Marina Teixeira da Silva Canedo

Especial para o Jornal Opção

“A gente fala, mas não desfala. O que foi dito, mal dito ou bem dito, está dito. Não há volta.” — Daniel Emídio, no livro “Assombramentos”

O Núcleo de Psicanálise de Goiânia prestou, recentemente, homenagem ao médico Daniel Emídio de Souza, por ocasião do lançamento de seu livro “Assombramentos”.

Daniel Emídio de Souza é um médico-psicanalista, com intensa atividade em sua área profissional. É natural do Estado de Goiás e radicado em Goiânia, onde exerce suas atividades clínicas e didáticas.

Graduou-se em Farmácia pela UFG e em Medicina pela UnB. É psiquiatra, com formação em Psicanálise, e membro da Sociedade de Psicanálise de Brasília e do Núcleo de Psicanálise de Goiânia. Também é membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores — regional de Goiás (Sobrames).

Além das atividades no campo da psique humana, Daniel Emídio é um escritor consagrado, tendo publicado 16 livros, entre romances, contos e minicontos, com predominância na produção de contos. Seu primeiro romance foi “A Vila do Espanto”, seguido por “Um Professor Rural”.

Percebe-se, na criação literária, sua formação psicanalítica e a influência, vinda da infância, dos ensinamentos da Fé Reformada, os quais foram marcantes na formação de sua personalidade, muito embora não seja adepto de nenhuma corrente religiosa e nem professe interesse por religião. Esses valores e princípios, adquiridos em seu ambiente familiar, bem como o rigor psicanalítico, são percebidos, em seus escritos, no cuidado no desvendamento das superstições e das crendices, tão comuns no interior do Estado, e praticadas geralmente pela população de fé católica. Também são percebidos em sua preocupação em ajudar àqueles que o procuram.

Seu último livro, “Assombramentos” (Trilhas Urbanas, 146 páginas), é constituído por uma coletânea de 17 contos. O título, “Assombramentos”, traduz bem a perplexidade perante o inusitado, o amedrontador e a miséria humana, seja ela material, psíquica ou a soma de ambas.

O narrador é um observador atento. Narrado na terceira pessoa, mas em alguns contos na primeira, o narrador utiliza-se das reminiscências da infância do autor em contos que relatam o pavor infundido nas crianças como forma de domínio e controle; é o caso do conto “Quem tem medo do ‘Pé de Bode’ (pág. 21). É, o narrador, ao mesmo tempo o menino e o psicanalista, na troca de informações e na elaboração das mesmas pelas lentes do profissional. Outros contos dizem respeito ao sofrimento de crianças quando da descoberta da morte, como uma fatalidade inevitável e arrasadora, como nos contos “Perplexidades” (pag.53),  “Abandono” (pag.17) e “Onde estão os anjos?” (pág. 11).

Outros, são frutos de sua observação e experiências em hospitais psiquiátricos e plantões médicos na Santa Casa de Misericórdia de Goiânia, como nos contos “Quadras da Vida” (pag.93) e “Comandante e Comandados” (pag. 129). Outros, de sua experiência em consultório, ao lidar com as angústias, medos, ansiedades, inseguranças e demais sofrimentos emocionais, que levam as pessoas a necessitarem de ajuda profissional, como no conto intitulado “E agora?” (pag. 103). Também há contos recolhidos de histórias aleatórias, vistas pela cidade, como observador anônimo; tais são os casos de “História de Uma Moeda” (pag.41) e “Andarilhos” (pag. 47). São contos, histórias reais ou não, voltados para o funcionamento da mente humana e sua interrelação com o contexto social.

Este livro, “Assombramentos”, cujo conteúdo leva o leitor a emocionar-se do começo ao fim, é um relato das dores e da miséria humanas, travestido em ficção, mas bem entendido em nossa triste realidade. É o autor quem diz, no prefácio: “Há muitas dores no mundo, todas inúteis para a evolução da vida, mas úteis para deixar marcas na carne e na mente.”

Sua análise psicológica se aprofunda na avaliação de cada personagem, sejam eles fictícios ou não, como também revela a estreita relação de vários deles com as injustiças sociais e a ignorância, vítimas que são dessas.

São narrativas reveladoras das angústias do viver e do morrer, e de distúrbios psiquiátricos que acometem pessoas em suas interrelações com o contexto social.

A literatura produzida pelo autor encontra paralelismo temático na literatura nacional, como em “Vidas Secas”, do grande escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953). No âmbito regional, há certa semelhança com contos do nosso eminente escritor Bernardo Élis, no que concerne à preocupação com o sofrimento e as injustiças sociais, embora difiram em estilos de linguagem e em recursos expressivos. Além do mais, a análise dos personagens feita por Daniel Emídio concentra-se, principalmente, nos aspectos psicológicos. Em suma, o sofrimento humano está presente nas obras dos dois escritores, como as duas faces de uma mesma moeda.

Ao senso comum pode parecer que literatura e psicanálise sejam duas expressões do conhecimento bem distintas e sem relação entre si. Engana-se quem assim pensa. Elas são filhas da mesma mãe e se nutrem das mesmas fontes, embora não só das comuns a ambas. Um escritor que constrói seus personagens sem um conhecimento mínimo da alma humana está destinado ao fracasso. O grande dramaturgo e poeta inglês William Shakespeare é considerado o maior entre seus pares, em todos os tempos, devido à maestria como construiu o perfil psicológico de seus personagens. Os sentimentos básicos da alma como o ciúme, a inveja, o amor e o ódio, estão bem representados em suas personalidades literárias.

Psicanálise e literatura

O fato de Daniel Emídio exercer exemplarmente duas atividades distintas, psicanálise e literatura, torna-o um exemplo do amálgama que sempre existiu entre estas duas correntes do saber.

A psicanálise sempre andou acompanhada pela literatura, desde seus inícios freudianos, buscando nesta os argumentos e confirmações para suas formulações. As epopeias homéricas, a mitologia greco-romana e as tragédias de Sófocles, Eurípedes e Ésquilo deram à psicanálise subsídios explicativos para a condição humana e seus complexos relacionamentos.

Existe na mitologia uma linguagem simbólica da psique. A psicanálise desvendou esse simbolismo e utilizou sua nomenclatura, originária de um Olimpo de deuses antropomórficos, pertencente à cultura greco-romana. A Literatura Clássica Antiga é fundamental para o entendimento de quem somos e do que fazemos. As histórias mais fantásticas e fantasiosas da mitologia têm seu desvendamento na psicanálise.

O Mito do Herói, o Canto das Sereias, o Mito de Narciso, o Mito de Eros e Psichê e outros, serviram à psicanálise como explicações exemplares, sintéticas e simbólicas do comportamento e da psique humanos. Das tragédias gregas foram utilizadas as tramas, entre outras, das peças “Édipo Rei” e “Electra” para a formulação dos conceitos do Complexo de Édipo e de Electra. A psicanálise transformou-os em importantes conceitos psicanalíticos.

O crítico literário norte-americano Harold Bloom (1930-2019), ao escrever seu livro “O Cânone Ocidental”, colocou William Shakespeare no centro do cânone, como o principal criador da literatura do Ocidente. Freud, o pai da psicanálise, bebeu das águas shakespeareanas e absorveu delas o grande conhecimento que o bardo inglês tinha da alma humana. Vários foram seus textos, ensaios e cartas, em que tratou do estudo de personagens como o príncipe Hamlet, Macbeth, o rei Lear e suas três filhas (Cordélia, Regana e Goneril), Otelo e Iago, que foram objetos de análise para a construção psicanalítica. É a literatura validando as pesquisas e as descobertas da então recém-criada Psicanálise.

Daí vemos a grande troca de conteúdos entre literatura e psicanálise. Esta empenha-se no conhecimento da alma humana para a superação dos obstáculos que lhe retiram a satisfação e o sentido da vida. E a vida não teria tanto sentido sem a arte e a literatura.

Daniel Emídio de Souza vai construindo sua carreira profissional e subindo os degraus do conhecimento literário, edificando um sólido legado que muito engrandece a literatura feita em Goiás, a Sociedade de Psicanálise e a todos os seus leitores.

Marina Teixeira da Silva Canedo é poeta, cronista e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.