Certamente a rolinha diria que foi Deus que a salvou
14 agosto 2024 às 14h02
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O caburé, menor corujinha do mundo, é uma ave de rapina em cujo cardápio entram pequenas aves, roedores, lagartos, pequenas cobras. Dias atrás, apareceu um na minha sacada e levou uma rolinha-roxa para sua ceia. Saí na sacada e o vi com a rolinha presa em suas garras na ponta de um poste. Eu tinha acabado de colocar comida para ela e outras iguais e também para outras de espécies diferentes: avoantes e periquitos-de-encontro-amarelo. Agora também está vindo chupins, que é uma ave malandra, que bota seus ovos em ninhos de outras espécies e cai no mundo.
Acredito que essa corujinha deve morar perto da minha casa, pois a ouço cantando frequentemente à noite. Seu canto é uma sequência de assobios. Já fotografei uma após capturar um calango, que comia mosquitos que se alimentavam das frutas de calabura caídas no chão. Os pássaros frugívoros fazem a festa na época de frutificação, já na floração, a festança é dos insetos, principalmente das abelhas. Em alguns parques de Goiânia, há calabura. Eu também faço a minha festinha com as frutas num pé que existe no Bosque dos Buritis.
Entre as rolinhas que escaparam da investida do caburé, uma acabou entrando na minha sala e pôs-se a voar desesperada batendo na parede sem encontrar a porta pela qual entrou. Inclusive derrubou o poeta e filósofo Thoreau da parede, ou melhor, uma foto do bardo americano. Ainda bem que a moldura não quebrou. Para evitar que ela se machucasse a ponto de não conseguir mais voar, entrei em ação: consegui pegá-la jogando sobre ela uma toalha de banho quando estava no chão. Senti, em minha mão, seu coraçãozinho batendo acelerado. Recomendei-lhe calma enquanto a segurava, dizendo que tudo estava bem. Levei-a até a sacada, depois de alguns instantes, recobrou as forças, bateu asas e foi embora.
Estou contando esse episódio da rolinha para relacioná-lo ao trágico acidente aéreo no qual morreram 62 pessoas, ocorrido recentemente em Vinhedo, cidade paulista. Um homem que não conseguiu embarcar, por ter chegado atrasado, disse, numa matéria televisiva, que foi Deus que o salvou da morte. Será mesmo? Tenho dúvida. Conversei com uma amiga de trabalho, que me disse ser espírita, sobre esse entendimento do homem quanto ao milagre que recebera. Perguntei-lhe onde estava a racionalidade de Deus em salvar um e deixar que 62 morressem. Me respondeu que os 62 fazem parte de um carma coletivo: que é quando, ao mesmo tempo, um grupo de pessoas morrem num evento ou tragédia, isso pelo destino delas de virem ao mundo e se defuntarem para marcar um fato ou acidente.
O fato de poder nos moldarmos por nossas escolhas, pela construção dos nossos pensamentos, isso me deixa incrédulo em relação ao destino, atrás do qual está o fato de que a morte tem a finalidade de expiar erros de nossas vidas anteriores. Se o conjunto da nossa vida é decorrente de forças exteriores e não vindas de nossas escolhas, para que então fomos dotados de faculdade mentais? Há um bom tempo, coisa de muitos anos, um jornalista goiano, que era espírita, falou num artigo que alguém certa vez o perguntou por que uma determinada criança nasceu com anomalia física, e ele respondeu que foi em virtude de erros de outras vidas daquela criança. Não consegui digerir a resposta dele. A subjetividade religiosa constrói verdades que até Deus duvida e a razão desconhece totalmente.
Sobre a rolinha que escapou da fome do caburé, penso que, se ela pensasse (numa capenguice subjetiva), certamente diria que foi Deus que a salvou e assim deixou a outra para encher o bucho do caburé. Não passo por tal questionamento metafísico, minha toada de vida é singela. O que sei mesmo (parafraseando Fernando Pessoa), é que quero uma casa no cimo de um outeiro, haja vista que meus olhos foram empurrados para longe de todo o céu; o horizonte me foi escondido, e isso pelo fato de as casas da cidade terem fechado minha vista à chave.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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