Pouca saúde e muita saúva: o Brasil de Macunaíma e Mário de Andrade
11 agosto 2024 às 00h00
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Rafael Oliveira Faria
Especial para o Jornal Opção
Nós estamos em um período do ano no qual que é possível observar ninhos de saúvas no cerrado brasileiro. Ao terminar de ler o clássico de Mário de Andrade, “Macunaíma”, eu refleti sobre essas formigas vermelho-brasa e seu habitat nas terras dos brasis no sentido do mantra do herói imoral andradeano: “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são” (página 69). Se trata de uma sentença bastante simbólica, talvez até com um caráter ignoto para muitos. Explicarei seu sentido nesse ensaio e contextualizarei o objetivo de Mário de Andrade em sua excepcional obra.
Macunaíma: o herói sem nenhum caráter é um dos romances mais populares da primeira fase do Modernismo em 1922, o qual foi publicado em 1928. Mário de Andrade chamou o livro de “rapsódia”, isto é, uma prática cultural popular que tem um sentido de trova e o seu locutor pode ser um menestrel, ou melhor, um poeta do povo. O autor que representava a vanguarda modernista defendia uma licença poética que tecnicamente era escrita em um “português popular”, considerado errado pela norma culta da língua portuguesa. No entanto, tanto na prosa como no verso, Andrade defendia a fuga de padrões ortográficos, de pontuação e estrutura textual: “Lembrança da minha marvada” (p. 139); “Deixa ver si anzol é bom” (p.127). O que ele quis simbolizar é uma colcha de retalhos que representa regionalismos e histórias folclóricas de um Brasil heterogêneo, mas deitado sob o leito do cruzeiro do sul, ou melhor, o “Pai do Mutum”!
E as formigas? O que representam? Ora, em um país tropical como o nosso, a brasa das saúvas pode ser um mantra para todas as regiões do Brasil onde nosso herói andradeano pisou, e descobriu “pouca saúde e muita saúva”. Talvez! Ou talvez o nacionalismo não importe para essas desventuras sínicas. “Ai! Que preguiça!” só de pensar em política! Mário de Andrade destacou sobre suas obras: “peço que esse livro seja tomado como pergunta, não como solução que eu acredite sequer momentânea. […]” (p. 82). Há de se interpretar que o autor não tinha a intenção de criar um manifesto (literário) sobre sua pátria para fins políticos e culturais: “Evidentemente não tenho a pretensão de que meu livro sirva pra estudos científicos de folclore.” (p. 148). A falta de escrúpulo ortográfico da obra e a desonestidade de Macunaíma provavelmente seja apenas uma brincadeira com palavras e contos, uma certa ironia voltairiana adaptada aos trópicos.
No entanto, temos a legitimidade – contrariando o autor – de usar seu livro para estudar o folclore, pois se trata de uma ótima fonte para pensar a cultura regional e nacional dentro do contexto do modernismo: a dualidade da tradição com a modernidade paulistana de 1922. Porém “o herói dessa brincadeira” se justifica no fato de Mario de Andrade não querer ser levado a sério para pesquisas sociológicas e antropológicas. A falta de moralidade, segundo ele, é bastante vista em lendas primitivas e livros religiosos: “Este livro não passa de uma antologia do folclore brasileiro” (p. 147). E com o modernismo houve a fuga de padrões literários mais tradicionais como o lirismo e o parnasianismo: uma brincadeira com o folclore e com as letras.
Enfim, esse pequeno texto intenta desvendar um pouco a clássica obra andradeana. É um livro divertido para se ler. Muitas pessoas podem falar que é uma obra com falta de escrúpulo, no entanto não deixa de ser um documento literário que gera uma discussão sobre a identidade e o folclore, e sobre a própria moralidade – contrariando novamente o autor. Uma antologia folclórica com tamanha altivez e ironia, satisfaz as papilas gustativas de um leitor atento, e gera controvérsias de antíteses e sínteses sobre o sentido da estória. E a solução dessa dialética? Não irei contrariar o autor novamente.
Rafael Oliveira Faria é historiador e professor.
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