Opção cultural

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Crônica
Humor e jovialidade para esconder o despreparo e os interesses…

Tanto nos tempos machadianos como agora, a hipocrisia da seriedade, do moralismo, do bom cristão, é algo abundante; em Mateus 23, os hipócritas são chamados de “sepulcros caiados”

Hamlet: a tragédia imortal de Shakespeare — 2ª parte

Perguntaram a Barbara Heliodora: “Já fez análise?”; sua resposta: “Não. Porque vou recorrer a Freud se ele foi beber na sabedoria de Shakespeare para estruturar a psicanálise”

“Assombramentos”, de Daniel Emídio, registra a perplexidade ante o inusitado e a miséria humana

O médico e escritor assinala: “Há muitas dores no mundo, todas inúteis para a evolução da vida, mas úteis para deixar marcas na carne e na mente”

O Século das Luzes, de Carpentier, mostra a “presença” da Revolução Francesa no Caribe

Revisitada como farsa cruel pela pena barroca de Carpentier, a revolução impõe-se ao Caribe com a mesma violência de outras empresas do colonialismo europeu na história

A “Armadilha” da imagem e a sedução dos bons modos

Por Diogo Alves

É inconcebível pensarmos em um mundo contemporâneo sem imaginarmos uma existência centrada por imagens. Tudo o que vivemos, experienciamos e sentimos é, de certa forma, mediado por uma criação imagética. Seja através de uma série de fotografias feitas durante uma viagem ou posts em redes sociais de pessoas com as quais possuímos pouquíssimo contato não virtual, a realidade em que vivemos é, inevitavelmente, uma existência visual.

Imagem, todavia, em um mundo constituído de experiências visuais, não se limita exclusivamente ao olhar, mas relaciona-se também com a percepção que temos de certas existências. A maneira de se comportar, a pronúncia das palavras ao se comunicar, os gestos corporais e o posicionamento social diante das situações cotidianas constituem uma poderosa maneira de estabelecer uma imagem não visual que legitima as ações e a vivência de um indivíduo perante seu meio. Se bem encenada e repetida à exaustão, trata-se de uma poderosa máscara com a qual pode-se atravessar qualquer situação.

M. Night Shyamalan é um diretor que, desde seus primeiros trabalhos, preza pela imagem enquanto mediadora da narrativa. Trata-se de uma das características mais louváveis que um cineasta comercial pode ter. Pensar naquilo que vemos como um guia formal para o desenvolvimento da história, e não como uma muleta cosmética ou como algo complexo por mera firula visual. Nesse aspecto, Armadilha (2024), seu lançamento, é um de seus filmes que mais leva adiante a ideia da imagem enquanto legitimador da realidade, em especial devido às condições psicológicas de seu protagonista.

É justamente através da centralidade de Cooper, em uma interpretação de altos e baixos de Josh Harnett, que Shyamalan consegue demonstrar suas principais virtudes. Assistir a um de seus filmes, quer seja extraordinário como A Visita (2015), Tempo (2021) e Corpo Fechado (2000) ou ruim como O Último Mestre do Ar (2010), é ter a certeza de deparar-se com uma decupagem no mínimo profundamente criativa e estimulante, e Armadilha é um excelente exemplo disso. O que há de melhor aqui é a maneira como os planos relacionam-se, a princípio, com uma relação amorosa entre pai e filha, mas sempre inserindo um elemento de estranhamento, e o posterior uso dos ângulos não convencionais e das linhas de fuga conforme adentramos mais na perturbada psique de nosso protagonista, levando-nos a refletir sobre como a confiança cega em imagens pode nos levar a lugares sombrios tal qual ao simpatizarmos por um assassino em série psicótico.

Assim como em seus melhores trabalhos, o filme possui um dispositivo central muito claro e um recorte espacial profundamente bem definido. Em uma época na qual as superlotações em shows geram notórias tragédias, existe algo mais aterrorizante do que escapar de um silencioso cerco persecutório em um grande concerto de uma diva pop? Shyamalan aproveita-se muito bem da constante busca pelo escape enquanto dispositivo, e a arena lotada não só delimita muito bem os acontecimentos, mas serve também como gatilho para uma série de ações que levam a trama adiante e centralizam-nos ainda mais na psicose que media nossa visão perante aquele mundo.

É justamente na arena e no show que estão os grandes momentos da obra. Destaque para a forma como os close-ups de Cooper vão tornando-se cada vez mais invasivos e os espaços enquadrados em planos abertos são usados para gradualmente aproximá-lo dos policiais e dos agentes de segurança, ainda que sempre separados por um elemento como uma parede ou uma porta, ressaltando a dicotomia entre proximidade e impossibilidade, e especialmente, a maneira como a diva pop Lady Raven sempre é mostrada em planos gerais, muito distante e sempre enquadrada em conjunto com sua imagem maximalizada no telão. Não seriam as pessoas que mais admiramos e que mais nos tocam, para além de muito distantes de nossas vivências, meras imagens que projetamos a partir de performances de si mesmas? E o que acontece quando elas deixam de ser meros ícones acima de um palco?

Tais escolhas visuais e narrativas de um cineasta cujos filmes têm algumas das decupagens mais criativas do cinema contemporâneo, alinhada ao talento magistral de Sayombhu Mukdeeprom, diretor de fotografia tailandês que assina trabalhos como Me chame pelo seu nome (2017) e Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas (2010), notório pelo seu olhar único diante dos espaços e pelo domínio do uso da película, criam uma obra que não somente é uma confirmação de todo o cinema de Shyamalan, mas especialmente uma subversão de tudo o que há de marcante em suas obras. Para além da lógica da imagem, aqui distorcida para nos levar a refletir em como confiamos plenamente em tudo o que vemos, especialmente se for guiada por alguém com rosto e atitudes de bom moço, a ingenuidade possui um papel muito marcante, refletida por Jamie, trabalhador que confia demasiadamente e entrega tudo única e exclusivamente por confiar em demasia naquilo que vê.

A partir do momento em que abandonamos a arena, todavia, é que as coisas se tornam mais problemáticas. O que era muito delimitado nas ambientações do show vai se perdendo na maneira como Shyamalan anseia por subverter a si mesmo, e o abandono da lógica de reflexão imagética para a inserção nos meandros da psicopatia leva a uma série de situações frustrantes que anulam muito do que havia sido construído antes. Um homem aparentemente comum torna-se alguém quase tão poderoso e cheio de recursos com um super-herói, e tal mudança não poderia estar mais distante daquilo que há de melhor na obra.

A ingenuidade juvenil, simbolizada por uma situação que vai do céu ao inferno através de um piano e resolvida por uma rede social, sempre mediada pela figura de Lady Raven, agora não mais ícone e, portanto, enquadrada em planos próximos, contraposta com a infância perturbada justamente pela falta de inocência, apresenta um meandro muito preguiçoso para o desenrolar da obra, e é triste observar como as coisas desmoronam do meio do segundo ato em diante. Mesmo que central em seus filmes e já utilizada antes em Armadilha, a ingenuidade perdida aqui trata-se mais de uma artimanha batida de roteiro do que qualquer outra coisa. Mesmo os melhores momentos descambam em algo problemático, como a cena do encontro entre a esposa Rachel, iluminada à Rembrandt e consequentemente retratada sob um viés de sanidade, e o marido Cooper, com o rosto iluminado somente pela parca luz ambiente, já totalmente entregue à fúria, de uma construção visual impecável que desemboca em uma fraca conclusão que não poderia ser mais simbólica do desmoronamento que assola o filme.

Conceitualmente, a ideia de um mundo desmoronando a partir do momento em que a psicose abandona um ambiente controlado é o cerne da obra. Entretanto, Shyamalan confia tanto na subversão do que há de mais marcante em seu cinema e de um aprofundamento da lógica hitchcockiana do suspense que acaba tropeçando em suas próprias pernas. Às vezes, a consciência de que há uma bomba sob uma mesa e que ela pode explodir a qualquer momento é muito mais funcional do que acrescentar incontáveis elementos e artimanhas abaixo e acima dessa mesma mesa. E a conclusão não poderia ser mais simbólica de como as coisas se perdem completamente.

Ainda que M. Night Shyamalan seja um dos grandes nomes do cinema contemporâneo e um contador de história com uma das vozes mais singulares da Sétima Arte, é decepcionante pensar como, algumas vezes, acaba se perdendo nas peculiaridades e na profunda suavidade de seu próprio timbre. É notável que Armadilha possui uma primeira metade de almanaque, prendendo-nos em nossos assentos através de uma construção visual e narrativa extraordinária e imersiva, mas não deixa de ser frustrante observar como as coisas desmoronam próximas ao final. Shyamalan nos ensina aqui que não devemos confiar em demasia nas imagens para não nos decepcionarmos e nem nos surpreendermos negativamente. É uma pena que essa lição se aplique ao seu próprio filme.

CRÔNICA
Certamente a rolinha diria que foi Deus que a salvou

O caburé, menor corujinha do mundo, é uma ave de rapina em cujo cardápio entram pequenas aves, roedores, lagartos, pequenas cobras. Dias atrás, apareceu um na minha sacada e levou uma rolinha-roxa para sua ceia. Saí na sacada e o vi com a rolinha presa em suas garras na ponta de um poste. Eu tinha acabado de colocar comida para ela e outras iguais e também para outras de espécies diferentes: avoantes e periquitos-de-encontro-amarelo. Agora também está vindo chupins, que é uma ave malandra, que bota seus ovos em ninhos de outras espécies e cai no mundo.

Acredito que essa corujinha deve morar perto da minha casa, pois a ouço cantando frequentemente à noite. Seu canto é uma sequência de assobios. Já fotografei uma após capturar um calango, que comia mosquitos que se alimentavam das frutas de calabura caídas no chão. Os pássaros frugívoros fazem a festa na época de frutificação, já na floração, a festança é dos insetos, principalmente das abelhas. Em alguns parques de Goiânia, há calabura. Eu também faço a minha festinha com as frutas num pé que existe no Bosque dos Buritis.

Entre as rolinhas que escaparam da investida do caburé, uma acabou entrando na minha sala e pôs-se a voar desesperada batendo na parede sem encontrar a porta pela qual entrou. Inclusive derrubou o poeta e filósofo Thoreau da parede, ou melhor, uma foto do bardo americano. Ainda bem que a moldura não quebrou. Para evitar que ela se machucasse a ponto de não conseguir mais voar, entrei em ação: consegui pegá-la jogando sobre ela uma toalha de banho quando estava no chão. Senti, em minha mão, seu coraçãozinho batendo acelerado. Recomendei-lhe calma enquanto a segurava, dizendo que tudo estava bem. Levei-a até a sacada, depois de alguns instantes, recobrou as forças, bateu asas e foi embora.

Estou contando esse episódio da rolinha para relacioná-lo ao trágico acidente aéreo no qual morreram 62 pessoas, ocorrido recentemente em Vinhedo, cidade paulista. Um homem que não conseguiu embarcar, por ter chegado atrasado, disse, numa matéria televisiva, que foi Deus que o salvou da morte. Será mesmo? Tenho dúvida. Conversei com uma amiga de trabalho, que me disse ser espírita, sobre esse entendimento do homem quanto ao milagre que recebera. Perguntei-lhe onde estava a racionalidade de Deus em salvar um e deixar que 62 morressem. Me respondeu que os 62 fazem parte de um carma coletivo: que é quando, ao mesmo tempo, um grupo de pessoas morrem num evento ou tragédia, isso pelo destino delas de virem ao mundo e se defuntarem para marcar um fato ou acidente.

O fato de poder nos moldarmos por nossas escolhas, pela construção dos nossos pensamentos, isso me deixa incrédulo em relação ao destino, atrás do qual está o fato de que a morte tem a finalidade de expiar erros de nossas vidas anteriores. Se o conjunto da nossa vida é decorrente de forças exteriores e não vindas de nossas escolhas, para que então fomos dotados de faculdade mentais? Há um bom tempo, coisa de muitos anos, um jornalista goiano, que era espírita, falou num artigo que alguém certa vez o perguntou por que uma determinada criança nasceu com anomalia física, e ele respondeu que foi em virtude de erros de outras vidas daquela criança. Não consegui digerir a resposta dele. A subjetividade religiosa constrói verdades que até Deus duvida e a razão desconhece totalmente.

Sobre a rolinha que escapou da fome do caburé, penso que, se ela pensasse (numa capenguice subjetiva), certamente diria que foi Deus que a salvou e assim deixou a outra para encher o bucho do caburé. Não passo por tal questionamento metafísico, minha toada de vida é singela. O que sei mesmo (parafraseando Fernando Pessoa), é que quero uma casa no cimo de um outeiro, haja vista que meus olhos foram empurrados para longe de todo o céu; o horizonte me foi escondido, e isso pelo fato de as casas da cidade terem fechado minha vista à chave.

Rolinha-roxa, que, na fuga da coruja-caburé, entrou no apartamento | Foto : Sinésio Dioliveira

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

Márcio de Souza deixa um legado formidável para a cultura brasileira e lembranças inesquecíveis

O escritor e pesquisador estava se preparando para lançar seu livro sobre a Amazônia em Paris. Não deu tempo. Ele morreu no dia 12 de agosto

Vala Comum, de Rickley Marques, reflete sobre o Brasil ao abordar campanha pra prefeito de Goiânia

“Vala Comum” é daqueles romances que envolvem o leitor do início ao fim. O personagem principal é cativante na sua fragilidade, pois não é uma pessoa bem-sucedida

Romance de Mário Cláudio sobre Da Vinci e Salaì: uma história de amor entre mestre e discípulo

Obra polêmica do escritor português Mário Cláudio sobre o relacionamento entre Leonardo da Vinci e Salaì ganha tradução para o italiano

Pouca saúde e muita saúva: o Brasil de Macunaíma e Mário de Andrade

O romance não deixa de ser um documento literário que gera uma discussão sobre a identidade e o folclore, e sobre a própria moralidade — contrariando o autor

nos detalhes
Eu quero minha cama (mãe) de volta 

A parte mais difícil de ter o segundo filho é fazer com que o primeiro ainda se sinta amado e cuidado

Literatura
Escritores goianos lançam livros em evento na Livraria da Vila, em Goiânia

Estarão disponíveis os livros “Dicionário Cínico das Palavras da Moda”, de Ademir Luiz, e “As Casas do Sul e do Norte”, de Solemar Oliveira

Ensaio
Materialismo Religioso: os delírios da usura

A luta contra o materialismo religioso exige um retorno aos princípios fundamentais das religiões e uma renovação do compromisso com a justiça social e o serviço ao próximo

CINEMA
Uma canção para todos os nomes do mundo

Quando se pensa em algo tão plural e diverso como a existência humana, é difícil imaginar um elemento unificador comum à totalidade dos povos, independente dos aspectos sociais e vivências que os cercam, em todos os cantos do mundo. Apesar de a música, a arte e o futebol serem elementos muito presentes no cotidiano de grande parte das pessoas, ainda assim é complexo considerá-los como algo mais profundo que um ópio diário ou um elemento de fuga através dos sentidos e sentimentos. A religião possui tantas nuances e variações que sua mera existência enquanto conceito universal esbarra em suas próprias particularidades. Qual é, portanto, a linguagem universal à humanidade? Qual a canção que, quando tocada, faz dançar todos os nomes que existiram, existem e existirão sob o céu?

Um dos padrões mais fascinantes da natureza é o trabalho como força motriz para todo e qualquer progresso desenvolvimentista. Formigas e abelhas se distribuem e dividem-se em organizações centradas na força e na estruturação do ato de trabalhar. É somente assim que sobrevivem. Desde a pré-história, a humanidade desenvolveu-se e refinou-se social e tecnologicamente graças à evolução do trabalho. Trabalhar é, mais do que somente algo cotidiano, um elemento essencial para a sobrevivência na Terra. Não existe sobrevivência sem trabalho.

Curioso pensar, também, como não existe opressão surgida sem relacionar-se à divisão do trabalho. Toda forma de ataque e exploração é direta e inevitavelmente relacionada a um elemento estrutural causado em algum ponto pela exploração do trabalho. O racismo é herança dos modos de produção escravistas potencializados pelas Grandes Navegações, assim como o machismo e a misoginia patriarcal originam-se e perpetuam-se, segundo Friedrich Engels, desde a divisão doméstica do trabalho na pré-história. A homofobia surge a partir da predileção por um modelo de família cuja existência é voltada para a lógica de produtividade industrial.

Mais do que somente social, não há opressão que não possua um motivo econômico. Então, por que essas explorações ainda continuam tão presentes, uma vez que aqueles que a sofrem são profundamente mais fortes, numerosos e resistentes do que aqueles que lucram com esses malefícios, sentados em cima de uma estrutura assassina? E qual o valor social daquele que, enfraquecido e maltratado pelo tempo e pelo labor excessivo, não mais pode contribuir para o trabalho social? E quanto aos que não mais estão entre nós, qual valor possuem?

Quando se pensa nas coisas somente sob a ótica do valor, é inevitável enxergar tudo como algo passivo de um mero e oportuno descarte. De que vale uma ampla floresta cujas árvores ocupam um terreno que, se desmatado, poderia alimentar incontáveis pessoas? De que valem os falecidos que ocupam uma planície que, se inundada, servirá para gerar energia para todo um país? De que valem as vidas, os terrenos e as memórias que ousam entrar no inefável trilho do progresso? “O que chamam de progresso é quando o homem pega seu maldito dedo, aponta para a natureza e clama tê-la conquistado”.

Essa é uma frase dita por um dos moradores de Nazaretha, conjunto montanhoso de vales e planícies anteriormente chamado de Vale das Lamentações, onde pode-se escutar as lamúrias de todos aqueles que foram levados pela enchente e, não menos importante, onde centra-se a ação de “Isso não é um enterro, é uma ressurreição”, filme de 2019 dirigido por Lemohang Jeremiah Mosese. Realizador nascido no Lesoto, país enclave na África do Sul, e radicado na Alemanha, possui um cinema profundamente intrigante e autoral que se centra, além das noções de territorialidade e cultura, especialmente em metáforas bíblicas e em noções de martírio em relação aos seus personagens e narrativas. “Mãe, estou sufocando. Esse é meu último filme sobre você”, de 2016, já se apoia profundamente na Via Crucis como metáfora central para estabelecer uma relação transcendental entre maternidade, pátria e colonialismo.

Já em sua obra-prima de 2019, utiliza de uma centralização da noção cristã de martírio para relacionar as noções de ancestralidade e território, opondo-as à opressão econômica, apoiada na muleta do progresso que, em nome do futuro, destrói todo o passado e desidrata as possibilidades do presente. Interessante pensar em como Lemohang utiliza-se de pouquíssimos planos gerais para estabelecer as ações, preferindo os close-ups ou os planos médios que se aproximam através dos zooms, perpetuando os rostos de seus personagens e, consequentemente, suas emoções e vivências. Quando há um plano geral, atua muito mais para estabelecer os territórios selvagens, com a terra sempre ocupando um espaço diminuto no quadro em relação ao céu, o que parece nos dizer que, além de universal, trata-se de um acontecimento que transcende as meras noções de geografia, influenciando na essência do que é ser humano e em sua consequente ligação espiritual com o caminho que perpassa todos aqueles males.

 A centralidade dos planos detalhes e o uso de lentes mais abertas, aliada à proporção de tela próxima a um 4:3, cria um mundo, ainda que possua traços culturais e geográficos muito característicos do Lesoto e de seus habitantes, cujas nuances e idiossincrasias poderiam pertencer a qualquer um dos cantos do mundo. A luta de Mantoa, uma anciã brilhantemente interpretada pela mágica Mary Twala, contra um lobby empresarial gigantesco poderia tranquilamente ser transportada para o cerne de “Aquarius”, de Kléber Mendonça Filho, assim como o drama da expropriação perante uma enchente pode ser pensado também sob a ótica da obra literária “O chão sobre as águas”, da escritora goiana Simone Athayde. Para além de sua construção magistral e da valorização da cultura e dos valores locais, a força da obra de Lemohang Jeremiah Mosese está em sua universalidade, em especial ao tratar o não pertencimento como uma questão inerentemente humana.

 Em uma obra desse calibre e com uma delicada temática, em especial ao ser protagonizada por uma personagem idosa, é tentador abandonar a estética em detrimento de um teor social pasteurizado ou, pelo contrário, realizar algo socialmente abominável ao olhar somente para a estética. Lemohang, entretanto, é brilhante ao compor os planos de uma forma não somente a descrever muito bem os espaços com suas panorâmicas, mas especialmente ao controlar muito bem o que está em foco e o que está desfocado. Destaca-se como os funcionários da empreiteira, sempre responsáveis por destruições e ruídos externos, não somente jamais tem seus rostos mostrados, como nunca aparecem sequer em foco nos planos, reduzindo-se a meros borrões amarelos. Ainda mais fantástico é como os planos servem de holofote para a oralidade, ponto central da obra, simbolizada pela figura do Narrador e de seu instrumento musical, aflorada por diálogos e monólogos fantásticos que poderiam tranquilamente saírem de livros de poemas.  

Assim como, comumente, esperamos que um filme nos guie rumo a uma resolução narrativa, aguardamos da vida a inevitável chegada da morte. Mas e se ela não for o fim? E se todas as pessoas que cruzamos pelo caminho e que não mais podemos tocar nos guiam e apoiam ao longo de toda a caminhada? E se a ressurreição for não através da carne, mas através do martírio cujo caminho serve de inspiração e resistência para as gerações futuras? Assim como Mantoa nunca esteve viva em toda a obra, o Lázaro de “Isso não é um enterro...” não é ressuscitado pelo Messias, mas sim pela noção de coletividade que alimenta todos que o cercam e que, inspirados em sua dança e na luta de sua mártir, avançam rumo à morte certa, mas que é o único caminho através do qual podem permanecer vivos. “Nós acabamos onde começamos. E recomeçamos tudo de novo. Com novos sonhos, novas esperanças, novas ambições e perspectivas. Quem sabe talvez até com um novo Deus?”

CRÔNICA
Sono de pedra e flores do morador de rua

Fiquei intrigado com o fato de o homem, mesmo morando na rua, pegar as plantas (certamente numa lixeira) e levá-las para “adornar” seu lugarzinho de dormir na calçada suja. Aos seus olhos, as flores certamente serviram de enfeite