Márcio de Souza deixa um legado formidável para a cultura brasileira e lembranças inesquecíveis
13 agosto 2024 às 19h44
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Maria José Silveira
Quero falar — um pouquinho que seja — sobre Márcio Souza.
Márcio foi um amigo extraordinário desde que o conheci quando, com Felipe [Lindoso], a caminho do nosso exílio no Peru, passamos uns dias em Manaus — eu, pela primeira vez; Felipe, saindo da prisão. Amigo-irmão do Felipe desde a adolescência, Márcio nos encontrou em um barzinho à margem do Rio Negro, em um papo que durou horas — aliás, era sempre assim com ele, o papo durava horas.
Quando voltamos do Peru, e ele acabava de lançar seu primeiro grande sucesso — “Galvez, Imperador do Acre” — começamos a pensar na grande aventura de, sem dinheiro, abrirmos uma editora no Rio, onde Felipe e eu estávamos morando. Com a generosidade do meu irmão Otávio, que nos deu o que chamaríamos, esperançosa e ironicamente, de nosso “capital inicial”, abrimos a Marco Zero em uma casinha na Travessa da Paz, no Rio Comprido.
Durante 18 anos, com nossos acertos e erros, a Editora Marco Zero resistiu bravamente até que, pela força de um capitalismo selvagem e burro — encarnado em nosso quarto sócio, então majoritário —, ela nos foi “legalmente roubada”, e destruída.
Nos 18 anos da Marco Zero, nossa amizade se fortaleceu pelo contato intenso e cotidiano ou — quando mudamos a sede para São Paulo e Márcio continuou no Rio — pelo telefone e reuniões constantes em uma ou outra cidade. Posso ter péssima memória, mas Felipe há de concordar comigo: nunca tivemos, na Marco Zero, sequer um leve desentendimento. Tínhamos a mesma concepção sobre o que desejávamos para a editora e a vida, e isso não mudou.
Foi uma parceria harmoniosa, alegre, frutífera. Também em vários projetos que desenvolvemos depois.
Era muito divertido trabalhar com Márcio. Ele era tranquilo, atento, delicado, irônico/ sarcástico. De enorme criatividade e erudição. Sempre na dele. Eu brincava: “Nunca te vi chateado, nem irritado, nem brigando com ninguém, Márcio. Se um dia você for brigar, me chama que eu quero ver”. Ele não me chamou, mas sei que, nas horas que precisou, ele foi certeiro.
Depois do fim da Marco Zero — continuamos grandes amigos, com telefonemas constantes e hospedagem do Márcio em nossa casa sempre que vinha a São Paulo. Felipe continuou na área do livro, como um dos diretores da CBL e eu, por fim, decidi começar a escrever — realizando uma antiga certeza que tinha desde a meninice, a de que um dia seria escritora.
Foi ele quem escreveu a quarta capa do meu primeiro romance, “A Mãe da Mãe de Sua Mãe e Suas Filhas”, publicado pela Editora Globo. Em torno da escrita dele, da minha, e da literatura em geral — a paixão dos três — continuamos a sempre fértil e interminável conversa sobre a política do livro, teatro, cinema, música, a esquerda, a luta pela justiça, o PT.
Em suas viagens a São Paulo, Felipe e ele passavam horas nas lojas de DVDs e CDs — paixão antiga dos dois, desde estudantes em Manaus. Márcio, durante esses anos, reuniu uma coleção fabulosa de DVDs e montou o Cineclube Santa Etelvina para amigos, em seu apartamento em Manaus.
Quando voltou a morar em Manaus, ele criou a segunda edição do Teatro do TESC — a primeira foi nos anos 70, antes de sua ida para o Rio. Há livros que publicamos na Marco Zero com suas peças de teatro daqueles anos, todas também encenadas por ele e seu grupo, com tours no Rio e São Paulo.
Na segunda edição — com alguns membros antigos da equipe e outros novos — ele escreveu e encenou novas peças, viajaram para o interior do Amazonas e também para a França, com grande sucesso nos lugares por onde passavam. A partir dessas viagens, documentadas em vídeos, Márcio adquiriu o hobby de filmar as viagens que fazia. Vídeos caseiros, digamos, que sua inteligência e erudição transformavam em documentários bem interessantes. Chegamos a ver alguns, quando ele passava por São Paulo.
No sábado, dia 10 de agosto, Márcio ligou para o Felipe e conversaram bastante, como era comum. Márcio estava ótimo, contou que logo viria a São Paulo e atualizou a data de um convite para lançar, em Paris, a tradução do seu livro sobre a Amazônia (“História da Amazônia — Do Período Pré-colombiano aos Desafios do Século XXI”).
Hoje, quando ainda dormíamos, amigos de Manaus começaram a ligar contando o que acontecera na madrugada do dia 12 de agosto de 2024.
Está bem, Márcio. Adeus.
Você vai, mas deixa um legado formidável para a cultura brasileira e lembranças inesquecíveis.
Maria José Silveira é escritora.