Goiás na biografia de Mário de Andrade escrita por Jason Tércio
01 setembro 2019 às 00h00
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O avô foi governador de Estado e o pai também trabalhou na Cidade de Goiás. Um médico goiano presenteou o escritor com um cocarzinho
“Em Busca da Alma Brasileira — Biografia de Mário de Andrade” (Estação Brasil, 543 páginas), do escritor e jornalista Jason Tércio, é, disparado, o melhor estudo da vida do verdadeiro pai da Semana de Arte Moderna de 1922 (Graça Aranha é, no máximo, o padrasto). Não há louvaminhas; trata-se de uma obra a favor, mas tão distanciada quanto nuançada. O autor não diz com as palavras a seguir, que são minhas, mas, sem Mário, a Semana seria, no máximo, Meia Semana de Arte Moderna. O autor de Macunaíma é uma civilização complexa que o “arqueólogo” Jason Tércio redescobre e explica detalhada e competentemente. Fica-se com a impressão de que a biografia contém tudo (até a altura do escritor, 1,87m; ressalta-se também o fato de que Mário cantava, e bem) — o que não é, claro, a pretensão do pesquisador. Quem é “H.”, um dos amores do escritor, que, além de homens, amou mulheres? Mário era bissexual ou pansexual, tido indica. Anita Malfatti confessou amá-lo e o escritor parecia amar Tarsila do Amaral.
Neste texto prendo-me ao que Jason Tércio recolhe sobre Goiás. Joaquim de Almeida Leite Moraes¹, avô de Mário, foi nomeado pelo presidente do Conselho de Ministros, José Antonio Saraiva, para governar Goiás. Na época, governador era chamado de presidente e Estado de província. Como interino, sua missão era “implantar na região a reforma eleitoral que ficaria conhecida como Lei Saraiva”.
Ao ser nomeado, Leite Moraes convidou Carlos Augusto Pereira de Andrade, pai de Mário (que, claro, ainda não era nascido). Os dois “percorreram cerca de 800 quilômetros a cavalo” para chegar a Goiás. “A caravana de Joaquim e Carlos Augusto chegou na manhã de 31 de janeiro de 1881 à Cidade de Goiás. Ruas estreitas e tortuosas, sem calçadas nem iluminação pública, algumas capelas, casas de adobe e 6 mil habitantes. Carlos Augusto foi nomeado oficial de gabinete do novo governador e diretor da Tipografia nacional, que imprimia o ‘Correio Oficial’”, relata Jason Tércio.
Ao mesmo tempo em que administrava Goiás, Leite Moraes escrevia um diário (o crítico literário Antonio Candido organizou “Apontamentos de Viagem” — publicado pela Editora Companhia das Letras, 344 páginas). O presidente do Estado dizia que seu objetivo era “prestar um bom serviço” ao Brasil — “a este pobre país desconhecido completamente de seus próprios governos, de seus historiadores, de seus geógrafos”. Jason Tércio complementa: “Uma frase que poderia ser o lema de seu futuro neto”.
Concluído o trabalho, em menos de um ano, Leite Moraes e Carlos Augusto retornaram para São Paulo, agora de barco, via rios Tocantins e Araguaia — “um trajeto mais longo, porém mais confortável”. Em fevereiro de 1882, a dupla estava em Sampa.
Carlos Augusto amealhou um “pé-de-meia razoável… no isolamento goiano”, mas voltou a trabalhar, como tipógrafo (não era jornalista, esclarece Jason Tércio), no jornal “Gazeta do Povo”.
Leite Moraes afeiçoou-se a Carlos Augusto, tanto que o jovem “foi responsável pela impressão, na tipografia do jornal, do livro ‘Apontamentos de Viagem’, escrito por Joaquim com base no diário escrito em Goiás”. Corria o ano de 1882.
Viúvo, Carlos Augusto casou-se, em julho de 1887, com Maria Luiza de Moraes Andrade. Mário, um dos filhos do casal, nasceu em 9 de outubro de 1893. O escritor era “neto de duas avós mulatas paterna e materna, primas entre si, ambas de origem pobre, mas que tiveram ascensão social. Durante toda a vida teria consciência dessa miscigenação, que seria um dos motivos de seu interesse profundo pela diversidade cultural brasileira”. Certa feita, convidado para dar palestras nos Estados Unidos, decidiu não ir, apontando que o racismo era forte no país. Quando a interlocutora deixou de notar seus traços de negro, o escritor ressaltou que sofria pelos outros.
O general e o médico goianos
A Revolução de 1930 colocou São Paulo em polvorosa. O presidente Getúlio Vargas, que havia chegado ao poder por intermédio de um golpe, tentava conciliar, mas não conseguia, até porque não nomeava gente do agrado dos paulistas. Ele nomeou para ministro da Guerra o general da reserva goiano Augusto Inácio do Espírito Santo Cardoso. “A escolha recebeu críticas dos opositores civis e militares”, anota Jason Tércio. Logo depois, em 1932, explodiu a Revolução Constitucionalista. “Já na primeira semana do conflito Mário decidiu aderir. Omitir-se seria aparentar covardia ou, pior, ser visto com desconfiança, um ‘mau paulista’. Foi à sede da Liga [de Defesa Paulista], na Rua Barão de Itapetininga, 6, e se ofereceu para qualquer função.”
Depois de morar um tempo no Rio de Janeiro, Mário de Andrade volta para sua casa, na Rua Lopes Chaves, na Barra Funda, em São Paulo. Ao reorganizar seu escritório, jogou coisas velhas fora, deu algumas a amigos, mas “não teve coragem de dar nem de jogar fora um cocarzinho da Ilha do Bananal, presente de um médico de Goiás”. Quem seria o médico? Espera-se que Gil Perini, Hélio Moreira, Fernando Cupertino (compositor, pianista) e Heitor Rosa, médicos e escritores competentes, descubram alguma coisa e nos ajudem a saber quem era o médico.
Na página 515, Jason Tércio cita “Normas Para a Pronúncia do Português Brasileiro no Canto Erudito” (era um assunto que Mário apreciava e sobre o qual escreveu), de Adriana Kayama e outros. O pesquisador informa que o trabalho é de Goiânia.
O poeta e prosador Mário de Andrade, um gênio literário — que orientou Drummond de Andrade, Fernando Sabino e Pedro Nava e ajudou a criar o órgão que antecedeu o Iphan —, viveu apenas 51 anos. Ele teve um infarto e morreu em 25 de fevereiro de 1945. O Brasil se tornou modernista (ao menos no campo cultural) graças, em larga medida, ao seu imenso talento e à sua capacidade de escrever e influenciar outros escritores e intelectuais. Depois de 1922 e de Mário de Andrade, o Brasil se tornou mais brasileiro e, ao mesmo tempo, menos provinciano.
Nota
¹ No livro “Mário de Andrade — Exílio no Rio” (Rocco, 237 páginas), Moacir Werneck de Castro escreve (página 63): “Joaquim de Almeida Leite Moraes foi presidente de Goiás de fevereiro a dezembro de 1881. Substituiu no cargo Aristides de Souza Spínola, avô de Anísio Teixeira, que governou a província um pouco menos de dois anos. Na viagem de volta, desceu o Araguaia e a seguir o Tocantins, até Belém, num barco, e daí até o Rio, de vapor. Seus ‘Apontamentos’ sobre essa viagem aventurosa, segundo Gilda de Mello e Souza, inspiraram passagens de ‘Macunaíma'”.