Por Diogo Alves

É inconcebível pensarmos em um mundo contemporâneo sem imaginarmos uma existência centrada por imagens. Tudo o que vivemos, experienciamos e sentimos é, de certa forma, mediado por uma criação imagética. Seja através de uma série de fotografias feitas durante uma viagem ou posts em redes sociais de pessoas com as quais possuímos pouquíssimo contato não virtual, a realidade em que vivemos é, inevitavelmente, uma existência visual.

Imagem, todavia, em um mundo constituído de experiências visuais, não se limita exclusivamente ao olhar, mas relaciona-se também com a percepção que temos de certas existências. A maneira de se comportar, a pronúncia das palavras ao se comunicar, os gestos corporais e o posicionamento social diante das situações cotidianas constituem uma poderosa maneira de estabelecer uma imagem não visual que legitima as ações e a vivência de um indivíduo perante seu meio. Se bem encenada e repetida à exaustão, trata-se de uma poderosa máscara com a qual pode-se atravessar qualquer situação.

M. Night Shyamalan é um diretor que, desde seus primeiros trabalhos, preza pela imagem enquanto mediadora da narrativa. Trata-se de uma das características mais louváveis que um cineasta comercial pode ter. Pensar naquilo que vemos como um guia formal para o desenvolvimento da história, e não como uma muleta cosmética ou como algo complexo por mera firula visual. Nesse aspecto, Armadilha (2024), seu lançamento, é um de seus filmes que mais leva adiante a ideia da imagem enquanto legitimador da realidade, em especial devido às condições psicológicas de seu protagonista.

É justamente através da centralidade de Cooper, em uma interpretação de altos e baixos de Josh Harnett, que Shyamalan consegue demonstrar suas principais virtudes. Assistir a um de seus filmes, quer seja extraordinário como A Visita (2015), Tempo (2021) e Corpo Fechado (2000) ou ruim como O Último Mestre do Ar (2010), é ter a certeza de deparar-se com uma decupagem no mínimo profundamente criativa e estimulante, e Armadilha é um excelente exemplo disso. O que há de melhor aqui é a maneira como os planos relacionam-se, a princípio, com uma relação amorosa entre pai e filha, mas sempre inserindo um elemento de estranhamento, e o posterior uso dos ângulos não convencionais e das linhas de fuga conforme adentramos mais na perturbada psique de nosso protagonista, levando-nos a refletir sobre como a confiança cega em imagens pode nos levar a lugares sombrios tal qual ao simpatizarmos por um assassino em série psicótico.

Assim como em seus melhores trabalhos, o filme possui um dispositivo central muito claro e um recorte espacial profundamente bem definido. Em uma época na qual as superlotações em shows geram notórias tragédias, existe algo mais aterrorizante do que escapar de um silencioso cerco persecutório em um grande concerto de uma diva pop? Shyamalan aproveita-se muito bem da constante busca pelo escape enquanto dispositivo, e a arena lotada não só delimita muito bem os acontecimentos, mas serve também como gatilho para uma série de ações que levam a trama adiante e centralizam-nos ainda mais na psicose que media nossa visão perante aquele mundo.

É justamente na arena e no show que estão os grandes momentos da obra. Destaque para a forma como os close-ups de Cooper vão tornando-se cada vez mais invasivos e os espaços enquadrados em planos abertos são usados para gradualmente aproximá-lo dos policiais e dos agentes de segurança, ainda que sempre separados por um elemento como uma parede ou uma porta, ressaltando a dicotomia entre proximidade e impossibilidade, e especialmente, a maneira como a diva pop Lady Raven sempre é mostrada em planos gerais, muito distante e sempre enquadrada em conjunto com sua imagem maximalizada no telão. Não seriam as pessoas que mais admiramos e que mais nos tocam, para além de muito distantes de nossas vivências, meras imagens que projetamos a partir de performances de si mesmas? E o que acontece quando elas deixam de ser meros ícones acima de um palco?

Tais escolhas visuais e narrativas de um cineasta cujos filmes têm algumas das decupagens mais criativas do cinema contemporâneo, alinhada ao talento magistral de Sayombhu Mukdeeprom, diretor de fotografia tailandês que assina trabalhos como Me chame pelo seu nome (2017) e Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas (2010), notório pelo seu olhar único diante dos espaços e pelo domínio do uso da película, criam uma obra que não somente é uma confirmação de todo o cinema de Shyamalan, mas especialmente uma subversão de tudo o que há de marcante em suas obras. Para além da lógica da imagem, aqui distorcida para nos levar a refletir em como confiamos plenamente em tudo o que vemos, especialmente se for guiada por alguém com rosto e atitudes de bom moço, a ingenuidade possui um papel muito marcante, refletida por Jamie, trabalhador que confia demasiadamente e entrega tudo única e exclusivamente por confiar em demasia naquilo que vê.

A partir do momento em que abandonamos a arena, todavia, é que as coisas se tornam mais problemáticas. O que era muito delimitado nas ambientações do show vai se perdendo na maneira como Shyamalan anseia por subverter a si mesmo, e o abandono da lógica de reflexão imagética para a inserção nos meandros da psicopatia leva a uma série de situações frustrantes que anulam muito do que havia sido construído antes. Um homem aparentemente comum torna-se alguém quase tão poderoso e cheio de recursos com um super-herói, e tal mudança não poderia estar mais distante daquilo que há de melhor na obra.

A ingenuidade juvenil, simbolizada por uma situação que vai do céu ao inferno através de um piano e resolvida por uma rede social, sempre mediada pela figura de Lady Raven, agora não mais ícone e, portanto, enquadrada em planos próximos, contraposta com a infância perturbada justamente pela falta de inocência, apresenta um meandro muito preguiçoso para o desenrolar da obra, e é triste observar como as coisas desmoronam do meio do segundo ato em diante. Mesmo que central em seus filmes e já utilizada antes em Armadilha, a ingenuidade perdida aqui trata-se mais de uma artimanha batida de roteiro do que qualquer outra coisa. Mesmo os melhores momentos descambam em algo problemático, como a cena do encontro entre a esposa Rachel, iluminada à Rembrandt e consequentemente retratada sob um viés de sanidade, e o marido Cooper, com o rosto iluminado somente pela parca luz ambiente, já totalmente entregue à fúria, de uma construção visual impecável que desemboca em uma fraca conclusão que não poderia ser mais simbólica do desmoronamento que assola o filme.

Conceitualmente, a ideia de um mundo desmoronando a partir do momento em que a psicose abandona um ambiente controlado é o cerne da obra. Entretanto, Shyamalan confia tanto na subversão do que há de mais marcante em seu cinema e de um aprofundamento da lógica hitchcockiana do suspense que acaba tropeçando em suas próprias pernas. Às vezes, a consciência de que há uma bomba sob uma mesa e que ela pode explodir a qualquer momento é muito mais funcional do que acrescentar incontáveis elementos e artimanhas abaixo e acima dessa mesma mesa. E a conclusão não poderia ser mais simbólica de como as coisas se perdem completamente.

Ainda que M. Night Shyamalan seja um dos grandes nomes do cinema contemporâneo e um contador de história com uma das vozes mais singulares da Sétima Arte, é decepcionante pensar como, algumas vezes, acaba se perdendo nas peculiaridades e na profunda suavidade de seu próprio timbre. É notável que Armadilha possui uma primeira metade de almanaque, prendendo-nos em nossos assentos através de uma construção visual e narrativa extraordinária e imersiva, mas não deixa de ser frustrante observar como as coisas desmoronam próximas ao final. Shyamalan nos ensina aqui que não devemos confiar em demasia nas imagens para não nos decepcionarmos e nem nos surpreendermos negativamente. É uma pena que essa lição se aplique ao seu próprio filme.