrópoles? Os acontecimentos nas cidades místicas são verdadeiros fenômenos urbanos que precisamos nos atentar e estudar com cuidado. Há uma crise existencial, um cansaço ontológico e uma quebra de confiança nas instituições e processos públicos que explicam o aumento exponencial de visitantes e fiéis a estes equipamentos religiosos. Todos e todas, de todos os lugares do planeta, estão em busca de respostas e saídas para esse mal-estar. Em decorrência disso, quando ainda era doutorando, as expectativas eram as mais altas possíveis para a expansão do turismo religioso não somente em Abadiânia e Planaltina, mas em todo o percurso que incluía cidades históricas como Corumbá de Goiás e Pirenópolis e pequenos distritos como Olhos D’Água e Abadiânia Velha. Inclusive era de interesse político o aprofundamento deste modelo econômico que mobilizava centenas de milhares de pessoas todos os anos. [caption id="attachment_329896" align="aligncenter" width="620"] Vale do Amanhecer | Foto: Reprodução[/caption] É importante compreendermos o papel regional de cada cidade, mas também suas dinâmicas internas. Ambas estão intimamente relacionadas. O turismo religioso, no caso de Abadiânia que acompanhei de perto, foi o principal mobilizador da economia do município por aproximadamente três décadas. A diversificação econômica foi interrompida em decorrência do “sucesso” da Casa Dom Inácio Loyola, que recebia em média de 4,5 a 6 mil pessoas por semana de todos os lugares do planeta. Era comum encontrarmos pessoas com ensino fundamental concluído se comunicando em inglês ou espanhol. Incrível! Mas, com a queda do “João de Abadiânia”, ou melhor, João de Deus, tudo se alterou no município e os moradores estão agora com dificuldades de encontrar saídas para seus novos dilemas. O valor dos imóveis despencou, as pousadas estão vazias e o desemprego aumentou substancialmente. Do ponto de vista regional, é possível elencar desde a diminuição de passageiros internacionais no Aeroporto de Brasília e toda cadeia que subsidiava a movimentação das pessoas, como hotéis e pousadas, empresas de turismo, ônibus e taxis, restaurantes e lanchonetes, enfim, tudo foi afetado. Talvez para as metrópoles o impacto tenha sido pouco sentido, mas para Abadiânia foi avassalador. Quando trata do grande e crescente número de shopping centers ao longo do entre-Metrópoles chama esse fenômeno de “explosão do Efeito Genérico”? Essa expressão dialoga com o conceito de não-lugar? Indica uma expansão da classe média urbana consumidora e o estabelecimento de práticas padronizadas e higienizadas de consumo e lazer?  Esta é uma questão complexa. O conceito de Efeito Genérico dialoga ao mesmo tempo que não dialoga com o conceito de não-lugar. É certo que os shoppings centers criam uma atmosfera comum, similar em todos os lugares do planeta, portanto, genérica. Neste sentido, se o conceito de não-lugar se referir ao que os intelectuais estadunidenses nomearam nos anos de 1970, espaços e infraestruturas generalizados, sim. No entanto, o conceito de não-lugar, em especial a partir de Marc Augé, não pode mais ser atribuído aos shopping centers do entre-Metrópoles. Os shopping centers do entre-Metrópoles são referenciais, históricos, e o mais contraditório em relação às asserções de Augé, identitários. Com a privatização dos espaços públicos e o sequestro da atmosfera pública do comércio de rua (mercados e lojas) por parte dos shoppings centers, estes passaram a ser os locais preferidos da classe média (no sentido marxista e no sentido ambíguo e contraditório do IBGE), os templos de adoração das mercadorias e os pontos de convergência e de circulação de capital. Nossa sociedade encara o consumo como o fim e não o meio para a vida, uma espécie de ansiolítico para acalmar seu espírito agitado ou doses de morfina para estancar temporariamente suas dores existenciais. Não é à toa que ao passo que se multiplicam os shopping centers se multiplicam também as farmácias e drogarias no entre-Metrópoles. [caption id="attachment_329878" align="aligncenter" width="620"] Palácio do Planalto | Foto: José Cruz/Agência Brasil[/caption] Isso transforma os shopping centers nos lugares por excelência da nova vida urbana no entre-Metrópoles, ainda que, conforme Lineu Castello, sejam lugares geneticamente modificados, diferentes daquele ideal já experimentado na história décadas ou séculos atrás. Nosso mundo mudou. Não para o melhor, mas mudou. Ou o encaramos como está para propormos saídas possíveis ao ponto de inventarmos um mundo completamente diferente do passado e do presente, ou lamentaremos em milhares páginas e litros de lágrimas, com saudosismo depressivo e vingativo, o passado perdido, esquecido ou mesmo abandonado, paradoxalmente, por nós mesmos. Hoje, depois da tese, enxergo a multiplicação dos shoppings centers como sintoma de uma causa maior. Precisamos examiná-la. O sr. lembrou que Lucio Costa publicou “Brasília, Cidade que Inventei”. De fato, a cidade foi erguida por milhares de trabalhadores executando as ideias de, citando sua definição, “gênios” como Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Joaquim Cardozo, Roberto Burle Marx e Athos Bulcão. Segundo sua percepção, o projeto político de Juscelino Kubitschek sempre foi um norte, ou esses artistas tinham completa liberdade criativa? Quando me referi ao termo “gênios”, quis referenciar aqueles nomes recorrentes na historiografia e que se sobressaem na história da arquitetura de Brasília, gerando, inclusive, sombreamentos importantes sobre outros nomes e personagens. Mas, certamente, a recorrência destes nomes não é em vão. São, sem dúvidas, personagens fundamentais para a paisagem projetada e executada na capital federal. Por sua vez, havia forte alinhamento entre os ideais políticos de Kubitschek com estes arquitetos e artistas. Além do mais, a elite esclarecida do país da qual Kubitschek fazia parte advogava em favor do progresso nacional, ainda que pautada por uma compreensão de progresso em seu sentido positivista. A arquitetura, as engenharias, o urbanismo, as artes e o paisagismo seguiam essa compreensão e buscavam materializá-la, não só estruturada em termos de um projeto político, mas de ideal de civilização. A liberdade criativa estava, neste contexto, circunscrita aos princípios do modernismo racionalista, e neste repertório, sim, eles possuíam plena liberdade.

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