Edmar Monteiro Filho

Aprendi com o professor Jorge Coli que a obra de arte não se reduz a mera tradução das ideias de seu autor. Uma vez concluídos, o quadro, a peça musical, a escultura, o texto literário não mais exprimem o pensamento do artista, cada obra assumindo-se como “um sujeito que intervém no mundo” e, portanto, pensa por si mesmo. Dessa forma, a obra de arte fala ao mundo por meio das diversas interpretações que suscita e que passam a fazer parte de sua constituição.

O quadro de Delacroix sobre a Liberdade

O famoso quadro de Eugène Delacroix “A Liberdade Conduzindo o Povo”, pintado em 1830, retrata a insurreição popular que levou à derrubada de Carlos X de França, mas fracassou em seu objetivo principal: o retorno do regime republicano. Sobre os cadáveres em primeiro plano, a alegoria à Liberdade — a mulher com os seios nus, empunhando o fuzil e a bandeira tricolor — conduz a multidão a partir do centro da tela. Outras figuras de destaque são o burguês, o menino com suas duas pistolas, o policial, o operário, o estudante, simbolizando as distintas classes unidas na luta. Esses personagens que avançam, rompendo a barricada, encarnam o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

A intenção do autor de sacralizar o levante popular salta aos olhos. A liberdade conduz essas figuras determinadas por sobre os escombros da monarquia absolutista para conquistar o poder. A obra segue seu percurso no tempo, chegando até nós como eloquente metáfora de uma conquista coletiva do gênero humano, embalada pelos ideais iluministas e pelo culto à “Deusa Razão”. Mas, ainda que retrate um momento heroico, respingam sobre a tela os relatos dos pecados da revolução e dos primeiros anos da república — o “Período do Terror” —, cujo ícone é a guilhotina.

Quando Delacroix criou sua imortal homenagem ao espírito revolucionário, a França já atravessara as guerras napoleônicas e a restauração Bourbon, caminhando para uma monarquia parlamentar. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, nas colônias francesas do Caribe, a revolução ainda vivia em estado bruto, impondo suas diretrizes racionais à custa da mais pura insânia e da opressão desmedida, da mesma forma como o grande empreendimento comercial da colonização impusera a escravidão e a violência sob o discurso do amor a Deus.

Alejo Carpentier: escritor cubano | Foto: Reprodutor

O Século das Luzes, de Alejo Carpentier

“O Século das Luzes” (Global Editora, 365 páginas, tradução de Stella Leonardos), do cubano Alejo Carpentier, retrata um personagem pouco conhecido do empreendimento revolucionário francês na América Latina: Victor Hughes.

A história tem início em Havana, quando três adolescentes, os irmãos Carlos e Sofia e o primo Estevão, vivem num casarão repleto de livros, dedicados à leitura e às brincadeiras, enquanto Dom Cosme, um desonesto testamenteiro, administra o comércio herdado do falecido pai de Carlos e Sofia.

O Século das Luzes: tradução de Stella Leonardos, da Global | Foto: Jornal Opção

O universo de fantasia em que vivem os adolescentes é invadido repentinamente pela figura de Hughes, comerciante, aventureiro e simpatizante do ideário da Revolução Francesa. O francês auxilia na cura da renitente asma que acomete Estevão, choca e ao mesmo tempo encanta Sofia com seus modos livres e seduz Carlos ao desmascarar Dom Cosme, o testamenteiro. Extremamente cultos, mas inexperientes nas questões do mundo, os três acabam envolvidos na onda das perseguições políticas desencadeadas contra os disseminadores das ideias revolucionárias.

Carpentier narra a trajetória de Hughes em suas aventuras pelo Caribe. Como governante da ilha de Guadalupe e da Guiana Francesa, exporta a revolução para as ilhas vizinhas, com o apoio de um exército de escravos libertos e usando a onipresente guilhotina para afastar oposições. As mudanças de ares na política da França chegam tardiamente e em ondas atenuadas às distantes colônias.

O Século das Luzes: tradução de Sergio Molina, da Companhia das Letras | Foto: Jornal Opção

Sob o olhar de Estevão, Hughes administra as flutuações e contradições do poder revolucionário: os escravos libertos voltam à posse de seus antigos proprietários, os jacobinos exilados são reabilitados para novamente caírem em desgraça, os líderes de um dia, passam a inimigos no seguinte. Hughes, habilidoso estrategista, equilibra-se para conservar a cabeça sobre os ombros, na medida em que mantém fluxo constante de bens à metrópole por meio do saque de navios carregados de riquezas, em trânsito pelo mar do Caribe.  

Revisitada como farsa cruel pela pena barroca de Carpentier, a revolução impõe-se ao Caribe francês com a mesma violência e arbitrariedade de outras empresas do colonialismo europeu ao longo da história. A imagem da liberdade avançando em direção ao futuro, mas de armas em punho e pisoteando os caídos — conforme exposta na pintura de Delacroix — fala eloquentemente, trazendo, mais que um louvor ao espírito vitorioso da República, as contradições próprias a todos os grandes empreendimentos humanos.

Edmar Monteiro Filho é escritor e crítico literário. É colaborador do Jornal Opção. Email: [email protected]